segunda-feira, 26 de julho de 2010

A Rússia de Dostoiévski *

*Artigo escrito por mim, Odomiro Fonseca, para uma disciplina do mestrado no início de 2009.


Homem do seu tempo, Dostoievski não fugiu do embate político com seus adversários contemporâneos naquilo que mais o importava, o destino que a Rússia designaria no papel de guiar a Humanidade. Enquanto toda a Europa desavergonhadamente subestimava aquela nação saída da barbárie, que carregava orgulhosamente os ideais que os países da Europa ocidental enxotavam como o tsarismo, a ortodoxia, o nacionalismo, o anti-liberalismo, Dostoievski ia se abastecer de todo este arsenal reacionário para disparar em suas obras seu ódio à cultura européia, à religião romana e à modernidade.

Em O Diário de um Escritor, Dostoievski vai relatar, quase jornalisticamente, sua percepção sobre uma Rússia que se expandia contraditoriamente, ora para a sua face ocidental, ora para sua face asiática. No Diário, Dostoievski parece querer esmiuçar toda sua filosofia e psicologia a respeito de sua religiosidade e cravar na terra suas idéias que vacilaram durante a juventude. Tendo sua própria vida como testemunha, Dostoievski vai afirmar que a salvação do homem e o sentido para a própria vida se encontram na crença inabalável na existência do espírito e na fé do evangelho. Assim como aconteceu consigo próprio, o homem deveria passar por uma transformação, passando de pecador a homem salvo pela graça. Essa transformação seria nacional e internacional. A Rússia haveria de se transformar e retomar sua tradição religiosa ortodoxa e servir de espelho convexo para toda a Europa, e posteriormente, todo o mundo.

O Diário de um Escritor foi escrito enquanto Dostoievski colhia fontes para o seu derradeiro romance, Os Irmãos Karamazov, terminado semanas antes de sua morte. Nesse último romance, Dostoievski vai lapidar seus personagens na tentativa de atribuir um sentido para a Rússia e para a humanidade, sendo o jovem Alexei Karamazov, o exemplo a ser seguido, e o starets Zóssima, seu filósofo da nova era. Alexei, esse homem novo, transformado, brando, capaz de amar e de profunda religiosidade, será o personagem que restará desta teodicéia/antropodicéia em que os répteis se devoram mutuamente. Nas páginas do Diário, Dostoievski, mais político do que nunca, vai lançar seu grito de ódio à cultura européia, vai defender a tradição russa iniciada com Pushkin e expressará abertamente sua visão reacionária de abarcar o mundo nos braços da igreja ortodoxa. Vejamos o que diz no discurso em homenagem a Pushkin:

“Qual o significado para nós da reforma de Pedro, O Grande? Constituiu somente em introduzir entre nós os costumes europeus, a ciência e as invenções? Reflitamos um pouco a respeito. Talvez Pedro, O Grande, o empreendesse, a princípio, somente com um fito inteiramente utilitário; mais tarde, porém, obedeceu com toda certeza a misterioso sentimento que o arrastava a preparar à Rússia imenso futuro. O próprio povo russo somente viu nele, a princípio, o progresso material utilitário, mas não tardou em compreender que o esforço que o obrigavam a compreender devia conduzi-lo mais longe e mais alto. Elevemo-nos para logo à concepção da universal unificação humana. De fato: o destino do russo é pan-europeu e universal. Chegar a ser russo verdadeiro signifique tão-somente ser irmão de todos os homens, homem universal, se assim posso me exprimir. A divisão entre eslavófilos e ocidentais nada mais é do que o resultado de gigantesco mal-entendido. O russo verdadeiro interessa-se tanto pelo destino da Europa, pelo destino de toda a grande raça ariana como pelo da Rússia. Quem quiser aprofundar a história da Rússia, desde Pedro, O Grande, verá que isso não é simples sonho meu. Ficará comprovado o nosso desejo, o desejo de todos, de união com todas as raças européias no caráter de nossas relações com elas, no caráter de nossa política de Estado. O que tem feito a Rússia durante dois séculos senão servir mais à Europa do que a si mesma? E tal não se poderia atribuir a ignorância dos nossos políticos. Os povos da Europa ignoram até que ponto os amamos. Todos os russos do futuro verão que mostrar-se verdadeiramente russo se importa em procurar um terreno de conciliação para todas as contradições européias; e a alma russa o proporcionará, a alma russa universalmente unificadora que pode englobar no mesmo amor todos os povos, nossos irmão e pronunciar, afinal, as palavras das quais resultará a união de todos os homens segundo o evangelho de Cristo. Sei perfeitamente que minhas palavras podem parecer eivadas de exagero e fantasia. Seja; mas não me arrependo de tê-las pronunciado. Tinha de pronunciá-las, sobretudo no momento em que honramos o nosso grande gênio russo, o que soube salientar da melhor maneira a idéia que as ditou.”[1]

Quando Dostoievski fala em abarcar “toda a grande raça ariana” não o diz com o significado preconceituoso que viria a rotular o pensamento fascista, até porque o próprio homenageado do discurso, Pushkin, era descendente de africano (Etíope) e não era, portanto, ariano.

A raiz do pensamento do Dostoievski amadurecido está alicerçada profundamente no pensamento religioso e na crença da imortalidade da alma, sem a qual seria simplesmente impossível tolerar a vida e sustentar o amor à Humanidade. Dois dos mais interessantes personagens de Dostoievski: Ippolit, de O Idiota; e Kirilov, de Os Demônios, vão justificar o suicídio, porque “o homem é o senhor do próprio destino.”[2] Dostoievski cria o suicídio lógico, onde o homem se torna Deus e assume o controle do seu futuro. Esses demônios revolucionários seriam os comandantes de uma nova era: “quando a noite caísse sobre a Rússia e a terra chorasse por seus antigos deuses.”:[3]

Em resumo: está claro que sem crenças, o suicídio se torna lógico e até inevitável para o homem que apenas se elevou acima das sensações da besta. Ao contrário, a idéia da imortalidade, prometendo a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Nisto parece existir contradição. Se, distinta da vida terrestre, temos outra celeste, para que fazer muito caso desta aqui embaixo? Mas é somente pela fé na imortalidade que o homem se inicia no fim razoável da vida sobre a Terra. Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação ao planeta diminui, e a perda do sentido supremo da vida conduz incontestavelmente ao suicídio. E se a crença na imortalidade da alma é tão necessária à vida humana é por ser o estado normal da Humanidade, provando que a imortalidade existe. Em uma palavra: esta crença é a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência geral para a Humanidade.

Eis o objetivo do meu artigo, eis a conclusão a que desejava que cada um chegasse quando o escrevi.”[4]

A metamorfose do homem pecador em homem salvo pelas palavras do Cristo é um conceito muito presente na obra de Dostoievski, onde o Diário de um Escritor e Os Irmãos Karamazov parecem se completar, onde o primeiro é a explicação da obra de arte que vem em seguida. As resignações de Dimitri Karamazov, e de Raskolnikov também, constituem a mudança de uma nação, que substituirá a paixão pelo jogo, pelo álcool e pela libertinagem, por uma nova vida numa terra distante, a Sibéria, onde a terra será lavrada pelas lágrimas arrependidas e consoladas pela fé conquistada e inabalada. O Homem Ridículo também se encontra no Diário e também passa pelo batizado da fé e pela crença repentina, que acontece num momento de alucinação, num sonho ou numa crise epiléptica. Na sociedade russa, e também nas grandes cidades de todo o mundo, o paradoxo do desejo humano pela compreensão de alguma verdade produz os antagonismos sociais, onde aos querem tudo é dado o crime e aos que nada querem, é dado o suicídio.

“E, não obstante, todos os homens, desde o sábio até o último dos malfeitores, todos querem o mesmo, procurando-o por meios diferentes... Mas não posso equivocar-me demasiado, porque vi a Verdade, sei que todos os homens podem ser belos e felizes sem deixarem de viver sobre a Terra. (...)

Amai-vos uns aos outros, nada mais. Não seria preciso fazer mais; todo o mundo é capaz de compreender.

Trata-se de verdade antiga, repetida milhões e milhões de vezes, e que, entretanto, não criou raízes em lugar nenhum. É necessário continuar a repeti-la.”[5]

A fé verdadeira, para Dostoievski, passava distante da Santa Sé romana, onde a figura do papa é retratada como sendo o “satanás de tiara”(ZWEIG, 1935: 142-143), e onde o conto de Ivan Karamazov conhecido como O Grande Inquisidor vai romper definitivamente qualquer ligação de sua fé ortodoxa com a fé romana, quando o inquisidor nonagenário diz ao Cristo:

Nós não estamos contigo, mas com o outro, desde oito séculos. Há exatamente oito séculos nós aceitamos dele, o que Tu rejeitaste com indignação: o último dom que ele Te ofereceu, mostrando-Te todos os reinos da Terra; nós aceitamos dele Roma e a espada de César, nos declaramos reis terrestres.”[6]

Dostoievski ajoelhava-se perante os ícones da Igreja Ortodoxa e murmurava as rezas redigidas em língua eslava arcaica. Assim como Alioscha Karamazov representava o novo homem russo, missionário, o starets Zóssima era o filósofo do Terceiro Reinado, que pregava a libertação da escravidão do amor-próprio através do amor ao próximo. Ambos os personagens viviam no humilde convento da despercebida cidade de Skotoprigonevsk (Staraya Russa), nos confins da velha Rússia, onde as tradições e os personagens típicos afloravam suas individualidades. Deste cenário rural e atrasado deveria emanar para a humanidade uma nova visão de mundo, uma missão:

“Nossa missão - e os russos começam a ter consciência disto – é grande entre as grandes missões. Deve ser universalmente humana. Deve consagrar-se ao serviço da Humanidade, não só da Rússia, não só do mundo eslavo, do paneslavismo, mas ao serviço da Humanidade inteira. Meditem e convirão em que os eslavófilos assim o reconheceram. Daí nos exortarem a que nos mostremos mais francamente russos, mais escrupulosamente russos, mais conscientes de nossa responsabilidade de russos; visto compreenderem que precisamente a missão característica da Rússia consiste na adoção dos interesses intelectuais de toda a humanidade.”

[7]

O conjunto da obra de Dostoievski não é afetado pelo seu furor religioso nem pelas suas concepções políticas reacionárias. Muitos pensadores subseqüentes, como Nietzsche e Freud, entre tantos outros, declararam a importância deste escritor para a literatura universal e para as ciências humanas, inclusive. Suas declarações são importantes relatos de um homem que viveu e sonhou transformar a realidade de seu país através do que acreditara ser o melhor, verdadeiramente, para seu povo. Dostoievski foi o missionário de uma Rússia que não existe mais, de um sonho ridículo. Espero ter conseguido mostrar como o mito religioso, na última década de sua vida, encontra-se perpetrado em sua literatura, sua relação política face à postura que a literatura russa deveria seguir nos embates com os adversários ocidentalistas. Seus personagens, em suas solidões e acessos de cólera, representam mais do que o simples discurso de si, mas ecoam uma voz nacional, um grito solitário que encontra guarita na universalidade da dor, do desespero e da esperança


[1] (DOSTOIEVSKI, 1967: P. 223-224)

[2] (NOGUEIRA, 1974: 37)

[3] (NOGUEIRA, 1974: 39-41)

[4](DOSTOIEVSKI, 1967 P. 165)

[5] (DOSTOIEVSKI, 1967: 193-194)

[6] (NOGUEIRA, 1974: 125)

[7](DOSTOIEVSKI, 1967: P. 103)

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Num Lugar Distante

Hoje resolvi fazer minha primeira tradução do russo para o português. Trata-se da composição do multi-instrumentista armeno Mikael Tariverdiev. Chama-se "Где-то далеко", ou seja, "Num lugar distante". Deixarei ao final o link com o vídeo e a música para que possam baixar. Ela é interpretada por um dos maiores cantores soviéticos, o senhor Yossif Kobzon. Espero que gostem, é um letra inspiradora. Em russo, possui uma combinação de letra e melodia perfeita. Vou traduzir sem ter que rimar. Espero que gostem. Passei uma hora fazendo essa tradução com o dicionário!

"Где-то далеко" "Num Lugar Distante"

Я прошу: хоть ненадолго, Eu pergunto: mesmo que rapidamente,
Грусть моя, ты покинь меня, Minha tristeza, me abandonas.
Облаком, сизым облаком Nuvem, cinzenta nuvem
Ты полети к родному дому, Dispersa-te pra outra casa,
Отсюда к родному дому. Daqui pra outra casa.

Берег мой, покажись вдали, Orla minha, mostra a distância,
Краешком, тонкой линией, Linha fina, bordejante
Берег мой, берег ласковый, Orla minha, orla querida
Ах до тебя, родной, доплыть бы, Ah, pra ti, querida, nadam,
Доплыть бы хотя б когда-нибудь. Nadam embora sem chegar.

Где-то далеко, где-то далеко Num lugar distante, num lugar distante
Идут грибные дожди. Vai chover cogumelos.
Прямо у реки в маленьком саду Perto do rio num pequeno jardim
Созрели вишни, наклонясь до земли. Cereja madura caindo no chão.
Где-то далеко в памяти моей Num lugar distante dentro das minhas lembranças
Сейчас, как в детстве тепло, Agora, como na aconchegante infância,
Хоть память укрыта такими большими снегами. Mesmo que as lembranças estejam cobertas de forte nevasca.

Ты гроза, напои меня, Ó tempestade, dá-me de beber,
Допьяна, да не до смерти. Embriaga-me até próximo de morrer.
Вот опять, как в последний раз, Cá estou, pela última vez,
Я все гляжу куда-то в небо, A observar um ponto distante no céu,
Как будто ищу ответа... Como quem busca uma resposta...

Я прошу: хоть ненадолго, Eu pergunto: mesmo que rapidamente,
Грусть моя, ты покинь меня, Minha tristeza, me abandonas.
Облаком, сизым облаком Nuvem, cinzenta nuvem
Ты полети к родному дому, Dispersa-te pra outra casa,
Отсюда к родному дому. Daqui pra outra casa.



link para baixar a música: http://www.4shared.com/audio/RzEouOla/02-_-__-__.htm

terça-feira, 13 de julho de 2010

Uzyna Uzona

Existe dia comum? Eu acho que existe. São aqueles dias em que tudo é planejado: o horário do trabalho, as horas de estudo, o economizar da existência e tantas centenas de possibilidades. Mas, entre os dias comuns, existem dias que fogem um pouco da normalidade: o pneu do carro que fura indo pro trabalho, uma poesia que te joga pra fora da concentração antiga, uma horinha de happy-hour no cotidiano e mais outras tantas probabilidades. Há ainda aquele dia extraordinário, em que tudo fugiu ao controle: um foda-se ao trabalho, o entorpecimento completo pela arte ou o envenenamento dos deuses modernos. Quem foi assistir os quatro dias de encenação das Dionisíacas no matadouro de Peixinhos, certamente não dirá que qualquer uma daquelas noites foi um dia normal em sua vida.

O Teatro Oficina Uzyna Uzona, capitaneado por Zé Celso Martinez, baixou na cidade de Olinda, no Nascedouro (antigo Matadouro Municipal) de Peixinhos e embriagou o público com seu teatro surrealista, erótico e histórico (definições minhas, não sei se os críticos de teatro classificam desta forma...). Sim, histórico! Nos três dias em que freqüentei o espetáculo (não fui na quarta), tive a oportunidade de mergulhar na história do teatro brasileiro na peça sobre Cacilda Becker. A linguagem do teatro não é a mesma do historiador. É uma linguagem destinada à máxima expansão (ao menos no teatro de Zé Celso). A peça de Cacilda havia me chocado, nunca tinha visto nada parecido, nem na duração da peça que foi acabar às duas horas da madrugada, tendo começado às sete da noite. A atriz-principal comandando uma energia de movimentos tresloucados, corpos que se jogam sobre os abismos de nossas idéias. Voltei pra casa cansado, mas certo que no outro dia não haveria de ficar em casa por hipótese alguma. Era o dia das Bacantes de Eurípedes. Um texto de quase três mil anos. O tempo, por si só, já não é fascinante? Levei vinho e outros propulsores de consciência para assistir o espetáculo. Um misto de medo e desejo. Os atores, vez por outra, arrancam pessoas da platéia e inserem no ritual.

“Ele não sabe que o seu dia é hoje. Ele não sabe que o seu dia é hoje. Ele não sabe que o seu dia é hoje. Ele não sabe que o seu dia é hoje...” Repetindo esta frase, ao som de uma percursão alucinante, os atores armaram a cena para o ritual de sangramento do touro. Eu vi. Eu vi três touros sangrarem até a morte. E eles lutaram pela sobrevivência! Na batalha contra os homens e suas armadilhas, a natureza rendeu-se e o sangue fora derramado para o oferecimento aos deuses mais profanos. E quem disse que não estávamos num matadouro público?! As paredes pesadas, azulejos antigos, sangue, choque, nudez e morte. O matadouro de Peixinhos nunca mais será o mesmo. A comunidade compareceu, entre moleques baderneiros que estavam pra ver os corpos nus, haviam os que nunca mais seriam os mesmos. Dona Rosa, uma senhora de cabelos brancos e corpo de beleza bizarra, passou a integrar o espetáculo desde o momento em que sua nudez foi revelada, gerando uma euforia em todos os moradores de Peixinhos. Talvez, secretamente, desejassem aquela nudez para si. Despir-se de toda a censura corporal, num gesto de liberdade acima de tudo.

Peço desculpa por não saber o nome das atrizes. Mas, o corpo em sua liberdade revela mais que o erotismo animal. Em vida, poderei ver corpos femininos tão fascinantes como os de Cacilda e da Pombagira teuto-japonesa? Um sentimento de singeleza e agressividade. Se punham a tremer ardorosamente, para depois revelarem um tímido sorriso quando fora de cena se encontravam... Eu peço que vivam! E que sejam eternos os vossos corpos! A carne foi celebrada. E justo num matadouro!

Diálogos perdidos, visão enegrecida, embriaguez, frases assimiladas, beleza, feiúra, torpeza, sublimidade. Desde sábado queria encontrar algo pra dizer. Pensei em deixar a poeira sentar. Gostaria de ser frio como uma lâmina cabralina. Mas, cá estou, a sentir falta do soco de liberdade, da porrada surrealista. A noite solitária num bairro de subúrbio, silenciosa. A ausência da orgia. Deparo-me com as minhas obrigações mais cacetes, como dizia Graciliano. Bye bye, Brazil! O circo quando passa, arrasta as almas sonhadoras. Nessa noite, desejo sair pelo Brasil atrás desta companhia infernal. Abraçar-me com Pombagira num gozo diabólico e nunca mais voltar à vida.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Ednardo


No ano de 2006, assisti um dos shows mais marcantes da minha vida, nesses 29 anos de existência. À época, tinha 25 anos, e Belchior cantava: "Tenho 25 anos de sonhos, de sangue e de América do Sul..." Entre uma canção e outra, o cearense Belchior, lembrando o velho Vinícius de Moraes, dava e pedia a benção aos grandes mestres da música nordestina e brasileira. Entre os artistas que ele citava, ele dizia: "Minha gente, escutem Ednardo. A juventude não conhece Ednardo!" E aquele nome que já tinha escutado noutras ocasiões, ficou na minha cabeça. Baixei um disco e nunca escutei. Ficou perdido numa das quatro pastas de música que tenho no meu computador. Há cerca de um ano e meio, resolvi escutar o tal disco de Ednardo, depois de tanto ouvir os pedidos de Belchior. E nessa manhã em que escrevo, amanheci ouvindo as trovas de Belchior e lembrei-me que nunca dediquei uma postagem sequer ao imenso talento de Ednardo.

Esse disco que divido com vocês, chama-se O Romance do Pavão Mysteriozo (1974). A mais famosa das canções, título do disco, foi gravada por Ney Matograsso. Mas, esse disco é de uma riqueza, de uma brasilidade incomum. Tem músicas de frevo, rock e cantoria. Atabaques e oboés dividem o mesmo espaço em harmonia. A bela voz de Ednardo, aliado às suas composições cheias de ricos significados, preenchem completamente o ambiente. Escuto esse disco há um ano e meio e, tenho certeza, estou muito longe de enjoar. Pra quem conhece, essa minha resenha é inútil. Mas, pra quem nunca se permitiu, taí uma boa oportunidade. Ednardo é cearense e começou a carreira musical junto com Belchior e Amelinha, num projeto chamado Pessoal do Ceará.

Sempre tento compartilhar com os amigos as músicas que gosto. Culpa desse meu espírito de DJ (o espírito de Portanov ainda ronda). É isso, não quero ficar enchendo linguiça. Espero que Ednardo não fique chateado por eu estar colocando suas músicas pra outras pessoas sem que ele ganhe nada com isso. Portanto, se vocês gostarem da música, comprem o CD. E Ednardo, faça um showzinho aqui por Pernambuco!

CD de Ednardo, O Romance do Pavão Mysteriozo (1974): http://www.4shared.com/file/9pLW9pw7/Ednardo_-_O_Romance_Do_Pavo_My.htm


terça-feira, 6 de julho de 2010

Fronteiras

Nesses tempos de Copa do Mundo (calma, sei que ninguém agüenta mais falar sobre isso!), é comum grupos de amigos se reunirem e debaterem sobre os países envolvidos na competição. Fazemos escolhas por determinada seleção e, de repente, parece que a Eslováquia ou Gana estão tão próximos de nós. Questionado se torceria pela Alemanha ou a Argentina, declarei-me torcedor da seleção européia, e alguns amigos questionaram que eu não tinha espírito latino-americano. Pois bem, não tenho mesmo! Como morador do Recife, sinto-me mais próximo da cultura africana e ibérica do que dos países do Cone sul. Além do mais, a convivência com outros sulamericanos é acidental. A pessoa mais próxima que tive/tenho contato é o colombiano Castro, uma figura de uma riqueza de personalidade incomum. No mais, se não fosse por Jorge Luís Borges e Julio Cortázar, a Argentina seria tão distante quanto a Mongólia.

Com o advento da era pós-moderna, as fronteiras caíram e as peculiaridades tendem a se tornar cada vez mais homogêneas. O cidadão de qualquer metrópole há de se entender, desde que encontre uma língua em comum, nos trâmites culturais com seu interlocutor. E não digo isso apenas em relação a outros países. Recentemente, em visita ao Vale do Piancó, na Paraíba, terra de meus ancestrais, tive a oportunidade de verificar a modernização do cotidiano de uma pequena cidade como Boa Ventura, que consta seus quase dez mil habitantes. Quando era criança e visitava a cidade dos meus pais, era levado para a missa com a melhor roupa, normalmente uma camisa de linho abotoada até o pescoço que me deixava num fricote aperreado. Depois, ia brincar na praça da cidade, onde muita gente se sentava pra assistir o Jornal Nacional na televisão pública. A trilha sonora desses momentos era o forró, que à época nem se chamava pé-de-serra, pois não havia o forró eletrônico naquele vale. Não quero parecer excessivamente romântico, mas hoje, bem ou mal, a missa é freqüentada por uma população senil que olha com desaprovação a indiferença dos jovens que passam o dia nos bares ouvindo em suas camionetas com sons explodindo pra todo lado, músicas que falam de raparigas, cachaça e carros potentes. A televisão pública é dispensável, pois todos têm televisão em casa com antenas parabólicas. Quem sou eu para julgar se estão certos ou errados, se não vivo a realidade deles? Mas, a distância cultural entre um jovem de 25 anos de Boa Ventura e de Recife foi reduzida imensamente, havendo ganhos e perdas nessa constatação.

Sinto vontade de afirmar àqueles que esperam alianças com o vizinho apenas pela proximidade de nossas residências, que essas fronteiras me são indiferentes. Há uma nova terra fronteiriça que eriça de minha pele, que escapa aos muros e cercas, mas que constitui o verdadeiro terreno de minha existência (e sei não apenas minha). Um mundo que se apinha e se choca entre a tradição e a modernidade, entre o Engenho do Meio e o planeta, entre o apego e a vivência num mundo de eternas mudanças. Entre o ideal e o real, existe ainda um abrigo seguro para poucas almas, o mundo das artes eternas, onde as fronteiras não levantam as barricadas, a morte não encontra o tempo e o homem sobrepuja a nacionalidade.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Semana Braba

Hoje completa uma semana que uma seqüência de fatos tem me tirado o juízo. “Esse azar sobre você como uma nuvem que não chove.” Na última quinta dirigia-me para a Ilha de Itamaracá intencionando divertir-me com uma rapaziada que alugou uma bela casa na praia de Enseada dos Golfinhos. Tudo perfeito, carro cheio: ventilador, colchonete, roupas de banho, amig@s. Mas, quando passava por Igarassu, meu fusquinha Jesus resolveu me abandonar. Na realidade, sou o culpado de tudo, pois esqueci de colocar óleo no motor. Tudo bem, já tenho me penitenciado todas as horas por essa idiotice. Resta-me esperar um milagre e que Jesus não tenha batido o motor. Ainda preciso fazer o reboque de Igarassu até a casa do mecânico Zezinho, homem de confiança de toda minha família há uns trinta anos. Ele me deu uma esperança que talvez resolva. Mas, falta-me a grana pra rebocar o abençoado do Fusca.

Não satisfeito com esse imbróglio em quatro rodas, minha cadela Lilica faleceu após quase 12 anos de convivência conosco. Uma morte triste e lenta. Tão lenta que tivemos que acelerar pra evitar o sofrimento da nossa amiga. Acredito que ela estava com algum câncer, porque muito rapidamente a pobre cadela definhou. Em cerca de três meses, ela tornou-se muito magra, quase que só com os ossos. Já não escutava nosso chamado, teimava com qualquer coisa. Ela nunca foi uma cadela obediente. Desde a primeira semana em que chegou aqui em casa no ano de 1999, mordia todo mundo com seus dois meses de vida. Minha mãe decretou que ela deveria voltar pra casa dos donos. Levamos, mas na primeira noite, sentimos falta dos seus dentes em nossos calcanhares. Fomos buscá-la no outro dia. Ela fazia companhia a todos. Entendia a linguagem dos homens. Quando a gente dizia a palavra “banho”, ela se emburacava embaixo de alguma cama e mordia quem se aproximasse. Eu fui vítima de suas mordidas umas boas cinco vezes. Lilica era uma vira-lata muito bonita. Seu pai era um russkie siberiano e sua mãe uma doberman. Sua vida de exclusividade canica ficou ameaçada com a chegada de Bianca, uma pitbull que hoje tem quase quatro anos. Ao contrário do que se possa imaginar a maioria das pessoas pela propaganda negativa que a televisão faz contra essa pobre raça canina, ela é mansa. Sempre foi criada solta, brinca com minha sobrinha de dois anos e é extremamente obediente, muito mais do que a recém-falecida Lilica.

Ontem, Lilica amanheceu muito debilitada. Não conseguia se levantar. Minha mãe colocou um pires com leite. Ela bebeu e vomitou. Seus olhos sempre tão espertos, estavam longe, pouco se mexiam. Sua respiração era lenta. Chovia e ela não saia da garoa. Uma situação de cortar qualquer coração. Resolvemos que seria melhor sacrificar a pobre cadela. Fui chamar a veterinária. Ela disse que chegaria em meia hora na nossa casa. Minha irmã começou a chorar. Minha mãe disse que ia embora pra não ver. Eu fiquei olhando pra ela. Deitada no chão. Ela não tinha consciência que aquela era sua última meia hora de vida. Independente da “vontade superior”, nós estávamos delimitando sua vida e sua morte. Aquilo me constrangia deveras. Pensava que poderia ligar pra doutora e cancelar aquele ato fúnebre de caridade. Talvez ela se recuperasse e voltasse a engordar e ter alegria. Trancamos a pitbull no quintal pra que ela não presenciasse o óbito de sua amiga cotidiana. A doutora chegou. Muito educada, tratou de me explicar como seria todo o processo. Reconheceu Lilica. Disse: “Ah, eu me lembro dela lá no consultório!” Lilica nunca teve problema de saúde, era um vira-lata legítimo! Deve ter ido com minha irmã tomar banho e cortar o pêlo. A doutora pegou na sua pata, ela deixou sem resistência. Aplicou a injeção com anestésico. Ela soltou um grito uivado. Levantou a cabeça. Parecia que estava percebendo o que estávamos fazendo. Que estávamos tirando sua vida. Olhava penosamente para mim, à medida que ia descansando sua cabeça no chão, revirou o corpo pela última vez. Naquela manhã, era a primeira vez que a via mudar de posição. A doutora aplicou a segunda injeção com o veneno. Ela tentou esboçar uma reação. Esticou-se, abriu o focinho e esticou a língua, urinou-se deitada no chão. Seus olhos foram ficando cada vez mais distantes. Naquele momento, pensei nos dias em que estivemos juntos. Nas madrugadas em que eu abria a porta do meu apartamento, sentava-me na escada e ficava a olhar para o céu. Contava-os aviões que chegavam. Enquanto um voava sobre minha casa, outro já se avistava no horizonte, pequenino, como uma estrela cintilante que se aproxima. E Lilica ficava ao meu lado, sentada, certamente a pensar no universo que compõe seu mundo canino. Agora, ela se estirava pela última vez, naquele chão molhado de manhã chuvosa, garoa triste que acompanhou seu passamento. Já não respirava nem esboçava sinal de vida. Morreu com os olhos abertos, olhando pra longe. O que se passava em seu pequenino cérebro naqueles vinte segundos em que acompanhou sua despedida da vida. Via sua vida se esvaindo e ficando apenas aquele físico preto, os olhos abertos. Minha irmã gritava de tanto chorar. O homem da carroça pegou-a e colocou no saco. Prometeu-nos que iria enterrá-la. Pagamos ao homem e a doutora. Ficou um espaço a menos em casa. Normalmente, a vida de um animal tem menos valor do que a de um ser humano. Aliás, que valor o resto da natureza tem para nós?! Saí pra passear com a outra cadela, Bianca, que até agora está triste e chorona. Na minha cabeça, tomei a melhor atitude em poupar seu sofrimento, mas desde ontem, a luta da cadela, mesmo naquelas condições fragilizadas, pela vida me comoveu. Ela parecia querer sugar um resto de alguma coisa que talvez só ela soubesse que existia.

Passei todo o dia de ontem numa tristeza medonha. Pra completar, esse computador em que escrevo, não satisfeito com os problemas que me assolam, resolveu parar de funcionar. Meu amigo Juca (quem precisa consertar computador ligue para 81-8785 9785) esteve aqui, mas me avisou que meu HD está querendo morrer (dessa vez não vou sacrificá-lo). Preciso de um novo, de fazer logo um backup deste. Foda! Mais um problema. Enquanto escrevo essa postagem, meu computador já desligou sozinho uma vez. Só me falta essa! Já não me bastasse os débitos de dinheiro emprestado que pego com amigos, meu carro lá em Igarassu necessitando de reboque, a falta de dinheiro pra recarregar o celular, a internet atrasada onde fico suplicando aos funcionários do provedor que esperem mais uma semana, e minha bolsa que sairá semana que vem, findará tão breve o dinheiro caia na minha mão. A dissertação... prefiro nem comentar! Estou com centenas de anotações e citações, mas que não consigo ter a mesma desenvoltura que tenho pra escrever essa postagem, onde as palavras vomitam espontaneamente. Sempre coloco um imenso peso na primeira fase, de maneira que ela ainda não saiu. Enfim, estou prestes a enviar meu ceticismo para as cucuias e ir num terreiro forte pra tirar essa urucubaca. Por hoje é só. Espero que em breve possa aparecer por aqui com notícias mais consoladoras e um mínimo de instabilidade. Durante muito tempo, estive a procura de uma namorada, achando que a estabilidade amorosa me faria bem. Mas, calejado como estou, o melhor é ficar sozinho, deixando para a aleatoriedade da vida, os prazeres momentâneos. Nada de eterno! Adeus!