sexta-feira, 31 de julho de 2009

Por Onde Andará RaiPT?!


Recife é uma cidade cheia de personagens autênticos, muitos desses não aparecem na mídia pop alternativa, em programas da TV Universitária ou em alguma estação de rádio AM esquecida do grande público. Sim, aos artistas pernambucanos só resta os lauréis da mídia alternativa, pois o main stream não foi feito pro nosso sotaque, nossa timidez e nossa angústia colonial. Muitas pessoas interessantes sequer tiveram a oportunidade de relatar para o grande público sua utopia de vida, muito mais honesta do que o cenário imutável em que vivemos. Eu conheci um estudante de filosofia chamado Raimundo Nonato, que estava muito acima das discussões políticas, dos nossos excessivos artistas plásticos, de nossa cultura alternativa. Para quem não conheceu, ele era mais conhecido pela alcunha de RaiPT.


RaiPT tinha sua própria visão da política, tanto que sua social-democracia extrapolava a caretice farsante do PT. Ao final de anos, ele trocou de partido, foi para o P-SOL, mas ainda assim, tudo aquilo era muito pequeno para suas idéias acerca da humanidade. RaiPT fundou um novo conceito de política social, atraiu seguidores para o raipetismo, que ganhou adeptos entre vários estudantes da UFPE que prontamente divulgaram seu manifesto para associações de trabalhadores ao redor do mundo. O raipetismo foi adotado pela Associação de Pescadores do litoral leste de Suriname, pela cooperativa de tratadores de coalas de Bórneu e pelos guias safaristas desvinculados do governo da Botswana. Dessa forma, seu pensamento e luta começam a ganhar contornos universais.


RaiPT desiludiu-se com a política. Costumeiramente, encontrávamos-no andando pelas ruas do bairro da Várzea, pelos pastos, asfaltos, em festas alucinadas. Tornara-se um boemio esclarecido. Sua palavra ganhava ares eivados de sabedoria e misticismo. Por fim, frequentava seitas cristãs clandestinas que pregavam o cristianismo nestoriano, abolido do mundo ocidental desde o século XIII, mas que tinha reminiscências de sua atuação nas antigas cidades costeiras do Irã. RaiPT era estudante de filosofia e não se intimidava ante as novidades, pesquisava teodicéias e antropodicéias. Constituiu-se num mito para a juventude pernambucana.


De repente, numa manhã cinzenta do último inverno, sorrateiramente, abandonou nossa cidade sem divulgar seu paradeiro. Desde então, muitos de seus seguidores passaram a questionar onde RaiPT estaria iluminando os caminhos. Notícias desencontradas chegaram a nossa capital. Viram RaiPT iniciar uma cruzada contra os fazendeiros do vale do Cariri, na Paraíba. Muitos trabalhadores passaram a seguir-lo, gente simples, filósofos populares, professores universitários das universidades de Patos e Cajazeiras. RaiPT reinvidica a posse de uma terra ao norte da cidade de Picos, no Piauí, onde pretende levantar as barricadas contra a civilização ocidental, fundando um estado pacífico, cristão genuíno, formador de übermenschliche, o reino de U-Topos.


Em Recife, enquanto notícias mais confiáveis não chegam, um movimento neosebastianista, intitulado "Panteão da Esperança", aguarda a chegada do messias que tirará nossa sociedade da ganância desenfreada, da fome incontrolável de poder e que nos conduzirá ao nirvana social de uma era justa e igualitária. Ó RaiPT, fazes contato com tua gente. Dizes seguramente onde te encontras, Antônio Conselheiro Digital! Nós, que cá aguardamos, teu chamado messiânico para fundarmos o reino mais justo de toda a história, o fim de nossa jornada, o ápice desse ensandecido movimento de corpos sociais que nos conduzirá ao apocalipse sem dor do reino da utopia. Quem souber do seu paradeiro, informe. Por onde andará RaiPT?!

segunda-feira, 27 de julho de 2009

O Fim do Garagem

Hoje os homens da DIRCON e da Guarda Municipal colocaram abaixo uma página, queiram ou não, da juventude recifense, o bar Garagem 27 ou Galletu´s, como foi conhecido nos seus primórdios, foi demolido e não resta nesse exato momento, pedra sobre pedra. Dir-se-ia que o fim do Garagem serveria para a abertura de uma importante avenida que ligará o bairro das Graças ao bairro de Casa Forte, liberando o sufocado trânsito. Outros dirão que naquele antro consumia-se droga e ouvia-se música suja em alto volume. Outros cidadãos de bem reclamarão que talvez Nilson não pagasse imposto e que toda a documentação fosse ilegal. Eu fui no Garagem pela primeira vez pelos idos de 1999. Quantos anos de minha juventude passei curtindo naquele ambiente escuro, divertido e neurótico. Quantas noites inesquecíveis!

Durante um tempo em que eu me encontrava muito liso, minha diversão era ir pro Garagem com 5 reais, de bike, pedalava por quase meia hora e voltava de madrugada completamente embreagado pra casa, depois de tomar três quartinhos de cachaça e uma cerveja pra lavar. Encontrava amigos na mesma situação e nos divertíamos. Quantas bandas legais não conheci convivendo com pessoas que frequentavam o velho Gara. Comprei um disco do Who logo após Manoel fazer uma defesa apaixonada do rocknroll da banda britânica ou ainda quando Cristiano Randau, hoje na Holanda, levava discos de Modern Lovers e Jonathan Richman. Ali, eu era um jovem aprendiz, atento aos comentários dos mais velhos, buscando meu espaço. Como não se lembrar dos primeiros show das Barbis naquela escuridão, as meninas enlouquecidas ou ainda aqueles show de trash metal com Raoni fazendo performances louquissimas no palco, se jogando na platéia com uma prancha de body boarding. Tá certo que de uns tempos pra cá ele tenha ficado muito desvirtuado da idéia original, mas mesmo assim, era o local onde podíamos encontrar uma gatinha muito doida no fim da noite, falar besteira com os amigos, esticar a lombra por mais algumas horas antes de nos depararmos com a triste realidade que nos transforma nesses seres tecnocratas que somos. Querem transformar nossa juventude naquele perfil de Malhação, zona sul da rede globo. Fodam-se!

Durante dois anos eu discotequei no Garagem e não ganhei 1 real sequer por aquele trabalho. Nilson me pagava em cerveja e eu me esforçava em fazer o melhor set pra ver as pessoas dançarem naquela escuridão. Quantas vezes não ouvi gente reclamando que o som tava muito devagar, queria ouvir os clássicos dos anos 80 ou até pagavam uma cerva quando eu colocava aquela música esquecida de Neil Young que o sujeito nunca que imaginava que tocaria numa madrugada careta do Recife. Também me arrependi de ter dado aqueles cd´s de músicas trashdance pra Nilson. Sim, agora posso me entregar, eu sou o culpado de rolar "Amante Profissional" nas madrugadas garageiras. Mas, como foi divertido aquele período entre 2004 e 2005. Numa madrugada de terça-feira, enquanto a cidade dormia seu sono operário, almas errantes se enfurnavam naquele ambiente em busca da felicidade almejada.

O Garagem ficava num local estratégico, na descida da ponte das Graças, na beira do Rio Capibaribe. Já vi Hugo Perez ficar tão louco no dia do show de Wander Wildner que deu um flecheiro no rio sujo, mas saiu de alma limpa. Também o bloco Sobrecú fez uma das suas prévias mais loucas nesse bar, com um arrastão tresloucado acordando os moradores do bairro das Graças. Já marquei um aniversário com tema cigano, pois uma cigana disse que eu iria morrer no último sábado de 2005. Fiz meus amigos rezarem uma oração em língua cigana da zona rural do extremo oeste da Romênia para desfazer a urucubaca lançada sobre mim. E deu certo! O show de Wander Wildner no Garagem foi uma idéia minha que contou com a execução de Roger de Renor e como eu fiquei feliz em ver aquele show tosco rolando naquele pequeno espaço. Todo mundo duvidando que o show ia rolar e eu garantindo, até que quase 2h da manhã, o roqueiro gaúcho iniciou o show com uma guitarra e uma bateria e a caixa de som estourando. Até hoje, Wander considera esse um dos melhores show de sua carreira. Uma vez, completamente ébrio, eu escrevi um pequeno verso em homenagem ao Garagem, mas sempre julgava inoportuno apresentar. Provavelmente, por não possuir uma grande qualidade estética ou verbal. Mas, se não for aqui e agora, não será jamais. Agora, o Garagem será mais uma lenda de uma juventude que passou, assim como Ave Sangria era para a rapaziada dos anos 70. Pude viver intensamente o cotidiano desse bar por 10 anos, entre os 18 e os 28. Podia chegar lá trêbado e zoar com Nilson e sabia que não seria mal interpretado. Aliás, várias vezes, ele arranjava uma "namorada" e me deixava tomando conta do bar e confiava as finanças a mim.

O que me entristece é ver que a caretice está vencendo. Eu estou envelhecendo e não vou lutar pela juventude que aí está. Eles que façam das suas vidas o que bem entenderem. Depois de voltar do Rio, estou com planos menos audaciosos, quero sossego e paz. O big brother está aí e não é ficção. Privacidade e liberdade serão coisas do passado. Câmeras de vigilância brotarão do chão. Os locais onde as pessoas podiam expôr suas neuroses, excessos, estão dimunuindo. Teremos que nos adequarmos à visão de mundo de qualquer secretário de segurança, com sua visão totalizadora da sociedade. Ah, como os odeio! Adeus Garagem, que teu espaço sirva para os homens de boa fé conduzirem seus automóveis possantes em nome do progresso e da virtude social.
Garagem

São 3 horas da manhã de uma terça qualquer
Dançando Amante Profissional com aquela galera CAC-Molusco-Lama
Mordendo o pescoço de uma garota
Ou noiado embaixo da escada
Mais uma noite de Garagem.

Uma Viagem ao Rio de Janeiro

Nos últimos dias estive ausente da condição de blogueiro devido a uma viagem que fiz para a capital imperial do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro. Quem lê uma manchete dessas deve pensar que estou muito bem de grana para estar passeando nas férias de julho, curtindo numa cidade cara como o Rio. Ah, mas apenas alguns sabem das dificuldades que enfrentei para que pudesse empreender tal viagem. Foi um tal de empresta daqui, pega isso alí, depois eu te pago e por ai vai. A passagem foi gratuita, a hospedagem também, fruto da gentileza de amigos cariocas que merecerão suas devidas honrarias adiante. Enfim, sai de Recife com 300 reais para passar 10 dias fora. Contando com um agravante que minha situação no banco não é das melhores, não teria como receber depósito na conta, portanto, teria que me virar com isso mesmo! Por outro lado, levei tudo o que fosse preciso para sobreviver, desde uma feirinha com biscoitos, leite, doces, passando por 8 litros de cachaça "meladinha" produzidas por mim em minha humilde residência. A situação era tão delicada que até a véspera da viagem oscilei entre a vontade de viajar e a segurança de estar em casa. Pois bem, tinha assuntos a resolver pelas bandas de lá, talvez a natureza quisesse que eu estivesse por lá, pois reservava-me algo especial. Enfim, eis-me no ônibus, atravessando as planícies e declives de nosso litoral pela BR-101.

Dois dias de viagem, banheiro de rodoviária, festinhas no ônibus, gritarias, hinos de louvor, pores do sol... Rio de Janeiro. O primeiro olhar foi de quase indiferença. Parecia que tudo já era bastante familiar, esforçava-me em achar tudo normal. Chegamos no Rio numa tarde de sábado, muito ressacados de viagem, fui recebidos pelos amigos cariocas Thiago Heise e Pedro Alô. Amigos que conheci nos ENEH´s anteriores e que mui prestativamente foram me receber na UFF para ajudarem-me a carregar minha bagagem. A casa onde ficaria a semana ficava há 5 minutos da universidade, caminhando. A despeito do cansaço, reselvemos sair naquela noite mesmo e o destino seria a Lapa, a velha lapa boêmia, imortalizada nas vozes de vários sambistas, especialmente na de Nélson Gonçalves, que meu pai ouvia naqueles discos de vinil quando eu era criança. Andamos bastante pelas ruas do centro, antes de cairmos numa festinha muito freak, uma festa muito parecida com as nossas daqui, num sobrado, com música de qualidade claudicante. Tudo era estranho aos meus olhos, apesar de ser tão familiar. Que contradição!
Segundo dia e eu fui pro Maracanã, assistir Flamengo x Botafogo. Fui pra torcida do Botafogo, lá na arquibancada. Quando entrei na arquibancada, me arrepiei com o tamanho do estádio. Fui um dos primeiros a adentrar no maior do mundo, achava que o jogo começaria às 16h, mas enganei-me, a peleja só se iniciaria às 18:30. Cheguei na bilheteria às 14:30 e comecei a caminhar pelas ruas do bairro, vários bares, gente conversando alto, pouca gente falando de futebol. Na verdade, nem parecia que estávamos nos momentos que antecedem um clássico dessa envergadura. Parei num boteco onde tinha muita gente de meia idade conversando calorosamente. Fiquei a espreitar a conversa. Ouvindo o sotaque carioca dos participantes, suas gozações. Os cariocas adoram zoar uns da cara dos outros. Se aproxiamava a hora do jogo. Paguei as três cervejas e me dirigi para o frio Maracanã. 16°C marcava o termômetro e eu vestido de bermuda e uma camisa da seleção francesa da copa de 86, manga curta. Que frio! Mas, o jogo foi quente! 2x2. O Botafogo entregou a vitória nos últimos minutos, coitado! O torcedor botafoguense é muito traumatizado. Quando o jogo tava 2x1 pro Fogão, eles tiveram duas chances de matar e fazer 3x1, mas a incompetência dos finalizadores deixava algo suspenso no ar: o Botafogo iria entregar! Os torcedores nervosos já pressentiam. Bola na área, o atacante do Flamengo ajeita e... pimba! Do meu lado, um senhor se levante e grita: "Puta que o pariu, esses filhos da puta toda vez entregam pro Flamengo!" Puxou o filho pelo braço e partiu para a saída. Do outro lado a torcida penta campeã brasileira gritava loucamente. Saí do estádio receoso de uma briga imensa entre as torcidas. Mas, que nada. Muito mais tranquilo que aqui no Recife. As torcidas passando uma pelo meio da outra, muitas crianças e mulheres, uma paz estranha. Dirigi-me pra Niterói pra curtir o que haveria de bom pelo encontro. Ah, ia me esquecendo, no domingo pela manhã apresentei meu trabalho que se encontra postado aqui no blog com o nome "O Milagre Secreto de Dostoievski".

Deixem-me falar da parte séria da viagem. No domingo, tinha que apresentar o trabalho às 9 da manhã, mas como tinha ido para a Lapa e chegado às 6 da manhã, só poderia cochilar 1 hora e meia antes de ir pra UFF (Universidade Federal Fluminense). Coloquei o despertador para me acordar às 07:30h. Acho que o despertador tocou e eu nem acordei. Quando abri o olho eram 09:50, tinha perdido minha apresentação. Bateu-me um desespero. Corri feito um louco, sem tomar banho, nem escovar os dentes, corri para a UFF, com a cara engilhada, voei pelas escadas e cheguei as 10:10 na sala de apresentação. Para minha sorte, pude apresentar meu trabalho depois de todo mundo. Ninguém se interessou em fazer perguntas, a não ser um namorado de uma moça carioca que tava apresentando que ao final, perguntou: "Desculpe-me a ignorância, sou estudante de engenharia. Mas, quem é esse tal de Dostoievski?" Na segunda-feira à noite teve a palestra com o professor Paulo Bezerra, o principal tradutor de Dostoievski da atualidade. Sempre cercado por vários alunos, não ousei interromper sua noite de autógrafos. Sua palestra foi muito interessante, na qual tentou explanar qual o terreno em que o tradutor deve trabalhar, até onde deve permanecer fiel à obra original, até onde vai seu processo de criação. Isso daria outra postagem. Na terça, fui a Sociedade Brasileira de Cultura Eslava, localizada na Lapa. Encontrei-me com a professora Sônia Branco da UFRJ que foi muitíssimo simpática comigo e lá pude encontrar outros estudantes de literatura russa. Fiquei entusiasmado naquele ambiente. Uma jovem que pesquisa sobre o teatro em Tchékhov. Depois uma palestra gratiuta sobre o mesmo Tchékhov, ministrada pelo professor, tradutor e escritor Rubens Figueiredo. Uma palestra riquíssima. Sai radiante daquele espaço. Minhas atividades intelectuais da semana se resumiram a esses três momentos: a apresentação do meu artigo, a palestra do professor Paulo Bezerra e o fim de tarde da Sociedade Brasileira de Cultura Eslava. Tá certo que poderia ter feito mais coisas, mas tudo em que me intrometi, teve a ver com minha pesquisa, sendo esses três momentos, muito importantes pra mim.

Numa viagem como essas, com o tempo cronometrado, não nos resta outra opção senão viver cada minutinho ao máximo e, foi assim, que tentei extrair essa experiência carioca. A quarta foi, aparentemente, o dia mais parado. Fui no MAC em Niterói, depois fui para a paradisíaca praia de Itacoatiara, com suas ondas perfeitas e visual arrebatador. Ah, meus amigos, quantas coisas deixamos de narrar. A experiência mais intensa da viagem não será narrada. Outras coisas bacanas ocorreram, como assistir o jogo do Náutico com o Botafogo na TV na quarta, comendo uma iguaria preparada pelo chef Pedro Emanuel e bebendo muito vinho no AP de Veridiana, namorada de Thiago. Subir o Morro do Fallet, foi uma experiência sociológica inesquecível. As festinhas na UFF com direito a muita loucura por parte dos encontristas.

Quero terminar essa postagem com mais dois momentos, pois já me alonguei bastante. A primeira foi visitar a Floresta da Tijuca. Três horas de trilha até que chegassemos ao Pico da Tijuca. Um local cheio de cachoeiras, riachos, ar puro, refrescante, um paraíso, legitimamente. Subimos exaustivamente até alcançarmos uma rocha. À partir dali, teríamos que subirmos agarrados a uma corrente de ferro da época de D. Pedro II, qualquer deslize, um abraço! O segredo seria não olhar pra trás, coisa nada fácil para um ser curioso como eu. O olhar tresloucadamente lisérgico, observava o Rio de Janeiro do alto. Lá em cima, as pernas tremiam. As nuvens passavam abaixo dos nossos pés, às vezes ficávamos dentro das nuvens! Quando uma clareira se abria no dia nublado, avistávamos o cenário da cidade quase inteiramente. Parecia que um mapa do Rio de Janeiro tinha se aberto aos nossos olhos. Nossos amigos cariocas, Pedro Alô e Pedro Emanuel, mostravam os bairros e favelas. O imperioso Maracanã, o maior do mundo, parecia uma tampinha de coca-cola no chão. Isso fazia minha pernas sacolejarem ainda mais. Sentei-me no chão pra me acalmar. A volta foi mais tensa, prometi não olhar pra outro lugar que não fosse a pedra e a corrente. Ufa! Enfim, terra firme e a descida. Anoitecia no parque e quem nos guiava de volta eram os vagalumes e o som das cachoeiras. Voltamos ao bairro da Tijuca e de lá, nossa maratona de volta para Niterói, com direito a um rasante de um avião sobre a barca que faz o trajeto entre a Praça XV e o centro de Nictheroy. Ao final do dia, tive a sensação que vivi um dos melhores dias da minha existência.

Chegara a última noite no Rio. O dinheiro rareava. Mas, como dito anteriormente, eu tinha levado vários litros de cachaça. Saímos para curtir a noite na Lapa, decididos a entrarmos numa festinha com clima de carnaval, muito samba e empolgação. Após uma longa pesquisa, descobrimos que a vibe seria irmos ao Teatro Odisséia. Pegamos o bondinho e fomos pra Santa Teresa, depois para a Lapa acompanhados pela garoa incessante. Ficamos bebendo num posto de gasolina na frente do Teatro Odisséia, entramos no show já no "brilho". Quando entramos a casa ainda estava vazia, mas o público ia chegando e o samba da banda Empolga às 9 ia temperando o caldo. Quando a festinha estava bombando, a vocalista da banda ia apresentando os músicos que eram aplaudidos com fervor. De repente, ela pede pra parar o show. O dono da casa de show toma o microfone e diz: "Atenção, pessoal fiquem calmos!" Pensei: "Fudeu, tá tendo tiroteio em algum lugar!" O cara continuou: "Está ocorrendo um pequeno incidente no posto de gasolina aqui na frente, o mais recomendável é que todo mundo venha pro fundo da casa, pois as paredes são antigas e seguras." Quando o segurança abriu a porta, uma fumaça preta tomava conta da rua. O posto de gasolina estava pegando fogo, iria explodia a qualquer momento. Gente sendo pisoteada, gitaria, desespero! As pessoas em dúvida se saíam do Teatro ou se ficavam para morrerem queimadas ali dentro feito um galeto esquecido na chapa.Os bombeiros habilmente domaram o fogo e a festa continuou até de manhã, empolgadíssima. Depois dessa experiência, minha visitação ao Rio poderia acabar.

Viajei preocupado com a violência do Rio, com a pouca grana, sem saber como o povo carioca se comporta em seu reduto. Enfim, cheio de dúvidas. Mas, ao final, só tenho a agradecer aos amigos com quem convivi na semana que passou: Thiago Heise, Pedro Alô, Léo, Pedro Emanuel, Veridiana, Gabi, além dos recifenses, Susana, Daniel e Camila. Infelizmente não pude encontrar Michele, Juliana Palmeira e Rodrigo Lamosa, mas tudo bem, fica para uma próxima. Meu chip do celular foi pro espaço no segundo dia de Rio de Janeiro, perdi toda a minha agenda telefônica, além do mais só entrei na net uma única vez nesse período pra passar meia horinha. Agradeço a todos que me receberam e foram atenciosos. Ao contrário do preconceito que se cria que o povo carioca é marrento e cabuloso, vi gente muito prestativa e educada, gente fina no melhor sentido da palavra. Não senti clima de assalto ou violência, o maior susto foi imaginar a Lapa ir pelos ares com a explosão do posto de gasolina. Quando estive andando pelas ruas de Niterói, comprei um livro das Viagens de Marco Polo no século XIII. Lá ele narra as impressões das cidades que visitava, assim também tento fazer, provavelmente com menos categoria, mas é inegável que o contraste causado pelo olhar de um estrangeiro sempre oferece um novo e prazeroso olhar sobre o local visitado. Obrigado Rio por ter me concedido uma das semanas mais prazerosas de minha vida. Alô Rio de Janeiro, aquele abraço!

terça-feira, 14 de julho de 2009

O Milagre Secreto de Dostoievski

Universidade Federal de Pernambuco
Centro de Artes e Comunicação
Pós-Graduação em Letras
Prof. Dr. Lourival Holanda
Disciplina: Estudos Comparativos.
Aluno: Odomiro Barreiro Fonseca Filho
Assunto: Trabalho de conclusão da disciplina
Título: O Milagre Secreto de Dostoievski.



“Não chegar ao fim é o que faz a tua grandeza.” Goethe

Quem conhece a história da vida de Dostoievski sabe o quão tribulada foi a experiência sofrida pelo escritor russo, desde sua infância na fria relação com o pai, ou dos arrochos financeiros enfrentados nas errâncias pelos confins da Rússia ou pela Europa. Mas, nenhum momento foi tão decisivo na vida do escritor russo quanto o dia 22 de dezembro de 1849. Dostoievski estava condenado ao fuzilamento por alta traição ao governo imperial russo, representado pela figura do tsar Nikolai II. Dostoievski freqüentava o círculo de Petratchévski, um pequeno líder dos descontentes com o tsarismo, que fora descoberto pelo espião de codinome Antonelli e entregue à polícia investigativa. Era o fim de uma breve carreira literária que tinha encontrado seu ápice nos dois primeiros romances, Gente Pobre e O Duplo (ou O Sósia). Constava Dostoievski à época dos seus 28 anos.

Aos que se predispõe a ler a coletânea de ficções do escritor argentino Jorge Luís Borges, encontrarão entre tantas histórias, literalmente, fantásticas, a ficção que narra a condenação do escritor tcheco Jaromir Hladík, chamada O Milagre Secreto. Nessa ficção, que se passa na cidade de Praga, sitiada pelos nazistas durante a segunda guerra mundial, mais precisamente no dia 14 de março de 1939, o escritor Jaromir Hladík, um descendente de judeus, tradutor de obras ligadas a cultura judaica, além de uma Vindicação da eternidade e de uma inconclusa tragédia em versos, que seria a grande obra guardada em seu espírito, desejosa de se eternizar para a humanidade, chamada Os Inimigos, será conduzido a um quartel com o intuito de ser investigado e, se comprovada sua ligação com o povo semita, será levado ao fuzilamento pelos policiais da Gestapo.

Nesse ponto da ficção de Borges, iremos encontrar um cruzamento com a situação vivida por Dostoievski, quase cem anos antes. Ambos os escritores estão presos, sujeitos ao fuzilamento, investigados por conspirarem contra o regime em vigor, fragilizados como um rato numa tocaia, à espera do julgamento de seus algozes. O que une ambos os escritores, além dos sentimentos de medo e aflição, é um fio de esperança, que alguma salvação repentina os tire desse lúgubre enlace. Ante a morte que se aproxima, essa salvação não poderia advir de seres carnais, mas apenas uma intervenção divina seria capaz de tirar nossos heróis de seus respectivos calabouços. E essa esperança numa salvação divina irá motivar os pedidos de ambos.

Quando falamos em esperança, falamos de projeto, de desejo de construção, da realização de uma obra que de alguma maneira vai resgatar o que só o escritor tem dentro de si, e que ele precisa narrar para o mundo, seja uma angústia, uma saída, uma palavra de conforto ou uma demonstração de desespero. Da esperança a ação. A esperança é a mola propulsora da vontade humana, é a busca do objetivo que dá sentido a existência, capaz de mudar as bases do presente fastidioso.

A humanidade entregou seu destino a grandes idéias de homens que fundaram tradições, lançaram utopias e profetizaram um futuro perfeito em oposição à realidade, sempre incompleta. Na doutrina cristã, o paraíso é atingido através da ação humana na terra. Um conceito progressista, onde a salvação é alcançada pelos atos desenvolvidos em vida. No socialismo, o vislumbrar de uma sociedade perfeita, onde não houvesse desigualdades econômicas, levou nações a agir em nome do dogmatismo comunista. Em ambos os casos, a esperança de uma obra futura leva o homem a agir, a construir e modificar. Uma nova humanidade é/seria possível.

Na literatura, esse desejo de construir, essa esperança em estar na próxima geração, é capturada por Harold Bloom nos livros: Um Mapa da Desleitura e A Angústia da Influência, onde o autor, em sua busca pela eternidade, se entranha naquele que irá influenciar[1]. É a voz que não pode morrer, ela se eterniza nos leus leitores, dessa forma Homero permanece vivo por mais de 2.800 anos. O poeta sabe que tem algo a dizer, que talvez, não seja interpretado por sua geração, mas pela vindoura, mas sua voz precisa ecoar, precisa emergir seu pensamento até que encontre intérpretes além dos limites da folha escrita.

A palavra esperança fez parte de vários capítulos da vida de Dostoievski, desde os momentos em que estivera preso na Fortaleza Pedro-Paulo em Petersburgo, passando pelas intempéries do presídio em Omsk, das privações financeiras na Suíça ou na Alemanha, na correria para entregar uma obra cujo dinheiro já havia sido empenhado, o desejo de levar uma vida sossegada que não foi feita para ele. Dostoievski esteve sempre lutando contra e pela vida.

Na ficção de Borges, o escritor Hladík, enquanto estava preso, já sabendo de sua condenação por fuzilamento, que se daria em poucos dias, solicita a Deus um milagre que o salve do momento final. Deixarei que o próprio Borges o faça pedir: “Um ano inteiro solicitara a Deus para terminar seu trabalho: um ano lhe outorgava sua onipotência. Deus laborava para ele um milagre secreto: matá-lo-ia o chumbo alemão, na hora determinada, mas em sua mente um ano transcorria entre a ordem e a execução da ordem.”[2]
O tempo parara para Hladik. Tendo à sua disposição apenas a memória, passou a talhar, entre a ordem do interlocutor militar, a gota de chuva que molhara seu rosto e o disparo do chumbo, sua obra, assim como pedira na noite anterior à execução:

“Não trabalhou para a posteridade, nem ainda para Deus, de cujas preferências literárias pouco sabia. Minucioso, imóvel, secreto, urdiu no tempo seu labirinto invisível. Refez o terceiro ato duas vezes. Eliminou algum símbolo demasiado evidente: as repetidas badaladas, a música. Nenhuma circunstância o importunava. Omitiu, abreviou, amplificou; em certos casos, optou pela versão primitiva. Chegou a querer o pátio, o quartel; um dos rostos diante dele modificou sua concepção do caráter de Roemerstadt. Descobriu que as árduas cacofonias que tanto alarmaram Flaubert são meras superstições visuais: debilidades e moléstias da palavra escrita, não da palavra sonora... Pôs fim a seu drama: não lhe faltava resolver senão um único epíteto. Encontrou-o; a gota d água resvalou em sua face. Iniciou um grito enlouquecido, moveu o rosto, o quádruplo disparo o derrubou.”[3]

Aproxima-se o dia do fuzilamento, Dostoievski mergulhado no inferno da ansiedade, exclama numa carta endereçada ao seu irmão mais velho, Mikhail, a vontade que desejara que um milagre ocorresse em sua vida, que aquele tormento da morte não passasse de mais uma de suas visagens. Diz Fiódor ao irmão: “Ah, se eles me deixassem não morrer! Que coisa vasta seria cada minuto a mais, meu Deus.” [4] Porém, o dia do fuzilamento chegara e os seis condenados se encontravam no pátio para a descarga fatal. Três homens já estavam amarrados ao poste, com a arma apontada para a nuca. Dostoievski estaria no segundo time de executados. Quando se abre a contagem, o “milagre” pedido por Dostoievski acontece. Um soldado adentra no pátio com uma carta do tsar Nikolai II perdoando os condenados e demonstrando a piedade da qual o grupo desdenhava. Iriam para os trabalhos forçados na Sibéria, perto de Omsk. O choque da sensação de ter a morte cronometrada enlouquecera para sempre um dos acusados, o rebelde Grigoriev. Essa tortura psicológica onde o mesmo, assim como Hladik, apoquentava-se sobre o segundo final antes da bala perfurar sua nuca, veio a ser tratada no livro O Idiota, quando o Príncipe Mischkin pede a Adelaída Epantchiná que pinte o quadro de um homem que estaria a segundos de ter sua cabeça decepada por uma lâmina guilhotinante. Ainda em seus relatos sobre a vertigem causada pela “sensação de torre” da epilepsia, iremos encontrar vestígios de seu drama momentos antes da execução. Os personagens Ivan Karamazov, Smerdiakov e o Príncipe Mischkin são relatos dessa “sensação de torre”, experimentada por Dostoievski.

A partir de então, Dostoievski vai oscilar em sua fé. Da descrença de sua juventude até o débito vital com a divindade, essa dualidade vai ser personalizada em vários de seus personagens, mas especialmente em Ivan Karamazov, que de certa forma, é uma faceta do escritor. Dostoievski vai conviver com toda espécie de criminosos da Rússia e, irá agradecer por ter a oportunidade de sofrer, pois seu cristianismo não fora aprendido nos catecismos da Igreja, mas da relação com os homens mais bestiais. Dizia Dostoievski: “Os impedidos de descer ao inferno nunca farão idéia do paraíso.”[5] Anos depois, leremos essa mesma frase nas palavras de um certo personagem enigmático de Nietzsche: “Só onde há sepulturas é que há ressurreições.”[6] Assim falava Zaratustra.

Já na Sibéria, Dostoievski escreve novamente ao seu irmão, bastante comovido, diz:

“Mikhail, não me sinto abatido, não perdi a coragem. Seja onde for, a vida é sempre a vida, a vida está dentro de nós e não fora de nós. Haverá seres humanos junto de mim, e ser um homem entre os homens e permanecer humano para sempre, não desesperar nem desistir, seja em que circunstâncias for, por mais dolorosas e miseráveis _ eis a razão de ser da vida. Assim o compreendi. Esta idéia penetrou-me na carne, no sangue. Sim, é verdade! A mente que concebera e vivera a mais elevada vida de artista e se acostumara às mais elevadas exigências do espírito – foi banida.”[7]

Essa renovação do espírito através do sofrimento, essa expurgação estará presente em personagens como Raskolnikov e Dmitri Karamazov, onde ambos são condenados a trabalhos forçados na Sibéria e aceitam a pena com devoção, pois só dessa maneira poderão limpar as maleficências e deficiências de seus caráteres. Do sofrimento na fortaleza Pedro-Paulo em Petersburgo surgira a esperança, que se o milagre de viver fosse concedido, quantas coisas grandiosas nosso escritor russo escreveria. Como muito bem sublinhou o crítico Stefan Zweig, Dostoievski é um prisioneiro emparedado das galés da literatura, sempre disposto a quitar sua dívida com os homens e com o espírito.[8]

O tempo que a gota da chuva demora para descer do rosto de Dostoievski durará quase trinta e dois anos e enquanto Deus o esperava, assistiu um homem desesperado em convencer-se do milagre e em difundir as turbulências dos recônditos da alma. A grandeza de Borges em resgatar a alucinação de Hladík faz-nos sensibilizar com o drama de Dostoievski, onde as duas vidas se convergem, onde o fantástico adquire o aspecto de real, na imagem de um homem que se curva perante o infinito.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Boaco - A Esquina dos Estudantes

Janeiro de 1980. Após a passagem de ano, resolvi que faria uma viagem espiritual pela América Central. Constava à época dos meus dezenove anos e era minha primeira viagem internacional. Desembarquei no dia 04 de Janeiro no Aeoroporto de San José na Costa Rica e decidi-me a conhecer as belezas e encantos dos países da parte norte da América Latina. Enquanto estava na Costa Rica, tudo se apresentava de maneira agradável. O país era bem organizado, com uma capital moderna, população de origem espanhola, enfim, um país senão rico, cortêz. Ao denunciar minha intenção de subir de ônibus para o México, passando pelos países que ficavam no meio do caminho do citado destino, os costarriquenhos, advertiam-me que a Nicarágua seria o lugar mais perigoso que iria encontrar. Um lugar de gente bárbara, muita população indígena, pouco civilizados, um país pobre e pra completar, saído de uma revolução que deixara toda a burocracia de pernas pro ar. Meu espírito de jovem altaneiro, pouco se apoquentou com as advertências.

Eis-me em Manágua. A primeira impressão foi de susto. A diferença econômica entre a Costa Rica e a Nicarágua era abissal. Desembarquei na rodoviária de Manágua às 14:30 e estava morrendo de fome. Atravessei uma pista de quatro faixas que ficava na frente da rodoviária e entrei num restaurante simples, cheio de pessoas falando muito alto e que logo se aperceberam que eu era um turista. Olhavam-me de soslaio. Fiquei com medo de ser assaltado, principalmente ao lembrar-me das advertências dos costarriquenhos, que perguntavam se eu era louco de visitar a Nicarágua. Perguntei à garçonete o que ela tinha para almoçar e ela sugeriu uma galinha cabidela. Comi, pedi uma coca-cola e pedi a conta. A mulher falando muito baixo, talvez para que os outros clientes não ouvissem, disse-me que a refeição e o refrigerante custariam 1 dólar. Paguei e pela cara de satisfação da garçonete, ela deve ter saturado um pouco no preço. Percorri as imediações da rodoviária de Manágua e o aspecto sisudo dos habitantes tornou-me odioso o lugar. Resolvi que naquela tarde mesmo pegaria um ônibus pro interior, pois tinha o interesse em conhecer a essência dos lugares e ao meu ver, essa raiz só podia ser encontrada no interior, longe dos grandes centros urbanos. Olhei no mapa e decidi que iria para Matagalpa ou para Boaco. Cheguei no guichê e perguntei de que horas sairia o ônibus para Matagalpa. A mulher muito mal humorada disse que os dois ônibus para Matagalpa já haviam saído e que o próximo só embarcaria no outro dia pela manhã. Perguntei se tinha passagem para Boaco e ela disse que o ônibus sairia em 20 minutos. Comprei a passagem por 3,50 dólares. Embarquei num ônibus amarelo, muito velho, com as letras arredondadas escrito acima do vidro do motorista (Managua - Boaco).

Tudo naquele país parecia muito rústico e fastidioso. Decidi-me que não me demoraria em Boaco e que no próximo dia pegaria um ônibus de Boaco para Matagalpa, e posteriormente, de Matagalpa para Tegucigalpa, já em Honduras. Sentei-me na janela do ônibus, do lado esquerdo. Ainda hoje, tanto tempo depois, me recordo da paisagem do Lago Manágua ao longe, com o brilho do pôr do sol reluzindo naquele imenso espelho d´água. Na beira da estrada, avistava flores que pareciam terem sido plantadas por hábeis mãos humanas. Mas, essa idéia logo se dissipou de minha mente ao perceber que aquele canteiro formado por plantinhas de flores amarelas se estendia por vários quilômetros. Na estrada, muitas árvores de tronco fino, com a abóbada cheia de flores róseas, o céu meio nublado ao fundo. O ar era puro e pela primeira vez em território nicaraguense, senti-me relaxado. O caminho entre Manágua e Boaco durava em média duas horas e enquanto tentava captar na mente o máximo de informações visuais, avistava a chegada de um vilarejo, era a cidade de San Benito, onde o ônibus tomou o caminho à direita e seguiu uma estrada que estava em péssimo estado rumo a Boaco. No caminho muitos pinheiros e uma árvore que eles chamam de guayacanes que se mostrava muito presente por todo o caminho, com suas folhas amarelas ou róseas compunham um visual inesquecível para o viajante.

Cheguei em Boaco pela noite e parti à procura de algum hotel. Encontrei a pensão da sra. Lorena Gutierrez, que cobrou-me a pechincha de 2 dólares por diária. Resolvi sair da pensão, após tomar um banho gelado e encontrar o parque el cerrito, onde os jovens se encontravam. As pessoas me olhavam desconfiadas na rua. Tentei achar que tudo aquilo seria normal, em toda cidade de interior um forasteiro é malquisto, incialmente. Encontrei dois jovens a conversar num banco. Aproximei-me e puxei conversa, disse que era brasileiro e que estava conhecendo a América Central. Então, os jovens se mostraram satisfeitos por conhecerem alguém do Brasil e perguntaram por quê fui para Boaco e não para Manágua ou Matagalpa. Expliquei os imbróglios da viagem. Os jovens eram inteligentes e auspiciosos, porém se mostravam inquietos em falar de política, afinal, eu poderia ser um espião naqueles tempos de turbulência. Nos apresentamos e fiquei sabendo que eles se chamavam Tirzo Ramón, de 19 anos, e Edwind Almanza, de 17 anos. O primeiro estava tentando estudar numa universidade na Costa Rica ou em outro local que houvesse brecha para recebê-lo. O segundo também almejava mudar de país. Eles sugeriram que no próximo dia, às 18h eu os encontrasse naquele mesmo banco que eles me levariam à Esquina dos Estudantes, o único local onde haveria gente interessante em Boaco, segundo os próprios, pois o resto da população era ignorante.

No dia seguinte, aluguei uma Toyota e fui conhecer os vales e montanhas da região central da Nicarágua. Fui à vila de Santa Lucía e Terrabona, antes de regressar à ciudade de dós pisos, como é conhecida Boaco, pois como a cidade é construída numa região montanhosa, possui dois andares. Apressei-me para ser pontual e cheguei no horário marcado no banco em El Cerrito onde encontrei Tirzo e Edwind. Eles foram me explicando o que era a Esquina dos Estudantes. Era um local, onde os melhores estudantes da cidade se encontravam para formular charadas e que vencia a disputa aquele que formulasse a melhor pergunta sem que os adversários descobrissem a resposta. Era um grupo de 9 estudantes, todos vestidos à moda nicaraguense. Calça jeans na altura da barriga, cinto de couro, camisa de xadrez e chapéu de couro com abas nas pontas. Alguns portavam bigodes. Muitos tinham expressões faciais indígenas, outros eram mais parecidos com espanhóis, mas eram mestiços. As perguntas feitas na roda eram do tipo charada mesmo. Por exemplo: "Qual o nome da mãe de Nero?", ou ainda, "Qual a capital de Indonésia?", ou, "Em que ano morreu Albert Einstein?". E vencia aquele que fizesse a pergunta mais difícil e que não obtivesse resposta. Aliás, a resposta não era dada no momento da charada. No outro dia, os estudantes se lançavam na biblioteca atrás da resposta e o perguntador ganhava ainda mais respeito entre os colegas. Um jovem chamava a atenção no grupo, era o baixinho Chino, de aspecto muito intrigado. Andava sorrateiramente e sempre que chegava na roda fazia a pergunta mais difícil. Não que fosse o mais inteligente. Ele quase nunca respondia uma pergunta, mas parecia ficar procurando a charada mais complicada para fazer depois da aula. Assim, aqueles estudantes gastavam o tempo naquela cidade esquecida no interior do país, talvez, mais esquecido da América Central.

No outro dia pela manhã, parti de Boaco. Minha última lembrança da cidade foi quando subi no ônibus e vi um grupo de fazendeiros montados em seus cavalos a discutir um assunto o qual não consegui entender. Um parecia se destacar entre os cavaleiros, usava uma camisa de botão alaranjada e um relógio reluzente no braço direito. Parecia comandar as ações. O ônibus partiu para Matagalpa, parando ao meio-dia na cidade de Muy-Muy, onde almocei. Vocês devem se perguntar o que de tão fantástico aconteceu que merecesse ser relatado nessa típica literatura de viajante? Pois bem, vou explicar. Ontem, andando pelas ruas do bairro da Várzea, aqui no Recife. Parei num botequinho em péssimo estado de conservação, mas que é afamado por ter o caldinho de feijão mais gostoso do bairro. Resolvi tomar uma lapadinha de cachaça e um caldinho naquele fim de tarde. Então, chamou-me a atenção a conversação de dois homens que falavam um espanhol brabo, tão rápido que eu quase não conseguia decifrar nada. Pareciam engolir as palavras, num vocabulário acessível apenas aos dois. Comecei a reparar em suas fisionomias e teimei em acreditar que conhecia aqueles rostos de algum lugar. Perguntei ao Mário, o dono do estabelecimente, quem eram aquelas figuras que se distinguiam dos outros frequentadores do recinto, que variavam de pedreiros a policias, passando por funcionários públicos. Seu Mário disse que o senhor grisalho era Tirzo Ramón, professor de agronomia da Universidade Federal Rural de Pernambuco e o segundo era um dentista que morava em Salvador e que toda vez que vinha a Recife, aparecia para tomar uma no seu caldinho. Não tive dúvidas que eram Tirzo e Edwind da Esquina dos Estudantes. Fiquei a fitá-los de longe. Me perguntava o que faziam bebendo naquela espelunca, falando espanhol em bom tom e sendo perturbado, vez por outra, por algum bêbado importuno. Tirzo percebeu meu olhar curioso para a conversa, mas não me reconheceu e voltou as atenções para a conversa com seu parceiro. Paguei a conta e fui pra casa sem ter interrompido a conversa dos dois. Fiquei feliz em ver que aquela Esquina naquele começo de noite de um dia qualquer de 1980 conseguiu formar pessoas que emergiram daquele local esquecido, de pessoas rústicas, onde nada parecia acontecer. Não ousei me aproximar para não quebrar o encanto da minha resolução. Essa foi minha lembrança principal de Boaco e da Nicarágua, ampliada pelo encontro insperado.