terça-feira, 26 de outubro de 2010

Dostoiévski e Turgueniev: Ímpetos Juvenis

Durante o segundo semestre de 1845, iniciou-se em São Petersburgo uma amizade entre dois dos maiores escritores russos de todos os tempos, os jovens Ivan Turgueniev, então com 25 anos e Fiódor Dostoiévski, com 24. Ambos respaldados pelo carinho e proteção do crítico Vissarion Bielinski. Dostoiévski estava vivendo a glória que todo o jovem escritor sonha, havia escrito seu primeiro romance, Pobre Gente, e era convidado para os mais importantes e respeitados bailes da capital. Os condes Odoiévski e Solugob, escritores da nobreza russa, disputavam sua presença em suas reuniões e saraus. O tímido escritor mergulhava num universo de sonhos e glórias. Turgueniev também lançava suas primeiras novelas no Almanaque de Petersburgo e causou uma impressão formidável no impressionável Dostoiévski, conforme podemos observar em carta redigida ao seu irmão mais velho, Mikhail Dostoiévski:

“O poeta Turgueniev regressou de Paris há pouco (você deve ter ouvido falar disso), e tomou-se de amores por mim à primeira vista, com tanta dedicação, que Bielinski diz que ele se apaixonou por mim! E que homem ele é, irmão! Quase me apaixono por ele também. Poeta, aristocrata, talentoso, simpático, rico, inteligente, bem-educado e com 25 anos de idade. E, para completar, um caráter nobre, extremamente direto e franco, e formado em boa escola. Leia seu conto Andrei Kolóssov nos Anais da Pátria; é a cara dele, embora ele não estivesse pensando em fazer um auto-retrato.” (FRANK, 2008;215)

A nova amizade, tão promissora, começou a dar espaço para a imensa vaidade de ambos, especialmente de Dostoiévski. Por trás de toda sua timidez e doença nervosa (primeiros sinais da epilepsia), Dostoiévski escondia uma vaidade profunda. Os outros literatos de seu tempo, do grupo de Bielinski, começaram a se incomodar com suas opiniões extremadas, quase sempre coléricas, suas defesas de que o socialismo nascente na França, nada mais era do que uma vertente do cristianismo. Dostoiévski cria que os ideais legítimos do cristianismo antes de ser corrompido pela igreja, de amor-mútuo e divisão dos bens, era o sustentáculo da nova fé européia, o socialismo de Fourier, Saint-Simon e Proudhon.

O comportamento excêntrico e doentio de Dostoiévski começou a afastá-lo de seus novos amigos. A esposa do escritor Panaiev, a senhora Avdótia Panaieva, dá um importante relato da figura do jovem Dostoiévski numa das reuniões no salão de sua magnífica residência:

“Dostoiévski visitou-nos pela primeira vez à noite, com Nekrassov e Grigorovitch, ambos começando suas carreiras literárias. Percebia-se logo que Dostoiévski era uma pessoa extremamente nervosa e impressionável. Era magro, baixo, cabelos claros, uma pele macilenta; seus olhos pequenos e cinzentos corriam inquietos de um objeto a outro, e seus lábios pálidos contorciam-se nervosamente. Ele já conhecia a maioria dos convidados, mas estava visivelmente embaraçado e esquivou-se das conversas. Todos procuraram integrá-lo na conversação, para ajudá-lo a vencer a timidez e fazê-lo sentir-se um membro do círculo.”

E continua o relato:

“Por causa de sua juventude e timidez ele não sabia se comportar, e dava claras demonstrações de presunção como escritor e da alta conta em que tinha seu talento literário. Transtornado pelo inesperado brilho dos primeiros passos na carreira, coberto pelos elogios de críticos literários de renome, e impressionável como era, não conseguia esconder seu orgulho diante dos outros jovens escritores que então se iniciavam modestamente na mesma carreira. Com a entrada de novos escritores no círculo, poderiam surgir problemas se eles se sentissem ofendidos, e Dostoiévski, como se fosse de propósito, ofendia-os com sua irritabilidade e seu tom arrogante, deixando claro que se achava imensamente superior aos demais.”

Como expressado pela senhora Panaieva, o círculo se sentia incomodado com a presença arrogante de Dostoiévski, mas não sabia como expurgar aquele homem, cuja alma pesava como chumbo no ambiente frequentado pela elite intelectual russa dos anos 1840. Coube ao ex-amigo Turgueniev a tarefa de chegar aos olhos e ouvidos e Dostoiévski que ele não mais era bem quisto. E assim como acontece em muitas cenas de sua longa carreira literária, a sua humilhação foi pública e dolorosa.

“As coisas chegaram ao auge no outono de 1846 quando, certo dia, Turgueniev excedeu-se nas zombarias. Mme. Panaiev descreve a cena da seguinte maneira: 'Certa noite, Turgueniev descreveu, na frente de Dostoiévski, um encontro que tinha tido na província com uma pessoa que se imaginava um gênio, e pintou com maestria o lado ridículo dessa pessoa. Dostoiévski ficou branco como uma folha de papel e, tremendo da cabeça aos pés, retirou-se apressadamente sem esperar pelo resto da história. Eu então comentei diante de todos: mas por que deixar Dostoiévski furioso dessa maneira? Mas Turgueniev estava muito inspirado, monopolizava a atenção de todos, de modo que ninguém percebeu a súbita retirada de Dostoiévski. […] Dessa noite em diante ele nunca mais nos visitou e até procurou evitar encontrar-se na rua com qualquer membro do nosso grupo. […] Só esteve com Grigorovitch que nos disse que Dostoiévski nos tinha insultado veementemente […], e dizia que tinha-se sentido muito decepcionado conosco e que nós éramos invejosos, cruéis e desprezíveis'. Em novembro de 1846, numa carta dirigida a Mikhail, Dostoiévski afirmou: 'Eles [a Plêiade] são todos uns patifes mortos de inveja.'” (FRANK, 2008; 216-217)

O rompimento de Dostoiévski com o círculo de Bielinski trouxe prejuízos incalculáveis para sua vida de escritor na década de 1840. Por ter sido quase que expulso do grupo por causa da pilhéria de Turgueniev, passou a freqüentar outros grupos, de pessoas mais radicais, até que chegasse no círculo de Petrachevski, onde todos os membros foram enviados para a Sibéria, inclusive Dostoiévski. Outro dano, talvez o pior, foi que a crítica literária, centralizada com toda a força na opinião de Vissarion Bielinski e seus membros do círculo, passaram a denegrir as novas obras de Dostoiévski que surgiam. O Duplo, ou O Sósia, segundo romance do escritor, foi recebido como uma obra comum, ou até pior do que isso. Nos dias de hoje, O Duplo é uma obra estudada, debatida e bem recebida pela crítica internacional. Muitos dos membros do círculo não são conhecidos nem na Rússia, hoje em dia, embora esse não seja o caso de Turgueniev e Bielinski.

Décadas depois, os dois escritores voltaram a se encontrar, na Alemanha. Turgueniev sempre foi conhecido como o mais ocidental dos escritores russos do período. O crítico Leonid Grossman chega a afirmar que tinha vergonha de ser russo. Um certo dia da década de 1860, quando Dostoiévski estava na Alemanha, no encalço da atriz Paulina Suslova, gastando todo seu parco dinheiro com hotéis e jogatina na roleta, foi ter com Turgueniev. Foi pedir-lhe dinheiro, pois havia perdido tudo na roleta. A atriz havia ido para a França e ele não tinha dinheiro nem para comer. Turgueniev lhe empresta algum dinheiro. Duas semanas depois, Dostoiévski volta à casa de Turgueniev para pedir-lhe mais dinheiro, pois havia perdido tudo novamente. Turgueniev nega-lhe o dinheiro e lhe expulsa de sua residência. Dostoiévski fica no hotel sem dinheiro nem para o chá. Essa nova cena de humilhação está descrita nas páginas do romance autobiográfico O Jogador.

Turgueniev influenciou Dostoiévski profundamente na década de 1860. Suas principais obras nesse período, Crime e Castigo e Notas do Subsolo, são respostas ou tentativas de interpretação do personagem niilista Evgueni Bazárov, do livro Pais e Filhos de Ivan Turgueniev. Este escritor criou a palavra niilista e introduziu este tipo de personagem na literatura russa.

Turgueniev e Dostoiévski, dois escritores contemporâneos, dois gênios do seu tempo, que começaram como amigos fraternos, depois deixaram-se envolver pela vaidade da fama literária, mas não podiam morrer sem que as questões ignóbeis de suas vidas fossem reelaboradas e esquecidas. Em junho de 1880, seis meses antes do próprio ocaso, Dostoiévski discursou no aniversário da morte de Púchkin e encantou toda a platéia, apesar de sua voz baixa e rouca de doente terminal. Dizem os jornais da época que o emotivo discurso fez jovens estudantes desmaiarem na platéia e uma onda de aplausos incansáveis foi escutada por vários minutos. Quando Dostoiévski desce do púlpito, Ivan Turgueniev o espera. Ambos se abraçam e fazem as pazes. E a literatura agradece ao gênio de ambos que ajudaram a construir e alicerçar a fabulosa pirâmide do romantismo russo.

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