terça-feira, 26 de outubro de 2010

Dostoiévski e Turgueniev: Ímpetos Juvenis

Durante o segundo semestre de 1845, iniciou-se em São Petersburgo uma amizade entre dois dos maiores escritores russos de todos os tempos, os jovens Ivan Turgueniev, então com 25 anos e Fiódor Dostoiévski, com 24. Ambos respaldados pelo carinho e proteção do crítico Vissarion Bielinski. Dostoiévski estava vivendo a glória que todo o jovem escritor sonha, havia escrito seu primeiro romance, Pobre Gente, e era convidado para os mais importantes e respeitados bailes da capital. Os condes Odoiévski e Solugob, escritores da nobreza russa, disputavam sua presença em suas reuniões e saraus. O tímido escritor mergulhava num universo de sonhos e glórias. Turgueniev também lançava suas primeiras novelas no Almanaque de Petersburgo e causou uma impressão formidável no impressionável Dostoiévski, conforme podemos observar em carta redigida ao seu irmão mais velho, Mikhail Dostoiévski:

“O poeta Turgueniev regressou de Paris há pouco (você deve ter ouvido falar disso), e tomou-se de amores por mim à primeira vista, com tanta dedicação, que Bielinski diz que ele se apaixonou por mim! E que homem ele é, irmão! Quase me apaixono por ele também. Poeta, aristocrata, talentoso, simpático, rico, inteligente, bem-educado e com 25 anos de idade. E, para completar, um caráter nobre, extremamente direto e franco, e formado em boa escola. Leia seu conto Andrei Kolóssov nos Anais da Pátria; é a cara dele, embora ele não estivesse pensando em fazer um auto-retrato.” (FRANK, 2008;215)

A nova amizade, tão promissora, começou a dar espaço para a imensa vaidade de ambos, especialmente de Dostoiévski. Por trás de toda sua timidez e doença nervosa (primeiros sinais da epilepsia), Dostoiévski escondia uma vaidade profunda. Os outros literatos de seu tempo, do grupo de Bielinski, começaram a se incomodar com suas opiniões extremadas, quase sempre coléricas, suas defesas de que o socialismo nascente na França, nada mais era do que uma vertente do cristianismo. Dostoiévski cria que os ideais legítimos do cristianismo antes de ser corrompido pela igreja, de amor-mútuo e divisão dos bens, era o sustentáculo da nova fé européia, o socialismo de Fourier, Saint-Simon e Proudhon.

O comportamento excêntrico e doentio de Dostoiévski começou a afastá-lo de seus novos amigos. A esposa do escritor Panaiev, a senhora Avdótia Panaieva, dá um importante relato da figura do jovem Dostoiévski numa das reuniões no salão de sua magnífica residência:

“Dostoiévski visitou-nos pela primeira vez à noite, com Nekrassov e Grigorovitch, ambos começando suas carreiras literárias. Percebia-se logo que Dostoiévski era uma pessoa extremamente nervosa e impressionável. Era magro, baixo, cabelos claros, uma pele macilenta; seus olhos pequenos e cinzentos corriam inquietos de um objeto a outro, e seus lábios pálidos contorciam-se nervosamente. Ele já conhecia a maioria dos convidados, mas estava visivelmente embaraçado e esquivou-se das conversas. Todos procuraram integrá-lo na conversação, para ajudá-lo a vencer a timidez e fazê-lo sentir-se um membro do círculo.”

E continua o relato:

“Por causa de sua juventude e timidez ele não sabia se comportar, e dava claras demonstrações de presunção como escritor e da alta conta em que tinha seu talento literário. Transtornado pelo inesperado brilho dos primeiros passos na carreira, coberto pelos elogios de críticos literários de renome, e impressionável como era, não conseguia esconder seu orgulho diante dos outros jovens escritores que então se iniciavam modestamente na mesma carreira. Com a entrada de novos escritores no círculo, poderiam surgir problemas se eles se sentissem ofendidos, e Dostoiévski, como se fosse de propósito, ofendia-os com sua irritabilidade e seu tom arrogante, deixando claro que se achava imensamente superior aos demais.”

Como expressado pela senhora Panaieva, o círculo se sentia incomodado com a presença arrogante de Dostoiévski, mas não sabia como expurgar aquele homem, cuja alma pesava como chumbo no ambiente frequentado pela elite intelectual russa dos anos 1840. Coube ao ex-amigo Turgueniev a tarefa de chegar aos olhos e ouvidos e Dostoiévski que ele não mais era bem quisto. E assim como acontece em muitas cenas de sua longa carreira literária, a sua humilhação foi pública e dolorosa.

“As coisas chegaram ao auge no outono de 1846 quando, certo dia, Turgueniev excedeu-se nas zombarias. Mme. Panaiev descreve a cena da seguinte maneira: 'Certa noite, Turgueniev descreveu, na frente de Dostoiévski, um encontro que tinha tido na província com uma pessoa que se imaginava um gênio, e pintou com maestria o lado ridículo dessa pessoa. Dostoiévski ficou branco como uma folha de papel e, tremendo da cabeça aos pés, retirou-se apressadamente sem esperar pelo resto da história. Eu então comentei diante de todos: mas por que deixar Dostoiévski furioso dessa maneira? Mas Turgueniev estava muito inspirado, monopolizava a atenção de todos, de modo que ninguém percebeu a súbita retirada de Dostoiévski. […] Dessa noite em diante ele nunca mais nos visitou e até procurou evitar encontrar-se na rua com qualquer membro do nosso grupo. […] Só esteve com Grigorovitch que nos disse que Dostoiévski nos tinha insultado veementemente […], e dizia que tinha-se sentido muito decepcionado conosco e que nós éramos invejosos, cruéis e desprezíveis'. Em novembro de 1846, numa carta dirigida a Mikhail, Dostoiévski afirmou: 'Eles [a Plêiade] são todos uns patifes mortos de inveja.'” (FRANK, 2008; 216-217)

O rompimento de Dostoiévski com o círculo de Bielinski trouxe prejuízos incalculáveis para sua vida de escritor na década de 1840. Por ter sido quase que expulso do grupo por causa da pilhéria de Turgueniev, passou a freqüentar outros grupos, de pessoas mais radicais, até que chegasse no círculo de Petrachevski, onde todos os membros foram enviados para a Sibéria, inclusive Dostoiévski. Outro dano, talvez o pior, foi que a crítica literária, centralizada com toda a força na opinião de Vissarion Bielinski e seus membros do círculo, passaram a denegrir as novas obras de Dostoiévski que surgiam. O Duplo, ou O Sósia, segundo romance do escritor, foi recebido como uma obra comum, ou até pior do que isso. Nos dias de hoje, O Duplo é uma obra estudada, debatida e bem recebida pela crítica internacional. Muitos dos membros do círculo não são conhecidos nem na Rússia, hoje em dia, embora esse não seja o caso de Turgueniev e Bielinski.

Décadas depois, os dois escritores voltaram a se encontrar, na Alemanha. Turgueniev sempre foi conhecido como o mais ocidental dos escritores russos do período. O crítico Leonid Grossman chega a afirmar que tinha vergonha de ser russo. Um certo dia da década de 1860, quando Dostoiévski estava na Alemanha, no encalço da atriz Paulina Suslova, gastando todo seu parco dinheiro com hotéis e jogatina na roleta, foi ter com Turgueniev. Foi pedir-lhe dinheiro, pois havia perdido tudo na roleta. A atriz havia ido para a França e ele não tinha dinheiro nem para comer. Turgueniev lhe empresta algum dinheiro. Duas semanas depois, Dostoiévski volta à casa de Turgueniev para pedir-lhe mais dinheiro, pois havia perdido tudo novamente. Turgueniev nega-lhe o dinheiro e lhe expulsa de sua residência. Dostoiévski fica no hotel sem dinheiro nem para o chá. Essa nova cena de humilhação está descrita nas páginas do romance autobiográfico O Jogador.

Turgueniev influenciou Dostoiévski profundamente na década de 1860. Suas principais obras nesse período, Crime e Castigo e Notas do Subsolo, são respostas ou tentativas de interpretação do personagem niilista Evgueni Bazárov, do livro Pais e Filhos de Ivan Turgueniev. Este escritor criou a palavra niilista e introduziu este tipo de personagem na literatura russa.

Turgueniev e Dostoiévski, dois escritores contemporâneos, dois gênios do seu tempo, que começaram como amigos fraternos, depois deixaram-se envolver pela vaidade da fama literária, mas não podiam morrer sem que as questões ignóbeis de suas vidas fossem reelaboradas e esquecidas. Em junho de 1880, seis meses antes do próprio ocaso, Dostoiévski discursou no aniversário da morte de Púchkin e encantou toda a platéia, apesar de sua voz baixa e rouca de doente terminal. Dizem os jornais da época que o emotivo discurso fez jovens estudantes desmaiarem na platéia e uma onda de aplausos incansáveis foi escutada por vários minutos. Quando Dostoiévski desce do púlpito, Ivan Turgueniev o espera. Ambos se abraçam e fazem as pazes. E a literatura agradece ao gênio de ambos que ajudaram a construir e alicerçar a fabulosa pirâmide do romantismo russo.

sábado, 23 de outubro de 2010

O Câncer do Futebol Brasileiro


No último domingo, a maioria dos pernambucanos comemorou avidamente o acesso do Salgueiro, clube do sertão pernambucano, da cidade homônima de menos de 60 mil pessoas, para a série B do futebol nacional. Sem dúvida, um feito espetacular. E essa é a grande magia do futebol. No ano de 1983, o escocês Aberdeen bateu o poderoso Real Madrid na final da Recopa européia na cidade de Gotemburgo, com um escrete formado exclusivamente de jogadores locais, capitaneados pelo então desconhecido treinador Alex Ferguson. E muitos outros exemplos poderemos encontrar de clubes pequenos que alcançaram sua glória no mundo futebolístico. Mas, a vitória do Salgueiro sobre o Paysandu traz consigo um fantasma que há longa data assusta alguns grandes clubes do Brasil, especialmente do Norte e Nordeste, o sucateamento do futebol.

O futebol brasileiro é um produto de incalculável valor, poderíamos afirmar. O mundo inteiro se rende aos nossos dribles, aos nossos craques, aos nossos títulos em todas as modalidades. Porém, esse nosso produto não é bem vendido para um mundo sedento de consumi-lo. Para se ter uma idéia, o campeonato turco arrecada mais do que o brasileiro com direitos de transmissão. Os turcos vendem seus jogos para a Alemanha, Rússia e países árabes. Arrecadam uma boa bolada e podem manter os bons jogadores, além de contratar craques brasileiros para incrementar o nível futebolístico. Até o campeonato mexicano arrecada mais que o brasileiro! Na última Copa, exceto dois ou três jogadores, todos os jogadores da seleção mexicana atuavam dentro do seu próprio país. Mas, o Brasil, pentacampeão mundial, que possui clubes tradicionais e com imensas torcidas apaixonadas, não consegue vender seu campeonato para a Europa, nem para o Japão, muito menos para os países árabes, nem latinos. Vendemos apenas para a Globo. Consumo interno.

Será que ninguém se interessa pelo futebol brasileiro? Será que o campeonato turco é mais interessante que o nosso?! Para mim, é um problema de administração do alto escalão do futebol brasileiro. Lá em cima do Castelo de Kafka, onde ninguém consegue chegar nem saber o que acontece nas altas torres, os poderosos estão satisfeito com o “pouco” que recebem. Talvez porque se os americanos vierem a comprar esse produto, queiram colocar auditorias sobre a distribuição do dinheiro, ou então, se os ingleses comprarem, trarão os repórteres da BBC para fazer matérias de espionagem dentro de suas secretíssimas salas. Então, é melhor ficar com o consumo nacional, afinal de contas, a gente já é acostumado com as travessuras dos mandatários mesmo! E assim, o futebol brasileiro fica nesse descaso, as torcidas se acostumaram ao baixo nível dos espetáculos, jogador bom, só acima dos 30 anos ou com menos de 19. Mais de mil jogadores profissionais estão atuando fora do Brasil porque não conseguimos manter nossos craques. Para mim, só há duas possíveis respostas: ou o Clube dos 13 não sabe vender um produto que já faz a propaganda por si só, ou não quer se ver na companhia ingrata da imprensa internacional, a pesquisar suas contas.

No Brasil, o futebol é dividido: a CBF cuida da seleção, e o Clube dos 13 cuida do campeonato nacional. A CBF quase não tem trabalho, apenas engorda, pois vende todos os amistosos da seleção para uma empresa que põe o Brasil jogando lá pela Europa mesmo. Já o Clube dos 13, esse pinta e borda dentro do território nacional: divide as cotas de televisionamento do jeito que quer; marca jogos que terminam de madrugada; faz campanha com árbitros para que medalhões do seu elenco não sejam rebaixados e por aí vai. Quem está dentro desse quadro, conta com um mínimo de estabilidade, pois recebe um dinheirinho certo por ano. Quem está fora... Ah, quem está fora está comendo o pão que o diabo amassou! O Clube dos 13 divide as cotas de dinheiro do jeito que quer, entre eles, nas suas reuniões que acontecem pelas bandas do sul e sudeste, nas sedes de seus grandes clubes. E lá, definem: fulano vai ganhar X milhões, beltrano vai ganhar só Y. Fora do eixo sul-sudeste, apenas 4 clubes fazem parte do seleto e importante cenário do Clube dos 13: o Goiás, único clube do centro-oeste; o Sport, o Bahia e o Vitória, no nordeste. O Goiás, mesmo recebendo uma quantia pequena, mas perene, está sempre satisfeito. De vez em quando é rebaixado, mas logo sobe de novo para a Série A. Pode manter uma folha salarial de 800 mil reais, pagando em dia, mesmo que a torcida não compareça ou que nenhum patrocinador se interesse em aparecer junto à sua marca. Seus adversários goianos, coitados. Não possuem do mesmo privilégio. Eles precisam da torcida em massa, dos patrocinadores fortes e até da sorte, para competir com o afortunado adversário. E assim, o Goiás está sempre satisfeito e o Clube dos 13 se defende das críticas de ser “sulista”, dizendo: “olhe lá, temos representante no centro-oeste e no nordeste!”

O Paysandu vai ficar outro ano na terceira divisão. Acho que fui o único pernambucano que estava torcendo pelo Papão da Curuzu no último domingo. Eu que já estive em Belém e pude comprovar de perto, o amor que os paraenses alimentam pelos seus pobres clubes, esquecidos pelos poderosos do Clube dos 13. O Clube do Remo vai passar mais um ano na quarta divisão! E o Santa Cruz? Colocou mais de 50 mil pessoas num jogo contra o Guarany de Sobral e foi eliminado. Os times de torcida que jogam a série C e D, terão muita dificuldade em voltar para as séries A e B, porque eles possuem a ansiedade de seus torcedores, da imprensa, pouco dinheiro, patrimônio material caindo aos pedaços. Enquanto seus adversários: Guaratinguetá, Grêmio Barueri, São Caetano... são clubes de empresários, sem pressão, franco atiradores.

O dinheiro do Clube dos 13 fica preso nas torres do alto castelo. Enquanto isso, estamos a observar o desaparecimento gradual, lento, agonizante, do futebol norte-nordestino. É isso o que o Clube dos 13 quer: os paraibanos, potiguares, amazonenses, matogrossenses... torcendo pelos times do eixo Rio-São Paulo, além dos mineiros e gaúchos. O futebol para esses quatro estados apenas. E assim, o futebol brasileiro que poderia ser altamente rentável, ter cinco, seis divisões fortes, bancadas pela venda do campeonato para os países de todo o mundo, fica a mercê de uma esmola dada pela Globo, dividida por um pequeno grupo de clubes e o resto... o resto que se exploda!

domingo, 10 de outubro de 2010

O Dia das Crianças


O comércio criou uma data comemorativa para celebrar a infância, é o famoso dia 12 de outubro, dia das crianças. Não por acaso, fatura-se tanto com a venda de produtos para os infantes. A imaginação de uma criança é preciosa. Uma menina é capaz de ficar um longo tempo brincando com uma boneca e naquela relação homem x objeto, um universo de criações e fantasias se estabelecem. Os pequenos carrinhos de corrida ziguezagueam pelos obstáculos da casa, entretendo a mente por um longo tempo. Porém, quando crescemos e nos vemos diante dos encargos repressores da realidade, o mundo da fantasia é relegado ao status de coadjuvante de nossas atividades mentais.

Como não posso presentear as crianças que conheço ao mesmo tempo, tampouco imagino que muitas delas visitem este espaço, quero repartir com os adultos que por aqui passam, um pouco do sentimento que a infância deixa em nossas vidas e que, tantas vezes, ofusca-se nas atitudes estúpidas que tomamos quando envoltos estamos no mundo da realidade burocrática.

Hoje resolvi assistir pela segunda vez o filme A Viagem de Chihiro (Spirited Away) do diretor japonês Hayao Miyazaki, e senti-me assaltado de tantos desejos de dividir o que durante o filme ficou tão latente no espírito. Decerto, não retomarei a emoção do momento em que assistia, mas uma cena em especial me fez refletir sobre a infância e sobre a nossa relação com o tempo: quando a garotinha reencontra os pais no final do filme. O escritor argentino Jorge Luis Borges, tantas vezes nos joga num universo em que o tempo e o espaço adquirem uma sensação de inconformidade em relação ao presente ao qual estamos habituados. Assim, o momento em que a gota da chuva escorre por nossa testa pode ser suficiente para que um escritor finalize e revise todo um romance que há "tempo" havia planejado. Também os espaços adquirem formas enormes, esfumaçadas ou até límpidas demais, que se contrastarmos com o nosso arquivo real, não encontraremos parâmetro satisfatório. No livro IX das suas Confissões, Santo Agostinho diz sobre o tempo: "O que é afinal o tempo? Se ninguém me pergunta, sei; se alguém me pergunta e quero explicar, não sei mais." Santo Agostinho coloca-se diante do problema de se medir aquilo que não é. Após questionar-se a maior parte da vida sobre o tema, reelaborando os conceitos de Aristóteles e Plotino, Agostinho encerra que o passado e o futuro encontram-se no presente, o chamado Tríplice Presente. O tempo, resumidamente, para Santo Agostinho é medido dentro de nós.

Na Viagem de Chihiro, a garotinha empreende uma excursão por um universo mágico, cuja comparação com nosso mundo de monóxido de carbono e bolsas de valores não é possível de ser realizada. Tanto que enquanto ela esteve envolvida em suas aventuras, para seus pais, o tempo transcorrerá o suficiente para que a menina se perdesse no alto de um barranco e voltasse. Nesse caso, o tempo não foi o mesmo para Chihiro e para seus pais, embora no relógio tenha-se transcorrido o tempo habitual. Enquanto desaparece, a menina penetra num universo mágico, em que a imaginação distende-se até que um novo mundo se construa. Quando observamos uma criança a brincar com sua boneca ou com um carrinho, entre tantos tipos de brinquedo, não podemos supor que tipo de interação ficcional está ocorrendo naquela relação homem x objeto.

Hoje, após terminar de assistir o filme da garotinha Chihiro, uma onda de desolação me atingiu de modo profundo. Uma saudade inconsolável de ver o mundo com olhos de criança, distante da amarga e insensível relação de sociabilidade que nos torna homens sem rostos, nervosos em engarrafamentos, agressivos na fila do banco ou mentirosos na saciedade de nossos desejos libidinosos... Era uma tarde solitária de domingo neste bairro de subúrbio, quando a história da mocinha japonesa mudou minha relação com o tempo e o espaço. Fez-me renascer o espírito mágico da infância e transportou-me para um mundo de sonhos, ainda que a duração deste sentimento não se prolongue por muito tempo.

video da música final com tradução: http://www.youtube.com/watch?v=Z-Dr3IeTbrY

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Walter Benjamin em Moscou

Na década de 1930, o filósofo judeu-alemão Walter Benjamin empreendeu uma viagem por várias cidades da Europa, entre elas, a capital do Império Soviético, Moscou. Para um morador de Berlin, a experiência de se conhecer um país que, originalmente sempre foi tão diferente culturalmente, agora também no campo político, pois tratava-se de um modelo de governo que chamava a atenção de todos os outros governos no mundo que cultivavam com suspeita o olhar curioso sobre o Kremlin moscovita. Mas, para a surpresa de Benjamin, conhecer a Rússia, ou melhor, a União Soviética, foi um grande aprendizado para que pudesse entender a sua familiar Europa.

O fotógrafo, o pintor, o literato, o arquiteto... ambos, contam a história da cidade. Cada um carrega sua vivência urbana. Assim, como os milhares de olhares que se cruzam na multidão, as “visões” da cidade por parte das diferentes formas de contar a experiência vivida se entrecruzam nas ciências que estudam a sociedade. O relato desses intérpretes das cidades acaba por nos inserir em suas realidades e, assim, nos tornamos viajantes de uma experiência ficcional.

O nosso cotidiano espacial só pode ser interpretado após um estranhamento do mesmo, um mal-estar em relação ao ambiente vivido. Sem a experiência do contraste e da oposição, a análise empobrece-se. Quando Walter Benjamin afirma que “por meio de Moscou se aprende a ver Berlin mais rapidamente que a própria Moscou”, ele está reforçando essa imagem. Mais adiante, ele afirma: “Só quem, na decisão, fez com o mundo a sua própria dialética pode apreender o concreto.”

O morador de Berlin só vai se sentir apto a conhecer sua cidade quando em outra realidade se encontrava. A Moscou comunista da década de 1930, com suas ruas apinhadas de gente, num corre-corre contínuo, com o barulho da multidão, vai recriar a imagem da cidade em que morava. Não por acaso, a historiadora Sandra Jatahy Pesavento vai utilizar-se das técnicas do próprio Benjamin para justificar a transcendência do olhar do escritor:

“A idéia de contraste, produzindo a revelação ou a descoberta, seria desenvolvida por Walter Benjamin, ele próprio leitor de Baudelaire e amante de Paris. Cortando os vínculos genéticos passado/presente, o que Benjamin postula é a criação de contra-imagens que rompam o contínuo da história, oportunizando o que se chamaria 'o salto do tigre', que daria margem à inteligibilidade pelo contraste.”

Para Benjamin, o cruzamento de imagens contrárias são necessárias para que se possa obter uma imagem coerente do sentido de uma época, presente ou passada. Porém, essas cidades não necessariamente precisam ser reais. Nas Cidades Invisíveis, Italo Calvino tornou “visível” cidades que só existiam no mundo ficcional. O topos uranos de Jorge Luis Borges é outro estilo típico de criação de cidades de sonho e poesia. Mas, no caso de Benjamin, a viagem para Moscou fez com que a própria Alemanha passasse a ter outro significado em sua visão de mundo. As ruas de Berlin lembravam os desenhos de Grosz: silenciosas, vazias, limpas, maquetes. Uma oposição a Moscou, que pela narrativa do autor parece-se quase com certos recantos de cidades brasileiras, caso não fosse a presença da neve. Observemos:

“Em Moscou, as mercadorias irrompem por toda a parte das casas, se penduram nas cercas, se apóiam às cancelas, jazem no calçamento. A cada cinqüenta passos se encontram vendedoras de cigarros, de frutas, de doces. Ao lado tem um cesto de roupas com as mercadorias, às vezes também um pequeno trenó. Um pano de lã colorido proteje maçãs ou laranjas contra o frio; duas amostras ficam por cima. Ao lado, bonecos de açúcar, nozes, bombons. Faz pensar numa avozinha que, antes de sair de casa, olhou ao redor em busca de tudo com que pudesse surpreender seus netos. Agora, a caminho, estão na rua para repousar um pouco. As ruas de Berlin não conhecem tais sentinelas com trenós, sacos, carrinhos e cestas. Comparadas com a de Moscou, são como um velódromo vazio e recém-varrido, no qual avança uma pista de corredores de uma prova ciclística de seis dias.”

Um convite para entrecruzar caminhos e reconhecer-se noutras perspectivas...


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Uma Tarde no Centro de Artes

Passava das duas horas da tarde de um dia ensolarado. No Centro de Artes de uma conhecida universidade, um homem surge do escuro painel de vidro. Vestido de maneira decente, pára embaixo da marquise do prédio. Retira do bolso da camisa pólo a carteira de cigarros. Acende. Olha para o dia embrasado, poucas nuvens no céu. Não carrega muita coisa consigo, apenas um pequeno livro de bolso. Termina o cigarro e se dirige a uma pequena praça, onde jovens conversam embaixo da sombra de uma árvore.

O homem toma acento no banco, desprotegido das árvores, sofrendo com os raios quase perpendiculares do sol. Abre o livro de bolso. Entre o grupo de jovens que estavam conversando, um deles observa o homem a suar embaixo do sol úmido de Recife. Reconhece o título do livro: O Nariz, de Nicolai Gógol. Volta a conversar com seus parceiros, enquanto o homem com pinta de professor desconhecido fica lendo seu livro tranqüilamente, dourando.

De repente, o homem com pinta de professor irrompe numa gargalhada falsa, estrondosa. Ri cada vez mais alto, quase um grito bestial. Abre sua enorme boca, com dentes amarelos. Seu gesto toma formas caricaturais. Joga-se no chão, arremessa o livro contra uma árvore. Sua risada se torna mais nervosa. Passa a rolar no chão, como um doente em crise nervosa. As pessoas, por perto, se assustaram no primeiro movimento do louco. Seus trejeitos eram desarticulados, o que tornava imensamente bizarro o seu ato. Mas, com a continuidade da sua falsamente majestosa gargalhada, as pessoas passaram a rir, não pelo prazer do ato, mas como se quisessem ridicularizar o homem.

Quando as pessoas passaram a gargalhar do homem com pinta de professor, ele retomou a postura. Tomou o livro arremessado nas mãos. Fechou o semblante. Iniciou-se numa caminhada pontual, marchante. Em pouco tempo já não era visto nem lembrado. Terminou-se outra performance no Centro de Artes.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

André, A Cara e a Coragem


Esse é o título desse filme do diretor Xavier de Oliveira que esteve em cartaz nos cinemas brasileiros no ano de 1971. No papel principal encontramos o ator Stepan Nercessian, ainda muito jovem, na pele do rapaz André, um mineiro de Carangola, de 17 anos, que foi tentar a sorte na cidade grande, mais precisamente, no Rio de Janeiro. Até aí, um roteiro bastante conhecido.

É um filme simples, de linguajar comum, de brasileiros pobres. Mostra um Rio de Janeiro de 40 anos atrás. Diferente em suas construções, nos carros, na fala das pessoas... André é um rapaz que passa o filme buscando um emprego pra se manter no Rio. Não quer voltar pro interior de Minas com o estigma de quem saiu e não se deu bem. O orgulho que tanta gente carrega consigo pelos caminhos das grandes cidades brasileiras.

Assisti esse filme pela primeira vez numa noite de sábado na TV Cultura. Naquela noite de sábado em que as pessoas saíam para se divertir, senti a alma confortada e sensibilizada pelo drama do jovem no filme. À época, procurei o filme pra baixar e não encontrei. Tampouco o achei nas locadoras. Certo dia, encontrei um site onde disponibilizavam o filme pra download. Baixei, mas apenas hoje à noite assisti o filme novamente. E me emocionei de novo. O cinema brasileiro tem aquele estigma de querer fazer filmes naturalistas, com palavrões chulos e discursos pseudo-intelectuais cheios de clichê. Não duvido que este filme também o tenha. Mas, há uma simplicidade que encanta. O rapaz é um sonhador, tantas vezes em silêncio. Destaque para a bela atriz Angêla Valério e para a cena em que eles saem para passear pela zona sul carioca.

Assistam e comentem as vossas opiniões.

Human Conditions


Olá amigos do blog. Como de praxe, eu sempre tento dividir algum tipo de música com vocês. Entre os mais diferenciados estilos e lugares, já deixei artistas da Armênia, Cabo Verde, Angola, Polônia, Noruega, Ceará e Paraíba. Meu maior gosto é compartilhar artistas desconhecidos, como se fosse um trabalho de garimpeiro, no intuito de encontrar uma jóia de grande beleza. Enfim, desta vez, o artista é bem conhecido e atuante no universo da pop music. Mas, mesmo assim, por quê não sugerir?

Richard Ashcroft tem uma consolidada carreira-solo, bem referendada pela mídia especializada do seu país, a velha Inglaterra. Mas, mesmo que você ainda não saiba de quem se trata essa postagem, certamente você conhece aquela música do grupo The Verve, bittersweet simphony, onde o vocalista sai esbarrando em todo mundo na calçada, no clipe. Devidamente apresentado, o moço nesse disco, faz um prato cheio para quem curte baladas de rocknroll. Eu destaco "Buy it in the Bottles", "Paradise", "Science of Silence" e "Man on a Mission". Mas, não impede que vocês se identifiquem com outras. Ashcroft tinha tudo pra ser o grande artista da música pop inglesa, mas acabou sempre ofuscado pelo sucesso de bandas como Radiohead e Oasis, sua Verve ficava ocultada, apesar do jeitão meio jaggeriano de se apresentar.

Eu recomendo esse disco. É bom pra ouvir no mp3 durante os malditos engarrafamentos, bom pra namorar, pra acordar...


se você não sabe quem é o cara em questão, talvez esse video facilite: http://www.youtube.com/watch?v=Zx3m4e45bTo