segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Cosmos

Viver sem questionar a existência e a localização de nosso espírito no universo que nos circunda, deve ser uma maneira um tanto vazia de atravessar a vida, creio eu. Estamos cercados pelo desconhecido, e sua presença oculta nos leva a formular as mais diversas formas de superstição, mitos e lendas religiosas em torno daquilo que não podemos explicar, das coisas que extrapolam nosso alcance, da metafísica. Uma ida ao jardim de casa, lugar habitual, pode revelar a grandeza de um universo nunca antes explorado por nossos olhares descuidados. As raízes das plantas sugando alimento da terra, circulando por seus galhos, as formigas carregando folhas, as gotas da chuva a revirar o solo, misturando os elementos. Eu passei toda a vida a andar pelo jardim, mas apenas recentemente me apercebi do volume de vida existente naquele pequeno espaço do universo. E, ainda assim, não consigo formar mais que um minúsculo panorama dos acontecimentos que se desenvolvem naquele pequeno espaço o tempo todo.

No filme Stalker, de Andrei Tarkovsky, o protagonista, ao chegar na Zona, abraça a terra, agarrando-a entre seus dedos, esfrega o rosto contra o chão. Parece buscar uma relação com a natureza, justamente num local proibido aos homens, já que a Zona tem suas fronteiras vigiadas. A vida moderna nos proporcionou um distanciamento da natureza, do contato direto com a matéria viva que nos circunda. Trancados em nossos prédios e repartições, esquecemos que os nichos ecológicos, florestas e oceanos, estão em atividade constante e que dependem de nossas atitudes para que continuem existindo. Na grande cidade, motivado pela busca incessante do lucro, da racionalidade e oprimido pela burocracia, achamos que a vida só se dá no curto intervalo de tempo em que somos adultos gananciosos. Estados brasileiros como Tocantins e Mato Grosso, por exemplo, estão sendo avassaladoramente devastados por fazendeiros de soja e criadores de gado, aleijando assim, o mais importante centro de equilíbrio da parte não submersa do planeta. Tudo em nome do lucro de uma geração, desses agricultores do presente, que pouco se importam com o futuro dos que estão por vir, nossos filhos.

Recentemente, me deparei com uma série que foi ao ar na televisão nos anos 1980, chamada Cosmos, comandada e idealizada por Carl Sagan. Seus treze capítulos desnudam o universo em que vivemos desde o surgimento da primeira molécula até a mais remota e inimaginável esquina do espaço sideral. Nossa época é um período de crise, de tensão. Sei que é batido repetir esse tema: crise, pós-modernidade, morte do homem... Mas, desde a Segunda Guerra Mundial, ficou claro que chegamos num limiar de tecnologia destrutiva que, se mal utilizado, pode decretar o fim da raça humana. Carl Sagan nos mostra em sua série, o quão milagrosa é a vida no nosso planeta, se comparada com tudo o que nos circunda, principalmente com os planetas mais próximos: o abrasador Vênus, e o poeirento e frio, Marte. O desenvolvimento das eras geológicas, dos desdobramentos da biologia e da química natural, proporcionaram o aprimoramento das constituições genéticas, as adaptações climáticas, até que chegássemos em nós, homo sapiens, que escrevemos e pensamos nossa existência, que projetamos o futuro, que contamos histórias de tempos quase esquecidos.

Mais do que qualquer religião ou pregador fanático, essa série desnudou aos meus olhos o milagre da vida, desde o mais microscópico elemento que circula pelos meus vasos capilares, até o mais distante dos milhões de sóis que existem nas galáxias mais distantes das infindáveis raias celestiais. O nosso planeta é pequenino. Mas, ao observarmos as imagens e condições dos outros, como ele se torna maternal, aconchegante, vital. É o único pontinho miúdo neste oceano infinito do céu em que a vida pode desabrochar. Poxa, nesses últimos três dias, surgiu em mim um carinho diferente pela Terra. Por isso, quero dividir essa experiência com vocês. Baixem os episódios e assistam. O cosmos é uma palavra tão abrangente que não me arrisco a explicá-lo em rápidas palavras. Carl Sagan precisou de treze episódios para transmitir a importância deste conjunto de forças visíveis e invisíveis.

Em Guerra e Paz (Voyná i Mir), Tolstói escreve um longo enlace da relação do povo com o solo materno. Quando os russos expulsam Napoleão, não estavam reconquistando apenas o território onde dormiam e plantavam e viviam, mas algo ainda mais grandioso. A palavra Mir, que também é o nome do projeto espacial russo, significa, na realidade, cosmos, em russo. Sua tradução como “paz” é correta. Mas, na língua original, Mir tem um significado de amplitude maior do que a própria paz (que, certamente, é o significado mais próximo se tratando de um período de guerra), também é harmonia com o solo-mãe, com as práticas culturais, com o universo. Hoje, num período de avanço tecnológico tão acentuado, descobrimos curas para doenças antes terminais, somos capazes de viajar o mundo de um dia pro outro com nossas fabulosas máquinas, comunicamo-nos com o mundo inteiro conectados pela internet, é importante lembrar o significado da palavra Cosmos, da sua implicância em nossa sobrevivência enquanto espécie. Para mim, leigo em astrofísica, Carl Sagan explanou de maneira agradável e inteligente a aventura da vida através das eras. Espero que para vocês também. Vamos cuidar da nossa casa.

Cosmos – parte 1: http://laranjapsicodelica.blogspot.com/2010/12/cosmos-parte-1-1980.html

Cosmos – parte 2: http://laranjapsicodelica.blogspot.com/2010/12/cosmos-parte-2-1980.html

Cosmos – parte 3: http://laranjapsicodelica.blogspot.com/2010/12/cosmos-parte-3-1980.html

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Vida Após a Morte

Tem dias que a desilusão apossa-se do nosso espírito, prostrado diante de tantas inexplicáveis respostas, da incerteza do futuro e do iminente e inevitável contato com a morte, perguntamos a nós mesmos: Para quê viver? Qual a função do trabalho se numa seqüência rápida de algumas dezenas de meses, estarei soterrado pelo que me sustentava? O que motiva uma mente dotada de força poética a questionar esta finitude? O filósofo alemão Arthur Schopenhauer dizia que a morte era a musa da filosofia! O poeta, mortal, perdura na espécie, na futura geração que o lerá e o consagrará. O que nos motiva a viver neste tão curto intervalo que nos é oferecido é a possibilidade de alargar, imortalizar a espécie humana, onde cada um de nós oferece, como voluntariosas formigas, sua carga de experiência.

O escritor e poeta russo Igor Volguin, presidente da Fundação Internacional Dostoiévski, sugeriu em palestra realizada no dia 01 de dezembro de 2009, que o Mestre de Petersburgo nunca poderia imaginar que no início do século XXI, tantos congressos e palestras fossem proferidos para debater sua obra. Ele que passou toda a vida com dívidas e lutando para sobreviver, é, há muito tempo, um sucesso de vendas em todo o mundo e motivo de discussão e inspiração para todos que o lêem. Para o crítico Harold Bloom, o grande escritor/poeta só faz crescer com o tempo:

“A força desses fantasmas – que é sua beleza – aumenta na medida em que a distância do poeta concorrente cresce no tempo. Homero, um poeta maior no Iluminismo do que foi entre os helenos, é ainda maior agora em nosso Pós-Iluminismo.”

A influência poética, diz Bloom, é uma luta pela Eternidade, ou seja, o autor quer prolongar sua existência nos textos escritos. Quando Schopenhauer profere que a morte é a musa da filosofia, está sugerindo que o poeta/filósofo tem consciência de sua curta jornada, mas sua projeção na continuidade da espécie humana o motiva a pensar num tempo muito mais abrangente que sua vida natural. Assim, o grande escritor vive noutra geração que o deslê, como diz Bloom, e o revive noutra linguagem adaptada à outra realidade de outro presente, adiante.

Esta influência não se demonstra necessariamente na manutenção da linguagem, mas principalmente, no universo das idéias, da experiência. Quando fazemos uma leitura de Montaigne, nos surpreendemos, de início, com a incalculável quantidade de citações que o escritor da Gasconha apresenta de textos antigos, da retórica clássica. O universo clássico povoa sua visão do século XVI, servindo de suporte para sua interpretação do presente. Assim, a tradição/influência de Sêneca, Virgílio, Teócrito, Cícero, Lucrécio e outros, mantêm-se viva através de centenas de anos, sobrepujando inclusive, a consistência do granito, do mármore e do concreto. O pensamento mostra-se mais forte que qualquer monolítico monumental, e o poeta torna-se perpétuo em seus versos, mesmo contra sua vontade: salve o desobediente Max Brod!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O Prédio

Como descrever com precisão a imagem de um lugar onde não se sabe ao certo se estive ou não dentro dele? Não é minha função buscar respostas, ao que parece, mas, ainda assim, é minha tarefa tentar explicar alguma coisa. Há uma estranha névoa aqui também donde escrevo. O certo era que o lugar era amplo, como uma infinita enfermaria de um hospital sucateado. Talvez o local se parecesse com uma imensa universidade. Talvez fosse mesmo uma grande cidade que vivia ali, dentro daquele vasto prédio. Um vulto passa perto de mim e inquire: “Não seria um desses moderníssimos prédios chineses ou tailandeses de cento e vinte andares? Uma cidade inteira caberia neles.” Mas não. Era um lugar bem decadente, quase uma repartição instalada num labirinto pré-digital: cheios de prontuários, receitas médicas, senhas e contas; que caiam em câmera lenta de um teto abobadado, cuja estranha claridade parecia impedir qualquer definição. Talvez o deus do prédio vivesse lá...

Olhando com mais atenção, observamos uma grande escada de ferro que range ao passar das subidas e descidas de seus transeuntes. Estou inclinado a afirmar que toda uma cidade vive dentro deste prédio que, em algumas paredes, possui um azulejo azul celeste parecido com os dos hospitais. Mas, pelo andar frenético dos passantes, assemelhasse mais a uma portentosa e antiga universidade. Ou talvez, seja mesmo uma cidade, por que não definimos assim de tal modo... Está difícil delimitar as coisas. Se tivesse mais janelas, poderíamos ver o exterior, mas não vejo nenhuma daqui, tampouco me recordo de ter passado perto de alguma janela. Há uma imensa escada no centro deste prédio, larga, onde não cessa a multidão de se movimentar. E range sua estrutura de ferro corroído. Nas periferias da grande escada central, curtos corredores conduzem a novas escadas, mais estreitas, onde a multidão se avoluma mais e quase se toca e se cumprimenta. Quanto mais próximos da escada central, mais denso se torna o nevoeiro. Que danado de lugar é este? À primeira impressão pensei se tratar de um imenso prédio dividido em vinte andares, talvez, Mas, subindo uma das escadas laterais da direita, cheguei à conclusão que todas as escadas laterais encontravam-se conectadas à grande escada central, de maneira que essa grande escada central era o próprio sustentáculo e caminho vital deste enorme prédio de um único andar, mas de altura incalculável aos nebulosos olhos. Eu próprio já não tinha certeza. E como pude afirmar que estava na escada da direita se o tal prédio não tinha referências exteriores?

Assim como quem acorda de um sonho, toda a multidão precipitou-se a andar ainda mais obstinada e uma grande ação coletiva estava prestes a irromper daquele ambiente. Uma voz de locutor de televisão principiou-se a narrar o itinerário de dois grupos de rebeldes rivais que começavam a se caçar dentro da estrutura labiríntica do imenso prédio. Eram centenas de jovens vestidos com as camisas pretas que indicavam um grupo e do outro lado, os de camisa vermelha, ambos se caçando dentro do prédio. Eles passavam em grandes grupos portando porretes, tacos de beisebol, serrotes, paus com pregos na ponta, marretas e muitos martelos de variados tamanhos. Quando se encontravam em algumas das escadas laterais, toda a multidão neutra corria e se atropelava. Alguns mesmos caíam no precipício. Assim como o céu era de uma claridade inexplicável, o fundo do prédio era escuro como um espelho sem luz. Até então, toda a multidão se locomovia em silêncio, mas quando a voz narrativa, locutora, passou a narrar o andamento da disputa entre os grupos rivais, um alvoroço e algazarra passaram a tomar conta de todas as escadarias.

Do fundo da escada central, mais e mais rebeldes com camisas alvinegras subiam as escadas e outros tantos na mesma proporção desciam do alto da escada central com as camisas coloradas. De repente, pareceu-me que toda a multidão tomava partido para um dos lados e me preocupava a neutralidade de minha posição, que parecia encontrar coro apenas na voz locutora que surgia sabe-se lá de onde! A voz narrava em tom de desespero, gritava e quase chorava de tanta comoção: “Minha Nossa Senhora, que absurdo! Alguém tome uma providência, o rapaz está abrindo a cabeça do outro com o martelo! Que cena lamentável!” Eu corria atrás de uma pequena multidão que se espremia numa apertada escada lateral onde as pessoas subiam e tentavam alcançar outra escada que daria em algum lugar-nenhum. Enquanto eu empurrava e era empurrado, o locutor conclamava alguém que fizesse parar a guerra entre os vândalos ensandecidos que arremessavam seus martelos uns contra os outros. A escada central e as laterais começavam a se encher de corpos mutilados e o sangue descia pelos cantos enferrujados delas. “Estão batendo nesse rapaz, na cabeça dele com um martelo. Façam alguma coisa, pelo amor de Deus!” Pranteava a voz narrativa. Uma moça chorava em desespero numa escada que passava perto. Eu quase alcancei sua mão clemente da escada onde estava. Eu temia perguntar algo, apenas fugia da multidão de rebeldes que se enfrentava bravamente e se buscavam obstinadamente nas escadas laterais. Todas as mortes se davam por espancamento incessante e persistente. E se alguém achasse que eu pertencia a algum grupo? Empurrava as pessoas que subiam as escadas enquanto a narração dos espancamentos tornava-se ainda mais comovente. Estava prestes a acreditar que quanto mais reprovativa era a locução, mais obstinada era a batalha selvagem. Não havia quem impedisse tamanha barbaridade e brutalidade? Deixei-me acocorar numa escada à procura de sair de interminável tormento. Onde estariam as portas e janelas? Eu apenas quero sair daqui!

O cachorro está latindo. Busco o relógio ao lado da cama. Ainda vai demorar umas duas horas para amanhecer.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Tristeza

Lágrimas suspensas sobre o
papel
Como nuvens sobre a cidade
projetada
Prontas para borrarem teu
nome.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Da Experiência

"A premonição do que será, a partir do que se foi, encontra-se maravilhosamente ilustrada por uma história, tirada de Heródoto, e relatada por Michelet em seu curso inaugural na Sorbonne (1834): quando, outrora, foi prometida a coroa de um reino na Ásia àquele que, em primeiro lugar, visse a aurora, 'todos olharam para o nascente; uma só pessoa, mais advertida, voltou-se para o lado oposto; e, com efeito, enquanto o oriente ainda estava soterrado na sombra, essa pessoa viu do lado do poente os clarões da aurora que já iam iluminando a cúpula de uma torre!"


sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Fogo

Título: Fogo

Autor: Odomiro Barreiro Fonseca Filho

Era uma terça-feira normal na cidade do Recife. Os estabelecimentos comerciais e burocráticos funcionavam a todo vapor. Os engarrafamentos no trânsito, os horários escolares e as obras da construção civil seguiam seu ritmo natural, corriqueiro. Numa rua do centro da cidade, um homem caminhava nervoso. Ele não atentava às pedras desajustadas na calçada, mas por imprimir um ritmo de caminhada cada vez mais veloz, atropelava o próprio desequilíbrio. Os infortúnios de sua vida tinham chegado a um estado de calamidade tão agravado que nesse dia resolvera sair de casa portando seu revólver calibre 38. Estava disposto a dar cabo de alguma coisa.

Este homem que aparentava seus trinta e cinco anos tinha sido abandonado pela esposa que, levara consigo os dois meninos do casal. Estava a sete anos trabalhando na empresa de abastecimento de água do Estado, um trabalho maçante e extenuante. Amanhecera de ressaca, tinha bebido uma garrafa de vodca de meia-qualidade na noite anterior, presente que um amigo que estudava russo havia dado no último natal, quando ainda vivia com a família, embora num estado de deterioração das faculdades morais do matrimônio. O homem acordara nessa terça-feira com uma tremenda dor de cabeça. Sorveu dois copos d’água gelada, vestiu a mesma roupa do dia anterior e chegaria muito atrasado ao trabalho. Não o preocupavam as possíveis represálias do chefe da seção, um Dr. Nogueira qualquer. Resolvera sair de casa portando seu revólver 38. Estava disposto a dar cabo de alguma coisa.

Não muito longe daquela rua do centro, dois jovens encontravam-se sentados embaixo de uma árvore, num banco de praça, aproveitando a formosa sombra que sobre eles se espraiava. Os jovens eram estudantes de uma universidade que ficava ali próximo de onde o nosso herói caminhava. Os mancebos, embriagados pelo fulgor juvenil, desatavam a rir de qualquer coisa, do formato de busto feminino numa árvore, dos desenhos multiformes que os galhos do pé de coração-de-nego faziam. Quando avistaram aquele homem do outro lado da calçada, tropeçando nas pedras desajustadas, a roupa desengomada, num contraste com o que sentiam os jovens rapazolas, passaram a observá-lo com maior curiosidade.

Ao trespassar a porta de casa, o homem carregava uma pasta na mão direita e o revólver na parte de trás da calça, por dentro da camisa que catingava o suor de ontem. Era tarde. Na verdade, eram 13:00 e ele ia pegar o segundo expediente. Sentia fome, mas não queria comer. O calor estava intolerável. Era mês de março, começo de março, e a cidade do Recife enfrentava uma onda de calor insuportável, até os ventos resolveram abandonar a cidade, deixando aos moradores apenas o mormaço como companhia. Mal deu quinze passos, o homem sentiu o bafo quente das ruas, quase ninguém se arriscava a andar sob o sol. Sua testa estava molhada de suor, sua face pálida por conta da ressaca, nem uma brisinha vinha ao seu socorro. Em sua cabeça, a imagem da mulher girava sem parar, desconfiava que ela iniciara um affair com um colega dos tempos de faculdade. Sentia vontade de acabar com tudo. Estava disposto a dar cabo de alguma coisa.

A confusão se apossava cada vez mais de seu espírito. A mulher beijando o colega da faculdade, as frases mecânicas que haveria de dizer na repartição, o embrulho no estômago, o calor, que calor miserável! Pensou em tomar uma coca-cola, mas não avistava nenhuma barraquinha ali perto da rua do Aragão, teria que andar uns duzentos metros até a Praça Maciel Pinheiro. Estava muito quente, sua camisa já estava empapada de suor. O fedor do dia anterior reaparecia. Cheirou o sovaco e não gostou do que sentiu. Deveria parar e fazer um lanche? Imaginou aqueles enroladinhos que se vendem nas cantinas sujas do centro e seu estômago embrulhou outra vez. Ah, maldita! Se outro cara estiver te comendo, mato os dois! Estava olhando pro chão, tinha ciência do calibre 38. Há poucos passos da Praça Maciel Pinheiro, parou. Sentiu uma confusão no espírito. Várias imagens circundavam-no. Vou dar cabo da minha vida, pensou. Apalpou o revólver. Não tinha certeza de muita coisa. Apenas do incômodo existencial, um buraco irremediável na alma. Tudo se apresentava sem saída. Mas, tinha medo de se precipitar. E se amanhã se sentisse menos indisposto? Era como o suicida que do alto do prédio, em sua confusão, olhava para baixo e ao se atirar do penhasco de concreto, num derradeiro pensamento, dizia para si próprio: meu Deus o que é que eu fiz?! Tinha lido essa história em algum lugar.

O homem se encontrava parado no meio da rua. Os jovens, com curiosidade, o observavam. Naquele calor infernal, um homem parado, todo suado, olhando para um bueiro no chão, apalpando as costas, distante do cotidiano que o circunda. De repente, os jovens observam o homem a retirar uma arma, negra, uma máquina de matar. Ele aponta para o seu rosto. Os jovens não se arriscam a se levantar, observam aquela cena rápida, inquietante. O homem fica a observar o cano da máquina. Aqueles rápidos segundos ganham proporções arrastadas, todo movimento é pausado. O homem aponta a arma para a lateral da testa, no meio da rua, naquele calor, ele é o centro do mundo. Tudo está em suspenso aguardando o momento definitivo em que seu corpo rígido desfalecerá sobre a rua de paralelepípedos cálidos. Alguém mais estaria presenciando aquela cena por uma janela? Na rua, ninguém se aventurava. Os rapazes na sombra. O silêncio da morte. De repente, num gesto difuso, retira a máquina de matar da cabeça e atira pra cima, em direção ao sol. Um barulho seco é ouvido na cidade.

O homem estava no meio da rua, com o braço esquerdo retesado para cima, o rosto apontando para o chão. Não tinha consciência do presente. Teria atentado contra si próprio? Sua vista enrubescia. Será o sangue jorrando pelos meus olhos, pensou por um instante. Olhava o dia, afogueado, deixara cair-se no chão. Caiu com as costas no paralelepípedo quente, a mão esquerda com o revólver, o olhar mirando o céu. E que céu! Vermelho como Roma nos sonhos de Nero. Tinha certeza que aquilo era a morte. O destino dos suicidas. O inferno era realmente vermelho. Mas, ele não tinha medo. Que espetáculo belo é a passagem para os subterrâneos do tormento. Era como na vida normal, com a diferença que a luz era rubra, o sol uma bola nitidamente vermelha, estendendo seus raios encarnados. Abriu um discreto sorriso. Percebeu que havia vida após a morte. Não sabia se era esse o fim que almejava. Sentiria as mesmas preocupações de antes?

Antes que pudesse esboçar um pensamento mais articulado sobre a morte, uma jovem senhora gritava pela rua: é o fim do mundo! Logo, as ruas se encheram de gente que saía dos escritórios, das lojas de móveis, dos guichês de bilhetes de passagem de ônibus. Uma algazarra pavorosa de perguntas desconexas. O céu tornara-se vermelho de repente. Um homem com uma bíblia embaixo do braço eleva-se no umbral da fonte d’água que fica na Praça Maciel Pinheiro e inicia a narrativa do livro do Apocalipse. Sua expressão facial adquire modos altaneiros, um transe, o momento mais esperado de sua vida, o discurso mais importante. Jovens moças saídas de uma escola pública invadiram uma loja de moda e carregaram o que puderam nos braços. O homem causador de tal embaraço saía atônito pelo meio da multidão. Os mancebos sentados no banco da praça permaneciam no mesmo local, perguntando-se se tudo aquilo era efeito da alucinação de suas mentes. Os aparelhos eletrônicos pararam de funcionar, assim como os telefones. Uma balbúrdia nunca vista. Homens tentavam ligar seus carros, sem sucesso. Todos corriam de um lado pro outro buscando respostas e a palavra que se ouvia era que o mundo estava se acabando. Um estudante interessado nessas revistas de ciências ocultas, dizia com precisão que um asteróide de fogo estava colidindo com a Terra. As moças perdiam as últimas fagulhas de pudor e se entregavam para o primeiro que aparecesse. O nosso herói encostou-se ao pastor e tentava dizer que ele tinha atirado no sol, mas o pastor sequer podia ouvir as vozes da multidão, inflava o peito e declamava as palavras sagradas. Alguém gritava que um tsunami invadiria a cidade a qualquer momento, pessoas corriam para os prédios altos, outros tentavam voltar para casa em disparada. Vidraças quebradas, tudo estava vermelho como se um óculos de papel celofane caísse sobre as retinas. Nosso herói perdido na multidão enlouquecida, tentava advertir aos cidadãos que ele tinha matado o sol. Pedia desculpas a todos. Ninguém o ouvia. Embriagado pelo fulgor do presente, correu de volta pra casa. Jogou a arma no bueiro. Amanhã alguém haveria de culpá-lo pela morte do sol. Pior se fosse Deus que não haveria de se esquecer de tamanha injúria. Aos prantos atravessou a porta de casa, cerrou as janelas, um som de gritos distantes o atormentava. O que os pacatos homens estariam fazendo no centro da cidade? O crepúsculo arroxeado consumia a urbe maurícia. Quando as trevas baixassem, quem seria por nós? Como estariam sua mulher e seus filhos? Nesse turbilhão de idéias, tomou consciência da fraqueza de sua razão. Chorava e amaldiçoava sua existência. Após longo período na escuridão de casa, encostou-se no sofá rasgado e dormiu. No outro dia, pela manhã, o sol levantou-se como habitualmente.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Dostoiévski e Turgueniev: Ímpetos Juvenis

Durante o segundo semestre de 1845, iniciou-se em São Petersburgo uma amizade entre dois dos maiores escritores russos de todos os tempos, os jovens Ivan Turgueniev, então com 25 anos e Fiódor Dostoiévski, com 24. Ambos respaldados pelo carinho e proteção do crítico Vissarion Bielinski. Dostoiévski estava vivendo a glória que todo o jovem escritor sonha, havia escrito seu primeiro romance, Pobre Gente, e era convidado para os mais importantes e respeitados bailes da capital. Os condes Odoiévski e Solugob, escritores da nobreza russa, disputavam sua presença em suas reuniões e saraus. O tímido escritor mergulhava num universo de sonhos e glórias. Turgueniev também lançava suas primeiras novelas no Almanaque de Petersburgo e causou uma impressão formidável no impressionável Dostoiévski, conforme podemos observar em carta redigida ao seu irmão mais velho, Mikhail Dostoiévski:

“O poeta Turgueniev regressou de Paris há pouco (você deve ter ouvido falar disso), e tomou-se de amores por mim à primeira vista, com tanta dedicação, que Bielinski diz que ele se apaixonou por mim! E que homem ele é, irmão! Quase me apaixono por ele também. Poeta, aristocrata, talentoso, simpático, rico, inteligente, bem-educado e com 25 anos de idade. E, para completar, um caráter nobre, extremamente direto e franco, e formado em boa escola. Leia seu conto Andrei Kolóssov nos Anais da Pátria; é a cara dele, embora ele não estivesse pensando em fazer um auto-retrato.” (FRANK, 2008;215)

A nova amizade, tão promissora, começou a dar espaço para a imensa vaidade de ambos, especialmente de Dostoiévski. Por trás de toda sua timidez e doença nervosa (primeiros sinais da epilepsia), Dostoiévski escondia uma vaidade profunda. Os outros literatos de seu tempo, do grupo de Bielinski, começaram a se incomodar com suas opiniões extremadas, quase sempre coléricas, suas defesas de que o socialismo nascente na França, nada mais era do que uma vertente do cristianismo. Dostoiévski cria que os ideais legítimos do cristianismo antes de ser corrompido pela igreja, de amor-mútuo e divisão dos bens, era o sustentáculo da nova fé européia, o socialismo de Fourier, Saint-Simon e Proudhon.

O comportamento excêntrico e doentio de Dostoiévski começou a afastá-lo de seus novos amigos. A esposa do escritor Panaiev, a senhora Avdótia Panaieva, dá um importante relato da figura do jovem Dostoiévski numa das reuniões no salão de sua magnífica residência:

“Dostoiévski visitou-nos pela primeira vez à noite, com Nekrassov e Grigorovitch, ambos começando suas carreiras literárias. Percebia-se logo que Dostoiévski era uma pessoa extremamente nervosa e impressionável. Era magro, baixo, cabelos claros, uma pele macilenta; seus olhos pequenos e cinzentos corriam inquietos de um objeto a outro, e seus lábios pálidos contorciam-se nervosamente. Ele já conhecia a maioria dos convidados, mas estava visivelmente embaraçado e esquivou-se das conversas. Todos procuraram integrá-lo na conversação, para ajudá-lo a vencer a timidez e fazê-lo sentir-se um membro do círculo.”

E continua o relato:

“Por causa de sua juventude e timidez ele não sabia se comportar, e dava claras demonstrações de presunção como escritor e da alta conta em que tinha seu talento literário. Transtornado pelo inesperado brilho dos primeiros passos na carreira, coberto pelos elogios de críticos literários de renome, e impressionável como era, não conseguia esconder seu orgulho diante dos outros jovens escritores que então se iniciavam modestamente na mesma carreira. Com a entrada de novos escritores no círculo, poderiam surgir problemas se eles se sentissem ofendidos, e Dostoiévski, como se fosse de propósito, ofendia-os com sua irritabilidade e seu tom arrogante, deixando claro que se achava imensamente superior aos demais.”

Como expressado pela senhora Panaieva, o círculo se sentia incomodado com a presença arrogante de Dostoiévski, mas não sabia como expurgar aquele homem, cuja alma pesava como chumbo no ambiente frequentado pela elite intelectual russa dos anos 1840. Coube ao ex-amigo Turgueniev a tarefa de chegar aos olhos e ouvidos e Dostoiévski que ele não mais era bem quisto. E assim como acontece em muitas cenas de sua longa carreira literária, a sua humilhação foi pública e dolorosa.

“As coisas chegaram ao auge no outono de 1846 quando, certo dia, Turgueniev excedeu-se nas zombarias. Mme. Panaiev descreve a cena da seguinte maneira: 'Certa noite, Turgueniev descreveu, na frente de Dostoiévski, um encontro que tinha tido na província com uma pessoa que se imaginava um gênio, e pintou com maestria o lado ridículo dessa pessoa. Dostoiévski ficou branco como uma folha de papel e, tremendo da cabeça aos pés, retirou-se apressadamente sem esperar pelo resto da história. Eu então comentei diante de todos: mas por que deixar Dostoiévski furioso dessa maneira? Mas Turgueniev estava muito inspirado, monopolizava a atenção de todos, de modo que ninguém percebeu a súbita retirada de Dostoiévski. […] Dessa noite em diante ele nunca mais nos visitou e até procurou evitar encontrar-se na rua com qualquer membro do nosso grupo. […] Só esteve com Grigorovitch que nos disse que Dostoiévski nos tinha insultado veementemente […], e dizia que tinha-se sentido muito decepcionado conosco e que nós éramos invejosos, cruéis e desprezíveis'. Em novembro de 1846, numa carta dirigida a Mikhail, Dostoiévski afirmou: 'Eles [a Plêiade] são todos uns patifes mortos de inveja.'” (FRANK, 2008; 216-217)

O rompimento de Dostoiévski com o círculo de Bielinski trouxe prejuízos incalculáveis para sua vida de escritor na década de 1840. Por ter sido quase que expulso do grupo por causa da pilhéria de Turgueniev, passou a freqüentar outros grupos, de pessoas mais radicais, até que chegasse no círculo de Petrachevski, onde todos os membros foram enviados para a Sibéria, inclusive Dostoiévski. Outro dano, talvez o pior, foi que a crítica literária, centralizada com toda a força na opinião de Vissarion Bielinski e seus membros do círculo, passaram a denegrir as novas obras de Dostoiévski que surgiam. O Duplo, ou O Sósia, segundo romance do escritor, foi recebido como uma obra comum, ou até pior do que isso. Nos dias de hoje, O Duplo é uma obra estudada, debatida e bem recebida pela crítica internacional. Muitos dos membros do círculo não são conhecidos nem na Rússia, hoje em dia, embora esse não seja o caso de Turgueniev e Bielinski.

Décadas depois, os dois escritores voltaram a se encontrar, na Alemanha. Turgueniev sempre foi conhecido como o mais ocidental dos escritores russos do período. O crítico Leonid Grossman chega a afirmar que tinha vergonha de ser russo. Um certo dia da década de 1860, quando Dostoiévski estava na Alemanha, no encalço da atriz Paulina Suslova, gastando todo seu parco dinheiro com hotéis e jogatina na roleta, foi ter com Turgueniev. Foi pedir-lhe dinheiro, pois havia perdido tudo na roleta. A atriz havia ido para a França e ele não tinha dinheiro nem para comer. Turgueniev lhe empresta algum dinheiro. Duas semanas depois, Dostoiévski volta à casa de Turgueniev para pedir-lhe mais dinheiro, pois havia perdido tudo novamente. Turgueniev nega-lhe o dinheiro e lhe expulsa de sua residência. Dostoiévski fica no hotel sem dinheiro nem para o chá. Essa nova cena de humilhação está descrita nas páginas do romance autobiográfico O Jogador.

Turgueniev influenciou Dostoiévski profundamente na década de 1860. Suas principais obras nesse período, Crime e Castigo e Notas do Subsolo, são respostas ou tentativas de interpretação do personagem niilista Evgueni Bazárov, do livro Pais e Filhos de Ivan Turgueniev. Este escritor criou a palavra niilista e introduziu este tipo de personagem na literatura russa.

Turgueniev e Dostoiévski, dois escritores contemporâneos, dois gênios do seu tempo, que começaram como amigos fraternos, depois deixaram-se envolver pela vaidade da fama literária, mas não podiam morrer sem que as questões ignóbeis de suas vidas fossem reelaboradas e esquecidas. Em junho de 1880, seis meses antes do próprio ocaso, Dostoiévski discursou no aniversário da morte de Púchkin e encantou toda a platéia, apesar de sua voz baixa e rouca de doente terminal. Dizem os jornais da época que o emotivo discurso fez jovens estudantes desmaiarem na platéia e uma onda de aplausos incansáveis foi escutada por vários minutos. Quando Dostoiévski desce do púlpito, Ivan Turgueniev o espera. Ambos se abraçam e fazem as pazes. E a literatura agradece ao gênio de ambos que ajudaram a construir e alicerçar a fabulosa pirâmide do romantismo russo.

sábado, 23 de outubro de 2010

O Câncer do Futebol Brasileiro


No último domingo, a maioria dos pernambucanos comemorou avidamente o acesso do Salgueiro, clube do sertão pernambucano, da cidade homônima de menos de 60 mil pessoas, para a série B do futebol nacional. Sem dúvida, um feito espetacular. E essa é a grande magia do futebol. No ano de 1983, o escocês Aberdeen bateu o poderoso Real Madrid na final da Recopa européia na cidade de Gotemburgo, com um escrete formado exclusivamente de jogadores locais, capitaneados pelo então desconhecido treinador Alex Ferguson. E muitos outros exemplos poderemos encontrar de clubes pequenos que alcançaram sua glória no mundo futebolístico. Mas, a vitória do Salgueiro sobre o Paysandu traz consigo um fantasma que há longa data assusta alguns grandes clubes do Brasil, especialmente do Norte e Nordeste, o sucateamento do futebol.

O futebol brasileiro é um produto de incalculável valor, poderíamos afirmar. O mundo inteiro se rende aos nossos dribles, aos nossos craques, aos nossos títulos em todas as modalidades. Porém, esse nosso produto não é bem vendido para um mundo sedento de consumi-lo. Para se ter uma idéia, o campeonato turco arrecada mais do que o brasileiro com direitos de transmissão. Os turcos vendem seus jogos para a Alemanha, Rússia e países árabes. Arrecadam uma boa bolada e podem manter os bons jogadores, além de contratar craques brasileiros para incrementar o nível futebolístico. Até o campeonato mexicano arrecada mais que o brasileiro! Na última Copa, exceto dois ou três jogadores, todos os jogadores da seleção mexicana atuavam dentro do seu próprio país. Mas, o Brasil, pentacampeão mundial, que possui clubes tradicionais e com imensas torcidas apaixonadas, não consegue vender seu campeonato para a Europa, nem para o Japão, muito menos para os países árabes, nem latinos. Vendemos apenas para a Globo. Consumo interno.

Será que ninguém se interessa pelo futebol brasileiro? Será que o campeonato turco é mais interessante que o nosso?! Para mim, é um problema de administração do alto escalão do futebol brasileiro. Lá em cima do Castelo de Kafka, onde ninguém consegue chegar nem saber o que acontece nas altas torres, os poderosos estão satisfeito com o “pouco” que recebem. Talvez porque se os americanos vierem a comprar esse produto, queiram colocar auditorias sobre a distribuição do dinheiro, ou então, se os ingleses comprarem, trarão os repórteres da BBC para fazer matérias de espionagem dentro de suas secretíssimas salas. Então, é melhor ficar com o consumo nacional, afinal de contas, a gente já é acostumado com as travessuras dos mandatários mesmo! E assim, o futebol brasileiro fica nesse descaso, as torcidas se acostumaram ao baixo nível dos espetáculos, jogador bom, só acima dos 30 anos ou com menos de 19. Mais de mil jogadores profissionais estão atuando fora do Brasil porque não conseguimos manter nossos craques. Para mim, só há duas possíveis respostas: ou o Clube dos 13 não sabe vender um produto que já faz a propaganda por si só, ou não quer se ver na companhia ingrata da imprensa internacional, a pesquisar suas contas.

No Brasil, o futebol é dividido: a CBF cuida da seleção, e o Clube dos 13 cuida do campeonato nacional. A CBF quase não tem trabalho, apenas engorda, pois vende todos os amistosos da seleção para uma empresa que põe o Brasil jogando lá pela Europa mesmo. Já o Clube dos 13, esse pinta e borda dentro do território nacional: divide as cotas de televisionamento do jeito que quer; marca jogos que terminam de madrugada; faz campanha com árbitros para que medalhões do seu elenco não sejam rebaixados e por aí vai. Quem está dentro desse quadro, conta com um mínimo de estabilidade, pois recebe um dinheirinho certo por ano. Quem está fora... Ah, quem está fora está comendo o pão que o diabo amassou! O Clube dos 13 divide as cotas de dinheiro do jeito que quer, entre eles, nas suas reuniões que acontecem pelas bandas do sul e sudeste, nas sedes de seus grandes clubes. E lá, definem: fulano vai ganhar X milhões, beltrano vai ganhar só Y. Fora do eixo sul-sudeste, apenas 4 clubes fazem parte do seleto e importante cenário do Clube dos 13: o Goiás, único clube do centro-oeste; o Sport, o Bahia e o Vitória, no nordeste. O Goiás, mesmo recebendo uma quantia pequena, mas perene, está sempre satisfeito. De vez em quando é rebaixado, mas logo sobe de novo para a Série A. Pode manter uma folha salarial de 800 mil reais, pagando em dia, mesmo que a torcida não compareça ou que nenhum patrocinador se interesse em aparecer junto à sua marca. Seus adversários goianos, coitados. Não possuem do mesmo privilégio. Eles precisam da torcida em massa, dos patrocinadores fortes e até da sorte, para competir com o afortunado adversário. E assim, o Goiás está sempre satisfeito e o Clube dos 13 se defende das críticas de ser “sulista”, dizendo: “olhe lá, temos representante no centro-oeste e no nordeste!”

O Paysandu vai ficar outro ano na terceira divisão. Acho que fui o único pernambucano que estava torcendo pelo Papão da Curuzu no último domingo. Eu que já estive em Belém e pude comprovar de perto, o amor que os paraenses alimentam pelos seus pobres clubes, esquecidos pelos poderosos do Clube dos 13. O Clube do Remo vai passar mais um ano na quarta divisão! E o Santa Cruz? Colocou mais de 50 mil pessoas num jogo contra o Guarany de Sobral e foi eliminado. Os times de torcida que jogam a série C e D, terão muita dificuldade em voltar para as séries A e B, porque eles possuem a ansiedade de seus torcedores, da imprensa, pouco dinheiro, patrimônio material caindo aos pedaços. Enquanto seus adversários: Guaratinguetá, Grêmio Barueri, São Caetano... são clubes de empresários, sem pressão, franco atiradores.

O dinheiro do Clube dos 13 fica preso nas torres do alto castelo. Enquanto isso, estamos a observar o desaparecimento gradual, lento, agonizante, do futebol norte-nordestino. É isso o que o Clube dos 13 quer: os paraibanos, potiguares, amazonenses, matogrossenses... torcendo pelos times do eixo Rio-São Paulo, além dos mineiros e gaúchos. O futebol para esses quatro estados apenas. E assim, o futebol brasileiro que poderia ser altamente rentável, ter cinco, seis divisões fortes, bancadas pela venda do campeonato para os países de todo o mundo, fica a mercê de uma esmola dada pela Globo, dividida por um pequeno grupo de clubes e o resto... o resto que se exploda!

domingo, 10 de outubro de 2010

O Dia das Crianças


O comércio criou uma data comemorativa para celebrar a infância, é o famoso dia 12 de outubro, dia das crianças. Não por acaso, fatura-se tanto com a venda de produtos para os infantes. A imaginação de uma criança é preciosa. Uma menina é capaz de ficar um longo tempo brincando com uma boneca e naquela relação homem x objeto, um universo de criações e fantasias se estabelecem. Os pequenos carrinhos de corrida ziguezagueam pelos obstáculos da casa, entretendo a mente por um longo tempo. Porém, quando crescemos e nos vemos diante dos encargos repressores da realidade, o mundo da fantasia é relegado ao status de coadjuvante de nossas atividades mentais.

Como não posso presentear as crianças que conheço ao mesmo tempo, tampouco imagino que muitas delas visitem este espaço, quero repartir com os adultos que por aqui passam, um pouco do sentimento que a infância deixa em nossas vidas e que, tantas vezes, ofusca-se nas atitudes estúpidas que tomamos quando envoltos estamos no mundo da realidade burocrática.

Hoje resolvi assistir pela segunda vez o filme A Viagem de Chihiro (Spirited Away) do diretor japonês Hayao Miyazaki, e senti-me assaltado de tantos desejos de dividir o que durante o filme ficou tão latente no espírito. Decerto, não retomarei a emoção do momento em que assistia, mas uma cena em especial me fez refletir sobre a infância e sobre a nossa relação com o tempo: quando a garotinha reencontra os pais no final do filme. O escritor argentino Jorge Luis Borges, tantas vezes nos joga num universo em que o tempo e o espaço adquirem uma sensação de inconformidade em relação ao presente ao qual estamos habituados. Assim, o momento em que a gota da chuva escorre por nossa testa pode ser suficiente para que um escritor finalize e revise todo um romance que há "tempo" havia planejado. Também os espaços adquirem formas enormes, esfumaçadas ou até límpidas demais, que se contrastarmos com o nosso arquivo real, não encontraremos parâmetro satisfatório. No livro IX das suas Confissões, Santo Agostinho diz sobre o tempo: "O que é afinal o tempo? Se ninguém me pergunta, sei; se alguém me pergunta e quero explicar, não sei mais." Santo Agostinho coloca-se diante do problema de se medir aquilo que não é. Após questionar-se a maior parte da vida sobre o tema, reelaborando os conceitos de Aristóteles e Plotino, Agostinho encerra que o passado e o futuro encontram-se no presente, o chamado Tríplice Presente. O tempo, resumidamente, para Santo Agostinho é medido dentro de nós.

Na Viagem de Chihiro, a garotinha empreende uma excursão por um universo mágico, cuja comparação com nosso mundo de monóxido de carbono e bolsas de valores não é possível de ser realizada. Tanto que enquanto ela esteve envolvida em suas aventuras, para seus pais, o tempo transcorrerá o suficiente para que a menina se perdesse no alto de um barranco e voltasse. Nesse caso, o tempo não foi o mesmo para Chihiro e para seus pais, embora no relógio tenha-se transcorrido o tempo habitual. Enquanto desaparece, a menina penetra num universo mágico, em que a imaginação distende-se até que um novo mundo se construa. Quando observamos uma criança a brincar com sua boneca ou com um carrinho, entre tantos tipos de brinquedo, não podemos supor que tipo de interação ficcional está ocorrendo naquela relação homem x objeto.

Hoje, após terminar de assistir o filme da garotinha Chihiro, uma onda de desolação me atingiu de modo profundo. Uma saudade inconsolável de ver o mundo com olhos de criança, distante da amarga e insensível relação de sociabilidade que nos torna homens sem rostos, nervosos em engarrafamentos, agressivos na fila do banco ou mentirosos na saciedade de nossos desejos libidinosos... Era uma tarde solitária de domingo neste bairro de subúrbio, quando a história da mocinha japonesa mudou minha relação com o tempo e o espaço. Fez-me renascer o espírito mágico da infância e transportou-me para um mundo de sonhos, ainda que a duração deste sentimento não se prolongue por muito tempo.

video da música final com tradução: http://www.youtube.com/watch?v=Z-Dr3IeTbrY

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Walter Benjamin em Moscou

Na década de 1930, o filósofo judeu-alemão Walter Benjamin empreendeu uma viagem por várias cidades da Europa, entre elas, a capital do Império Soviético, Moscou. Para um morador de Berlin, a experiência de se conhecer um país que, originalmente sempre foi tão diferente culturalmente, agora também no campo político, pois tratava-se de um modelo de governo que chamava a atenção de todos os outros governos no mundo que cultivavam com suspeita o olhar curioso sobre o Kremlin moscovita. Mas, para a surpresa de Benjamin, conhecer a Rússia, ou melhor, a União Soviética, foi um grande aprendizado para que pudesse entender a sua familiar Europa.

O fotógrafo, o pintor, o literato, o arquiteto... ambos, contam a história da cidade. Cada um carrega sua vivência urbana. Assim, como os milhares de olhares que se cruzam na multidão, as “visões” da cidade por parte das diferentes formas de contar a experiência vivida se entrecruzam nas ciências que estudam a sociedade. O relato desses intérpretes das cidades acaba por nos inserir em suas realidades e, assim, nos tornamos viajantes de uma experiência ficcional.

O nosso cotidiano espacial só pode ser interpretado após um estranhamento do mesmo, um mal-estar em relação ao ambiente vivido. Sem a experiência do contraste e da oposição, a análise empobrece-se. Quando Walter Benjamin afirma que “por meio de Moscou se aprende a ver Berlin mais rapidamente que a própria Moscou”, ele está reforçando essa imagem. Mais adiante, ele afirma: “Só quem, na decisão, fez com o mundo a sua própria dialética pode apreender o concreto.”

O morador de Berlin só vai se sentir apto a conhecer sua cidade quando em outra realidade se encontrava. A Moscou comunista da década de 1930, com suas ruas apinhadas de gente, num corre-corre contínuo, com o barulho da multidão, vai recriar a imagem da cidade em que morava. Não por acaso, a historiadora Sandra Jatahy Pesavento vai utilizar-se das técnicas do próprio Benjamin para justificar a transcendência do olhar do escritor:

“A idéia de contraste, produzindo a revelação ou a descoberta, seria desenvolvida por Walter Benjamin, ele próprio leitor de Baudelaire e amante de Paris. Cortando os vínculos genéticos passado/presente, o que Benjamin postula é a criação de contra-imagens que rompam o contínuo da história, oportunizando o que se chamaria 'o salto do tigre', que daria margem à inteligibilidade pelo contraste.”

Para Benjamin, o cruzamento de imagens contrárias são necessárias para que se possa obter uma imagem coerente do sentido de uma época, presente ou passada. Porém, essas cidades não necessariamente precisam ser reais. Nas Cidades Invisíveis, Italo Calvino tornou “visível” cidades que só existiam no mundo ficcional. O topos uranos de Jorge Luis Borges é outro estilo típico de criação de cidades de sonho e poesia. Mas, no caso de Benjamin, a viagem para Moscou fez com que a própria Alemanha passasse a ter outro significado em sua visão de mundo. As ruas de Berlin lembravam os desenhos de Grosz: silenciosas, vazias, limpas, maquetes. Uma oposição a Moscou, que pela narrativa do autor parece-se quase com certos recantos de cidades brasileiras, caso não fosse a presença da neve. Observemos:

“Em Moscou, as mercadorias irrompem por toda a parte das casas, se penduram nas cercas, se apóiam às cancelas, jazem no calçamento. A cada cinqüenta passos se encontram vendedoras de cigarros, de frutas, de doces. Ao lado tem um cesto de roupas com as mercadorias, às vezes também um pequeno trenó. Um pano de lã colorido proteje maçãs ou laranjas contra o frio; duas amostras ficam por cima. Ao lado, bonecos de açúcar, nozes, bombons. Faz pensar numa avozinha que, antes de sair de casa, olhou ao redor em busca de tudo com que pudesse surpreender seus netos. Agora, a caminho, estão na rua para repousar um pouco. As ruas de Berlin não conhecem tais sentinelas com trenós, sacos, carrinhos e cestas. Comparadas com a de Moscou, são como um velódromo vazio e recém-varrido, no qual avança uma pista de corredores de uma prova ciclística de seis dias.”

Um convite para entrecruzar caminhos e reconhecer-se noutras perspectivas...


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Uma Tarde no Centro de Artes

Passava das duas horas da tarde de um dia ensolarado. No Centro de Artes de uma conhecida universidade, um homem surge do escuro painel de vidro. Vestido de maneira decente, pára embaixo da marquise do prédio. Retira do bolso da camisa pólo a carteira de cigarros. Acende. Olha para o dia embrasado, poucas nuvens no céu. Não carrega muita coisa consigo, apenas um pequeno livro de bolso. Termina o cigarro e se dirige a uma pequena praça, onde jovens conversam embaixo da sombra de uma árvore.

O homem toma acento no banco, desprotegido das árvores, sofrendo com os raios quase perpendiculares do sol. Abre o livro de bolso. Entre o grupo de jovens que estavam conversando, um deles observa o homem a suar embaixo do sol úmido de Recife. Reconhece o título do livro: O Nariz, de Nicolai Gógol. Volta a conversar com seus parceiros, enquanto o homem com pinta de professor desconhecido fica lendo seu livro tranqüilamente, dourando.

De repente, o homem com pinta de professor irrompe numa gargalhada falsa, estrondosa. Ri cada vez mais alto, quase um grito bestial. Abre sua enorme boca, com dentes amarelos. Seu gesto toma formas caricaturais. Joga-se no chão, arremessa o livro contra uma árvore. Sua risada se torna mais nervosa. Passa a rolar no chão, como um doente em crise nervosa. As pessoas, por perto, se assustaram no primeiro movimento do louco. Seus trejeitos eram desarticulados, o que tornava imensamente bizarro o seu ato. Mas, com a continuidade da sua falsamente majestosa gargalhada, as pessoas passaram a rir, não pelo prazer do ato, mas como se quisessem ridicularizar o homem.

Quando as pessoas passaram a gargalhar do homem com pinta de professor, ele retomou a postura. Tomou o livro arremessado nas mãos. Fechou o semblante. Iniciou-se numa caminhada pontual, marchante. Em pouco tempo já não era visto nem lembrado. Terminou-se outra performance no Centro de Artes.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

André, A Cara e a Coragem


Esse é o título desse filme do diretor Xavier de Oliveira que esteve em cartaz nos cinemas brasileiros no ano de 1971. No papel principal encontramos o ator Stepan Nercessian, ainda muito jovem, na pele do rapaz André, um mineiro de Carangola, de 17 anos, que foi tentar a sorte na cidade grande, mais precisamente, no Rio de Janeiro. Até aí, um roteiro bastante conhecido.

É um filme simples, de linguajar comum, de brasileiros pobres. Mostra um Rio de Janeiro de 40 anos atrás. Diferente em suas construções, nos carros, na fala das pessoas... André é um rapaz que passa o filme buscando um emprego pra se manter no Rio. Não quer voltar pro interior de Minas com o estigma de quem saiu e não se deu bem. O orgulho que tanta gente carrega consigo pelos caminhos das grandes cidades brasileiras.

Assisti esse filme pela primeira vez numa noite de sábado na TV Cultura. Naquela noite de sábado em que as pessoas saíam para se divertir, senti a alma confortada e sensibilizada pelo drama do jovem no filme. À época, procurei o filme pra baixar e não encontrei. Tampouco o achei nas locadoras. Certo dia, encontrei um site onde disponibilizavam o filme pra download. Baixei, mas apenas hoje à noite assisti o filme novamente. E me emocionei de novo. O cinema brasileiro tem aquele estigma de querer fazer filmes naturalistas, com palavrões chulos e discursos pseudo-intelectuais cheios de clichê. Não duvido que este filme também o tenha. Mas, há uma simplicidade que encanta. O rapaz é um sonhador, tantas vezes em silêncio. Destaque para a bela atriz Angêla Valério e para a cena em que eles saem para passear pela zona sul carioca.

Assistam e comentem as vossas opiniões.

Human Conditions


Olá amigos do blog. Como de praxe, eu sempre tento dividir algum tipo de música com vocês. Entre os mais diferenciados estilos e lugares, já deixei artistas da Armênia, Cabo Verde, Angola, Polônia, Noruega, Ceará e Paraíba. Meu maior gosto é compartilhar artistas desconhecidos, como se fosse um trabalho de garimpeiro, no intuito de encontrar uma jóia de grande beleza. Enfim, desta vez, o artista é bem conhecido e atuante no universo da pop music. Mas, mesmo assim, por quê não sugerir?

Richard Ashcroft tem uma consolidada carreira-solo, bem referendada pela mídia especializada do seu país, a velha Inglaterra. Mas, mesmo que você ainda não saiba de quem se trata essa postagem, certamente você conhece aquela música do grupo The Verve, bittersweet simphony, onde o vocalista sai esbarrando em todo mundo na calçada, no clipe. Devidamente apresentado, o moço nesse disco, faz um prato cheio para quem curte baladas de rocknroll. Eu destaco "Buy it in the Bottles", "Paradise", "Science of Silence" e "Man on a Mission". Mas, não impede que vocês se identifiquem com outras. Ashcroft tinha tudo pra ser o grande artista da música pop inglesa, mas acabou sempre ofuscado pelo sucesso de bandas como Radiohead e Oasis, sua Verve ficava ocultada, apesar do jeitão meio jaggeriano de se apresentar.

Eu recomendo esse disco. É bom pra ouvir no mp3 durante os malditos engarrafamentos, bom pra namorar, pra acordar...


se você não sabe quem é o cara em questão, talvez esse video facilite: http://www.youtube.com/watch?v=Zx3m4e45bTo

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Na Fronteira

Quem pode dizer que estrada é esta na foto ao lado? Em que país se localiza este montanhoso terreno cujo caminho se abre para a passagem humana?

Noutras oportunidades já tive a chance de dizer-vos do prazer que sinto em observar as imagens de lugares distantes, das paisagens longínquas. Na casa do meu avô, Emílio, tinha uma coleção completa da Enciclopédia Mirador, e sempre ficava a admirar os países: fazia relatórios sobre as principais cidades, montanhas, rios, mares e tudo que uma enciclopédia por fornecer de material para uma criança curiosa.

Não por acaso, o título do blog é Céu Sem Fronteiras. Tento, na medida do possível, aproximar o mais distante dos recantos para o cotidiano dos visitantes. Gostaria de viajar para longe, visitar os lugares que admiro apenas por fotografias e informações de leituras que variam dos romances às revistas geográficas. Confesso que Paris, Londres, Berlin, Nova Iorque... não são lugares que me atraem. Gostaria mesmo era de conhecer a Armênia, Geórgia, Tadjiquistão, Mongólia...

Um belo dia resolvi, através do Google Earth seguir uma estrada que cruzava todo o Turcomenistão até chegar na belíssima capital, Ashgabat, com seus minaretes de ouro e palácios suntuosos. A capital dos turcomenos fica na divisa com o Irã. Não pensei duas vezes e resolvi continuar a viagem, recolhendo fotos e informações sobre a geografia acidentada do local. Assim que saímos do Turcomenistão e entramos no Irã entramos numa cadeia abrupta de montanhas que, certamente, no decorrer dos séculos, serviu de fronteira entre os iranianos e os tártaros. A estrada é belíssima e continua até chegar ao planalto e encontrar outras estradas e cidades. Parei de acompanhar...

A foto exibida acima é de uma estrada logo que se passa da fronteira turcomena e chega-se nas montanhas iranianas.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Os Herdeiros de Lampião


Jornais e periódicos representam a circulação da verdade numa metrópole. Eles difundem os acontecimentos banais, os programas de governo, as ações policiais e os mais variados temas da sociedade, desde os buxixos da high society até as empresas armistícias das superpotências internacionais. Mas, nos últimos dias, surpreendeu-me a ausência de uma notícia nos grandes jornais de nossa cidade. Excepto pela veiculação em um pequeno periódico de um bairro da zona zul, não teríamos acesso a tão questionadora notícia. Trata-se do espancamento de um turista paulista na nossa cidade, ocorrido no último sábado à noite, mais precisamente no bairro de Boa Viagem.

Segundo o periódico de pequena circulação, um jovem de 17 anos, oriundo da capital paulista, estava no Recife a passeio, estava com os pais num hotel localizado na beira-mar do bairro de Piedade, quando resolvera que visitaria uma das boates da zona sul recifense. O rapazola resolvera ir caminhando pela orla para apreciar a brisa noturna, já havia percorrido cerca de dois quilômetros, quando foi surpreendido por uma kombi branca donde desceram três homens encapuzados e o colocaram dentro do veículo, rodando consigo por cerca de 40 minutos. Ainda na kombi, o jovem teve sua boca vedada por esparadrapo usado para ligar materias como madeira e alumínio. Ainda dentro do veículo, começou a ser torturado, sendo colocado no chão do veículo e tendo o rosto pisado por três homens que encontravam-se na parte da trás do carro, que ainda contava com o motorista, obviamente.

Ao final do macabro passeio, o mancebo foi levado para uma humilde residência com os olhos vendados. Colocaram-no numa cadeira e iniciaram uma sessão de tortura que entre outras coisas, contava com perfurações na barriga e nas costas, por objetos cortantes como faca peixeira, alicates e chaves de fenda. O rapaz contorcia-se de dor. Pequenos rios de sangue corriam de seu corpo. Todos os movimentos dos algozes eram desferidos com tranquilidade e maestria, de maneira que o rapaz não viesse a desfalecer pela dor, tendo em vista que estivera durante todo o tempo, com a boca selada. O rapaz olhava sem entender os carrascos que deixavam à mostra apenas os olhos. O jovem ainda levou uma pancada na boca com uma frigideira velha, começou a engasgar-se. Tiraram-lhe a venda da boca com a promessa de que se fizesse qualquer barulho seria morto ali mesmo, na hora, que nem caldo de cana.

A boca do rapaz estava toda vermelha de sangue, deve ter perdido os dentes dianteiros. Chorava como uma criança pequena, escorrendo aquela baba vermelha em seu peito branco. Clamava que parassem e era atendido com mais bofetadas de frigideira, contra a boca, contra o nariz e os olhos. No canto da casa de taipa, um fogo improvisado ardia há cerca de meia hora. Dourando em sua flama, uma colher de pedreiro. O jovem rapaz teve novamente a boca amarrada com força. Um dos algozes retirou a colher de pedreiro em brasa e dirigiu-se em direção ao turista. Sussurrou ao seu ouvido: “Você vai dizer na sua terra que toda vez que um nordestino for torturado no sul, os turistas receberão castigo dobrado aqui.” O rapaz com os olhos esbugalhados de medo, chorava silenciosamente enquanto a colher de pedreiro se aproximava de seu delicado peito. Ao encostar, um chiado de carne queimando foi escutado. O terrorista rapidamente tatuou no peito do moço as iniciais "HL". Ao final, o rapaz estava desfalecido.

Colocaram-no na kombi. O rapaz respirava, mas estava desacordado. A kombi seguiu pela madrugada silenciosa, os homens vestidos de quimonos pretos não foram importunados pela policia ou qualquer tipo de agente burocrático. Deixaram o moço desfalecido num terreno baldio próximo ao Hospital da Aeronáutica. Seguiram viagem. No outro dia, o delegado reuniu-se com o desesperado governador e a família do mancebo, procurando uma maneira de abafar o caso, pois traria prejuízos inimagináveis para a política turística do Estado. O delegado colocou todas as viaturas nas ruas a procurar por pistas e vestígios sobre os Herdeiros de Lampião.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Eleição e Democracia

No próximo domingo ocorrerá a grande festa da democracia, motivo pelo qual nossos governos se inflam e se assanham em discursos calorosos na defesa dos ideais da maioria, pelo bem estar social e pelo direito dos cidadãos desfavorecidos. Realmente, parece que nos meses que antecedem as eleições democráticas, uma onda cristã de igualdade e amor toma conta dos nossos espirituosos políticos. Eles concedem espaço para os mais humildes dos seres humanos se pronunciarem, abraçam crianças doentes em hospitais, velhos leprosos e beijam a face putrefata da miséria com o mais ardoroso carinho.

Assim como os pastores em suas igrejas comerciais, os políticos também se agarram a um deus salvador, o deus da democracia. Mas, que tipo de vantagem pode encontrar um ser que por essência é vaidoso e egoísta em dividir os direitos do poder com a população em geral? Não por acaso, o maior desafio de Cristo na Terra foi pregar a igualdade entre os seres, sabendo que nós somos os mais sovinas e invejosos dos seres vivos. Sua missão até hoje é um mistério, visto o número de pessoas que se apossam de suas palavras para aumentar a gordura de vaidade social. Os políticos não amam os pobres e a democracia laica simplesmente por uma nova interpretação da doutrina cristã, mas porque o povo, em sua imensa maioria, é uma massa ignorante e carente, tornando-se assim, isca fácil para as promessas e as ilusões vendidas. O povo atende com fulgor aos chamados de carreatas, passeatas e caminhadas pelas ruas dos bairros pobres ou do centro. Não porque acreditem na palavra salvadora do político, mas porque sentem um inefável prazer em estar próximo, caminhando lado-a-lado ao poderoso homem que todos os dias ocupa um espaço importante no horário nobre de suas vidas. Até que chegue o dia da eleição, o político seja eleito, e a promessa se torne, apenas, promessa.

O que vemos na política brasileira, a tão badalada Maior Democracia do Mundo, é uma única ideologia: do poder. Não se sabe o que é esquerda, nem direita, imagina-se que quem bota uma bandeira vermelha seja da esquerda, uma bandeira azul, da direita. Mas, os personagens que compõe esse quadro estão constantemente trocando de camisa. A única ideologia é a da vitória nas urnas e do desvio das verbas. Eu não quero participar desse espetáculo, embora seja obrigado a me deslocar da minha tranqüila residência, atravessar a rua entre milhares de pessoas desconhecidas e repugnantes, com falsos sorrisos nos lábios a pedir o voto para aquele candidato legal, com sorriso maquiado no santinho, colando no seu corpo durante a caminhada e mesmo você dizendo que já tem candidato ou que não vai votar em ninguém, muitos desses militantes insolentes ainda se sentem no direito de colar um adesivo no teu carro ou na tua camisa. Como os odeio!

Esse maldito voto obrigatório. Fico imaginando aquele cidadão exemplar, um jurisconsulto. Todos os meses entra no site da Câmara para verificar se seu bom candidato compareceu às sessões, se respondeu às suas expectativas, se votou aquilo que prometeu. Ao final de quase quatro anos, estabelece um rigoroso compêndio de anotações e decide que vai renovar seu voto naquele honesto deputado que honrou com o prometido na campanha anterior e é digno da sua confiança. Esse cidadão honesto, cumpridor dos seus deveres, conhecedor dos rigores da lei, respeitador da moral social, terá seu voto igualado com aquela senhora gorda e peituda que aprendeu a contar e a ler o número e o nome do candidato numa escolinha improvisada pelo parlamentar na semana anterior, onde a urna eletrônica fazia a vez de caderno e livro. Ganhou sete camisas com a foto e o número do candidato, para ela, o marido bêbado e desempregado e para cinco dos nove filhos que cria em seu barraco. No dia da eleição, arroxa contra o corpo adiposo aquela camisa e vai pedir voto, incomodar-me com seu palavreado escasso, sujar a rua com os santinhos arremessados contra os carros, gritar e fazer algazarra nas ruas. Os dois votos tem o mesmo peso. E acreditem, para muita gente entendida essa é a grande vitória da democracia.

Democracia esta que teve início com os gregos, mas que para aquele povo tão sábio não representava o direito para toda e qualquer pessoa, mas para aqueles que fossem capazes e provassem que tinham condições de escolher. Em São Paulo, acredita-se que o palhaço Tiririca será o deputado mais votado com quase 1 milhão de votos e levará consigo mais 5 deputados do escroto partido que o lança. Eu torço muito pra que isso aconteça! Que o inferno se instale! O palhaço Tiririca é o mais honesto dos candidatos: não sabe o que vai fazer, tampouco tem projeto, mas quer ser deputado para empregar seus parentes pobres que migraram do Ceará para “SumPalo”. Vejo as pessoas desesperadas fazendo campanha contra o palhaço, mas foram vocês que abriram a brecha pra ele e agora estão pedindo arrego. Não duvido que na próxima eleição saia candidato à presidência da República das Bananas.

Domingo é dia de darmos viva à democracia, dos amigos comunistas encontrarem o povo nas ruas, pois estes só sabem quem é o povo através dos livros ultrapassados e utópicos do velho marxismo. Será o dia de elegermos os palhaços de máscara e os travestidos de homens sérios. Sairei de casa para participar dessa festa porque sou obrigado, infelizmente, e sou um sujeito pobre que não pode se dar ao luxo de estar em desconformidade com a lei. Votarei nulo, pois é a única coisa que posso fazer por mim, já que pelos outros tem muita gente esperta querendo fazer.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Três Momentos de Aleksandr Herzen

Aleksandr Herzen foi um pensador russo de meados do século XIX que passou sua vida lutando pela independência de suas idéias, esquivando-se dos idealismos, tão em voga no esperançoso século XIX, tentando alertar a humanidade dos perigos de se entregar a teorias de libertação do espírito aprisionando-os noutro sistema tão opressor quanto. Fugitivo do governo russo, suas cartas e discursos entravam clandestinamente no país e eram motivos de debates acalorados por parte da intelectualidade da época. Sem abrigo em seu país e vendo a nau ocidental sacolejar por ventos desnorteados, nunca encontrou residência em ideologias utópicas, fazendo de sua independência intelectual, a única morada. Deixar-vos-ei com três passagens de Herzen, as quais me identifico por completo, razão pela qual divido com vocês, nesses tempos inflamados de eleição em que se costuma cair em cada conto de vigário...

Sobre as Massas:

“As massas querem manter a mão que descaradamente rouba-lhes o pão que adquiriram. (...) Elas são indiferentes à liberdade individual, à liberdade de expressão; as massas amam a autoridade. Ainda estão ofuscadas pelo brilho arrogante do poder, sentem-se insultadas pelos que ficam sozinhos. Por igualdade, elas entendem igualdade de opressão (...) querem um governo social que aja em seu benefício e não, como o atual, contra ele. Mas, governarem-se a si mesmas não lhes entra na cabeça.”

Sobre os Franceses:

“Não existe uma nação no mundo que tenha derramado tanto sangue pela liberdade quanto a francesa, e não existe povo que a entenda menos, que menos tente dar-lhe realidade (...) nas ruas, nos tribunais, em suas casas. Os franceses são o povo mais abstrato e religioso do mundo; o fanatismo das idéias entre eles vem acompanhado pela falta de respeito pelas pessoas, do desprezo pelos seus vizinhos – os franceses convertem tudo em ídolo do momento. Os franceses lutam como heróis pela liberdade e, sem pensar muito, arrastam a pessoa para a cadeia, se ela não concordar com a opinião deles. (...) O despótico salus populi e o sanguinário e inquisitorial pereat mundus et fiat justitia estão gravados da mesma forma na consciência dos monarquistas e dos democratas, (...) leia George Sand, Pierre Leroux, Louis Blanc, Michelet, e você vai encontrar por toda a parte o cristianismo e o romantismo adaptados à nossa própria moral, por toda a parte o dualismo, a abstração, o dever abstrato, virtudes impostas e uma moral oficial e retórica sem nenhuma relação com vida real.”

Sobre a História:

“Parece desnecessário citar exemplos, existem milhões deles. Abra qualquer história que quiser e o que é impressionante (...) é que, ao invés de interesses reais, tudo é governado por fantasias e interesses imaginários. Olhe o tipo de causas pelas quais derrama-se sangue, pelas quais as pessoas suportam sofrimentos imensos, olhe o que é louvado e o que é censurado, e você se convencerá de uma verdade à primeira vista triste – uma verdade que, após reflexão, é plenamente consoladora, a de que tudo é resultado de um intelecto perturbado. Onde quer que se olhe no mundo antigo, a loucura se encontrará quase tão generalizada como em nosso mundo. Aqui está Curtius atirando-se dentro de um poço para salvar a cidade. Ali um pai sacrifica sua filha para conseguir ventos favoráveis, tendo encontrado um velho idiota para matar a pobre menina para ele, e esse lunático não foi trancafiado, não foi levado para um hospício, mas foi reconhecido como sumo sacerdote. Acolá o rei da Pérsia manda açoitar o oceano, sem entender o absurdo do seu gesto, como tampouco seus inimigos atenienses, que queriam curar o intelecto e o entendimento dos seres humanos usando a cicuta. Que febre pavorosa foi a que levou os imperadores a perseguirem o cristianismo? (...)

E depois que os cristãos foram dilacerados e torturados por animais ferozes, eles mesmos, por sua vez, começaram a se perseguir e se torturar entre eles com mais fúria do que tinham sido perseguidos. Quantos alemães e franceses inocentes morreram assim, sem absolutamente nenhuma razão, enquanto seus juízes dementes achavam que estavam simplesmente cumprindo seu dever, e dormiam tranquilamente a poucos passos do local onde os hereges estavam sendo queimados até à morte.”

“A história é a autobiografia de um louco.” Herzen.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Uma Lembrança Furtiva

Isaiah Berlin falava da relação de Tolstói com Schopenhauer, de como o segundo havia influenciado o escritor russo, autor do monumental Guerra e Paz. Que o choque da ilusão do livre-arbítrio com a realidade das leis irretorquíveis que governam o mundo, constituem a maior tragédia da vida humana para ambos os escritores. A leitura prossegue em direção a Stendhal.

Há umas cinco linhas já não compreendo nada. O ventilador, mau contactado na tomada, liga e desliga de quando em vez. Antes que o mormaço me incomode, o motor dá um solavanco e volta a funcionar. O barulho produzido pela volta do funcionamento do aparelho eletrodoméstico me faz lembrar, não sei por que razão, do motor de um ônibus de viagem, trocando de marcha na madrugada, numa região indeterminável do interior da Bahia, entre Jequié e Vitória da Conquista. O ônibus cheio, num quase silêncio, às três horas da madrugada. Apenas o barulho de uma marcha de força. Provavelmente estamos atrás de um caminhão subindo um aclive qualquer de estrada.

Da janela, um espetáculo irresistível para o olhar recém despertado. Uma multidão de estrelas, infinita constelação. Com o rosto grudado na janela do ônibus, observo algumas quase a descer e tocar o chão. Estrelas de todos os tamanhos, brilhos, agrupadas. Como alguém pode identificar um desenho entre tantas? Como não criar desenhos entre tantas? Nunca tinha visto uma quantidade tão grande. E o que mais me impressionava era que algumas pareciam descer, como se fossem lâmpadas penduradas por uma haste invisível vindas do céu. Por um instante, pensei em reproduzir aquele espetáculo num imenso galpão de majestosas proporções, completamente escuro, com um teto altíssimo e hastes de diferentes tamanhos dependurando-se até próximo do chão, num simulacro do firmamento, onde nessa madrugada mesmo, eu pudesse abrir a porta do quintal de casa e me abrigar naquele galpão...

Assim como Rousseau, Tolstói costumava idealizar a terra e seus cultivadores. O mito do “bom selvagem” e o valor da vida familiar, a superioridade da emoção sobre a razão e uma vitória da moral sobre a virtude estética.

domingo, 5 de setembro de 2010

Stalker

"Que se cumpra o idealizado.
Que acreditem.
Que riam das suas paixões.
Porque o que consideram paixão,
na realidade,
não é energia espiritual...
mas apenas fricção entre a alma e o mundo externo.
O mais importante é que acreditem neles próprios
e se tornem indefesos como crianças.
Porque a fraqueza é grande,
enquanto a força é nada.

Quando o homem nasce,
é fraco e flexível.
Quando morre,
é impassível e duro.
Quando uma árvore cresce,
é tenra e flexível.
Quando se torna seca e dura,
ela morre.

A dureza e a força são atributos da morte.
Flexibilidade e a fraqueza são a frescura do ser.
Por isso, quem endurece, nunca vencerá."

domingo, 22 de agosto de 2010

O Amargo Remédio do Governo

“Realmente, em nenhum momento a compaixão se apossa tanto de nós como quando vemos a beleza tocada pelo hálito putrefato da devassidão.”

Nikolai Gógol

O que posso falar sobre música erudita para vocês, amigos leitores do blog? Muito pouca coisa, certamente. Nunca estudei teoria musical, tampouco possuo talento para envergar um violino, um clarinete, ou o mais popular dos instrumentos, o violão. A natureza não me beneficiou com seus dotes artísticos. Tenho a mão dura dos brutamontes e a impaciência dos ansiosos. Isso também vale para a escrita. Quantas vezes não desejei desenvolver um pensamento com maior destreza e desenvoltura e me vejo encarcerado pelos paredões da norma culta. A grande arte, seja qual for, é para corações e mentes sensíveis, no sentido mais amplo que esta palavra carrega.

O que tenho a dizer pode machucar os corações esquerdistas, os que se acham solidários e beneficentes, os que sonham com utopias socialistas e delírios democráticos. Não, não vou defender a elitização da sociedade. Que a sociedade ofereça mais e mais privilégios de equiparação social e lute contra a pobreza degenerante dos que sentem fome e não possuem o básico. Hei de defender essa idéia sã e justa. Ou não, talvez eu minta. Minta para agradar o leitor que me visita, meus amigos cheios de cartilhas partidárias. Não defendo nada que escape as minhas forças, nem nada que exija de mim a coletividade. Aprendi a dançar, mesmo que canhestramente, conforme a música.

Nesse agradável mês de agosto, aqui pela planície litorânea do Recife, desembarcou o Festival Chopin-Schumann dedicado aos 200 anos de nascimento desses dois compositores do século do Romantismo. Uma oportunidade para reunir grandiosos músicos do nosso país em devoção à arte maior da música. E tudo foi tão bem arquitetado! Escolheram dois excelentes teatros para as apresentações: o antigo e majestoso Santa Isabel e o aconchegante e acústico Teatro da UFPE. Os ingressos eram gratuitos, graças à contribuição de grandes empresas fomentadoras de maravilhosos eventos como este, além do apoio do Governo.

Apoiar a cultura, seja regional ou não, tem sido uma das tarefas mais festejadas pelos cidadãos no período eleitoral. O sempre necessário pão e circo. Acredito que até o ego de uma cidade pode ficar mais enaltecido quando os moradores observam, cotidianamente, o circular das mais variadas formas de arte. E o recifense, depois da geração manguebeat até a “nação multicultural” de hoje, é o maior exemplo. Depois dos cariocas, não conheço outro povo que se orgulhe mais de sua cultura popular. Mas, isso é outro assunto. Voltemos ao Festival Chopin-Schumann. No dia 12 de Agosto dirigi-me até o Teatro da UFPE na intenção de acompanhar o solo da pianista Andréia da Costa Carvalho. Cheguei uma hora antes e pude retirar o ingresso e acompanhar a chegada do público. Pois bem, de repente, quinze ônibus cheios de adolescentes, alunos das escolas públicas do Recife, começaram a chegar. Ao estacionar, já se ouvia a algazarra que faziam dentro do coletivo fretado pela Prefeitura. Vinham cantando músicas de brega e funk. Pensei comigo: “Eles devem ter selecionado os alunos mais interessados.”

Antes mesmo da pianista adentrar a algazarra era completa. O apresentador, José Mário Austregésilo, pedia silêncio para a juventude que respondia com gracejos, aproveitando-se do ocultismo da penumbra. Nem mesmo a pianista iniciara seu trabalho, ouvia-se “fiu-fiu”, “Tereza, rapariga!” e outras baixezas que só são permitidas em estádio de futebol. Levantei-me com um ódio profundo e voltei pra casa. Era pra ser uma noite de divertimento e devoção à música e terminou numa profunda dor de cabeça e reflexão sobre a promoção desse tipo de evento. Não se trata de preconceito contra alunos de escolas públicas. Se fossem alunos dos mais “respeitados” colégios do Recife, fariam o mesmo, ou parecido. O que me irrita é essa necessidade de casa cheia, de inserir a população na arte da música erudita como se fosse um remédio que se toma goela abaixo e fosse limpar a mazela social em que estão inseridos. Ora, não duvido que para alguns poucos alunos, aquele momento tenha sido sublime, mas para a grande maioria só deve ter feito aumentar o abismo interno em que se sentem em relação à classe culta. Mesmo gracejando, eles tinham consciência do quanto estavam incomodando, do desprezo da maioria da platéia por suas atitudes. Será que os organizadores desses eventos não percebem a agressão que estão cometendo para com o público, a artista que estudou a vida toda para atingir aquele grau de perfectibilidade, e o espírito dos compositores homenageados?! Ou estão cada vez mais interessados nas gordas verbas do Estado que exige apenas a participação popular? A grande arte não foi feita para a maioria e, não estou separando por classes sociais, mas por grau de sensibilidade. Faço côro ao filósofo Nietzsche quando põe na boca de Zaratustra que “a vida é um manancial de alegrias, mas onde quer que o populacho vá beber, todas as fontes se encontram envenenadas.”