terça-feira, 29 de setembro de 2009

Passeio Noturno

Passava das 23 horas da segunda-feira, quando meu telefone tocou. Estivera inquieto durante todo o dia, trancado em meu apartamento, não suportava mais meus solilóquios, minhas culpas e reclamações à respeito do infortunado presente. Do outro lado da linha, uma voz que mais parecia uma gravação de um disco de vinil antigo, com aquele chuviscado ao fundo, dizia-me em russo uma simples frase: "Ivan Ilitch morrera!" E por mais dois ou três segundos escutava apenas o ruidoso silêncio da suposta gravação. Desliguei o telefone e recorrendo ao número, surpreeendi-me que a ligação não deixara registro algum. Talvez as excessivas preocupações dos últimos meses, acentuadas com o ascesso de uma possível esquizofrenia, estivessem me produzindo alucinações auditivas. Resolvi que abandonaria meu celular em casa e iria flanar um pouco pela noite mal iluminada. Com os moradores a dormir, trancados em casa, no silêncio da caminhada, respiraria um ar puro, distante da impoluta convivência do meu apartamento.

Atravessei todo o bairro do Engenho do Meio numa caminhada solitária, passara pelo convento do Bom Pastor onde uma agradável sinfonia se fazia ouvir, dirigia-me até as imediações da Avenida Caxangá. Nesse ínterim, percebi poucos transeuntes a arriscar um passeio por aquela já distante hora. O comércio fechado. Um bêbado a vaguear ao longe, um segurança apitando sob uma bicicleta. Resolvera voltar. Ao olhar para o céu percebi que nuvens avolumaram-se, enegrecera-se a noite, uma densa enxurrada se anunciava. Tempo estranho. Em setembro, a última tromba d'água antes do longo e cálido verão. Passava pela tubulação da COMPESA quando a forte chuva me alcançou, nem sequer teve a discrição de cair em pausada garoa. Apressei-me em direção ao convento do Bom Pastor onde na ida, escutara ao longe, uma sinfonia irreconhecível. Ao atravessar a praça do convento, podia avistar o arco de entrada. Um arco que se espairava por alguns metros, diferente da visão habitual, esse arco parecia mais um tunel. Ao me aproximar, pude perceber que o som que vinha do convento era a Marcha Eslava de Tchaikovski, em seus primeiros, sombrios e quase silenciosos acordes. À esse momento, minha roupa estava encharcada e fui me proteger na escuridão do estranho tunel da entrada do convento. Ainda mais excêntrico era imaginar que música tão pomposa fosse ouvida num convento àquela hora da noite, beirando a passagem do dia, numa altura imprópria para o ambiente.

Adentrei-me no tunel escuro. Fiquei próximo da saída, onde as luzes dos postes pudessem ilumiar ao menos minhas pernas. A música me entretia e estava até feliz de escutar a reconhecível sinfonia naquela hora inoportuna. Mas, ao retumbar das notas fortes acompanhadas do estrondo provocado pelos tímpanos e címbalos, percebo um vulto a aproximar-se. Um velho com um chapéu de cangaceiro estava prostrado ao meu lado e à medida que se aproxiamva da claridade advinda dos postes, sua imagem ia se clarificando pra mim. Usava uma roupa antiga, era um legítimo cangaceiro, seus olhos eram extremamente vermelhos, seus dentes amarelos. Sua aparição no exato momento em que o tom da música crescia, causou-me um espanto que meus cabelos só não se puseram de todo em pé porque estava todo molhado da chuva. O coração pulsava na garganta. Escutava-se no momento do encontro apenas a retumbante música e a estrondosa chuva. Cautelosamente, dirigi-me ao homem, balbuciando qualquer coisa que pudesse soar amistosa: "Que chuva, hein!?" O homem limitou-se a concordar com um expressivo balançar vertical de cabeça. Continuei: "Por um segundo, cheguei a acreditar que se tratasse de um fantasma, ora essa." O homem com um sotaque do interior, finalmente disse alguma coisa. "Estou procurando uma estrada de terra que vai pra São Paulo, me disseram que posso encontrá-la em Ponte dos Carvalhos." Expliquei-o que estávamos muito longe de Ponte dos Carvalhos, que fosse melhor ele tomar um ônibus em direção ao Cabo de Santo Agostinho, tão breve os ônibus voltassem a circular. O homem mal prestou atenção ao que eu dizia, cortando-me a fala antes que terminasse, disse-me que vinha andando desde o sertão da Paraíba e que sua última parada fôra em Itamaracá. Pôs-se a contar uma história que escutara quando da passagem pelas proximidades da Ilha da pedra que canta.

Tratava-se da morte de um bebê numa vila de pescadores há muito tempo atrás. Um casal de noivos recém-matrimoniados tivera seu primeiro rebento. Um menino gordo, moreno, seria uma dos melhores pescadores que aquela ilha tivera. A mãe, um tanto fragilizada, de compleição enfraquecida, não conseguia dar conta da fome do recém-nascido. O menino passara a sugar o leite com tanta força que o peito da mãe criara um coagulo, um inchaço. Ela revezava os seios, mas não dava conta da vontade do bebê, que se punha a chorar, irritando de sobremaneira o pai. Após algumas semanas, os peitos da mãe se trasformaram em duas bolas inchadas, onde não podia nem apalpar. O menino continuava a gritar de fome. Sem explicação médica convincente, após uma noite de grandioso esforço para amamentar, a mãe da criança aparecera morta. O pai se esforçava em conseguir leite com os outros moradores da vila, mas a única ama de leite, estava com o peito quase seco. O pescador muito abalado pela perda da esposa e sem saber o que fazer com o filho desesperado de fome, tentava alimentá-lo, em vão, com água de coco, mas nada era suficiente. Na outra semana, o menino morrera. O pai, abalado, lançara-se ao mar e nunca mais fôra visto na comunidade, tendo sua embarcação regressado para ilha sem ninguém dentro. Após esse acontecimento, muitos pescadores de Itamaracá e região, dizem que no meio do silêncio do mar, em suas buscadas, escutam no meio do distante vão marítimo, um choro desesperado de criança com fome. Um choro tão atormentador que aposentou velhos barqueiros, que após escutarem o choro da criança nunca mais se arriscaram a enfrentar a vastidão do oceano em busca de alimento.

Eu escutava o relato do homem que falava vagarosamente e ao retumbar dos acordes da marcha que fazia cenário para sua narrativa, designava-me olhares expressivos, arregalados, cheios de sangue que pareciam encandecentes naqueles olhos ferventes. Quando o homem terminou de contar sua história, a chuva parou abruptamente. Não demorei-me e pedi licença ao homem, já me deslocando para fora do túnel. Disse-lhe rapidamente que fizesse uma boa viagem. Não olhei mais para trás até que estivesse distante uns 100 passos do arco do convento. Quando voltei meu olhar para o local onde a cena se desencadeara não havia sinal de qualquer pessoa, olhei para dentro do túnel e não havia vulto. Tomei o caminho errado de casa, aliás tudo parecia estranho, as construções pareciam antigas. Cheguei a uma larga rua onde não havia asfalto. O silêncio só não era absoluto devido às gotas d'água que caíam espassadamente da copa das árvores. Na escuridão da noite, avistei um farol de um caminhão que produzia um barulho excessivo. Um caminhão antigo, azul, com uma lona amarela na caçamba. Dentro, muitas pessoas. Famílias inteiras, víveres, medo e esperança perpetraram meu espírito durante os dez segundos em que avistei o caminhão chegar e passar. No fundo da caçamba, percebi o olhar de uma mulher que parecia minha mãe em seus retratos de juventude. Tentei acenar, mas o caminhão já se ia longe, espalhando lama pela estrada de barro. Entorpecido pela sequência de visões, corri feito um louco, ainda a música de Tchaikovski parecia me alcançar, me perseguir. Dobrei a última esquina do passado e vi-me novamente na rua de casa, defronte ao portão. Aconcheguei-me em casa, arremessei na rua meu disco de Tchaikovski.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

O Brinquedo

O destino me possibilitou nascer numa família em que nunca me faltou as necessidades básicas e sou muito grato por isso. Quando criança, tive à disposição uma vasta gama de brinquedos e videogames, pude estudar em colégio particular e ter boa alimentação. Por esses dias, estive recordando os brinquedos que fizeram parte da minha infância. Era uma criança que gostava de destruir tudo, não tinha muito zelo. Até hoje, minha mãe diz que gastou tanto pra comprar um carrinho "bate e volta" e no segundo dia, o carro já estava quebrado e desmontado. Antes isso tivesse aguçado em mim a aptidão de ser um engenheiro ou coisa parecida, mas não, não disponho do menor dom de consertar qualquer objeto. Mas, entre todos os presentes que ganhei, houve um que me chamou mais a atenção. Brincava com ele o dia todo, dentro de casa, na rua, levava pra casa dos primos e etc. Tratava-se de um globo terrestre.

Era um globo grande para uma criança de 6 anos, apertava-o contra a barriga e o peito. Era de plástico e podia jogá-lo contra a parede que ele voltava, chutá-lo e tudo mais. Dormia ao lado da minha cama. Minha maior diversão era arrmessá-lo para o alto e onde meu olhar fixasse um ponto, decorava o país e a capital. Aprendia o nome das cidades grandes de cada país. E nessa brincadeira, em pouco tempo, eu já sabia praticamente todas as capitais dos países do mundo. Naquele tempo, década de oitenta, a União Soviética não havia se desintegrado, a África tinha países com nomes diferentes dos atuais, como a Rodésia, por exemplo. Mianmar era Birmânia. Havia duas alemanhas. Mas, aos poucos e sem compromisso, fiquei sabendo quase todas as capitais e onde cada país se localizava, o nome dos lagos, dos mares, das ilhas do pacífico, dos estreitos e terras de príncipes da Antártida. Meus tios chegavam aqui em casa e ficavam me desafiando: Odomirinho, qual a capital da Indonésia? Prontamente, eu respondia: Jacarta, na ilha de Java. Lembro-me do meu tio Edwind, gritando com seu sotaque nicaraguense: Heya! Tem que levar esse menino pro Faustão!

Com o passar dos meses, meus primos vinham aqui pra casa e eu ficava ensinando as capitais do mundo pra eles, aplicava provas e deixava até alguns em recuperação! Tinha uma pequena lousa com giz no meu quarto. Depois de um ano, o globo estourou e como eu já estava ficando maiorzinho, passei a comprar os exemplares do Almanaque Abril. Na casa do meu avô, aqui perto no Engenho do Meio, tinha a coleção completa da Mirador Internacional, onde eu me deitava na sala a observar as fotos e os textos sobre os diferentes países ao redor do mundo. Meu avô era um grande entusiasta e me deixava brincar à vontade, mesmo quando uma tia, por (des)ventura, reclamava: vai sujar esses livros que Toinho deu pra papai!

Ainda nos dias de hoje, recordo-me de muita coisa que aprendi naquela infância, hoje distante. Não posso negar que as diferentes culturas ao redor do mundo me fascinam. Não que seja uma estúpida admiração em contraponto à cultura brasileira, mas me encanta saber que conjuntos de pessoas puderam dar diferentes significados em seu modo de se posicionar perante a natureza. Um dos livros que mais me impressionou nos últimos tempos (acho que já falei dele em algumas postagens anteriores) é o Il Milione de Marco Polo, onde ele faz um riquíssimo relato sobre o mundo oriental no século XIII, os costumes de cada cidade, sua localização geográfica e suas riquezas naturais. Posteriormente, Italo Calvino continuou essa viagem no livro Cidades Invisíveis. E também nós podemos continuar essa travessia, porque o mundo aí está, carente de nosso olhar e respeito. Um certo dia, estive num deserto perto da divisa da Argélia com a Mauritânia, a noite mais estrelada que um citadino jamais vira, não tinha medo de estar perdido, nem mesmo sabia como estivera alí...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Cada um com seu Glamour

Segundo o filósofo alemão Peter Sloterdijk, a palavra Glamour é derivada da palavra inglesa Grammar, ou seja, gramática. Deixemos que ele explique:

1. A expressão para "magia" emerge da palavra "gramática". [glamour, originalmente com o sentido de "encantamento", "feitiço", provém de glammar, variante da dissimiliação de grammar, no sentido de "conhecimento oculto".]

Na Inglaterra medieval, o homem que bem dominasse a leitura e a boa escrita era possuidor de certos encantos e fascínios, sendo portanto, uma pessoa de glamour, de conhecimento desse poder oculto. Nos dias de hoje, aqui no nosso país especialmente, onde a leitura e a escrita, o conhecimento e o encanto, não possuem a galhardia de outrora, a palavra glamour ganhou contornos simplórios e empobrecidos, chegando a se associar a mulheres de pouca, ou quase nenhuma, instrução que são formosas apenas nas angulações e arredondados contornos corporais.

Sobre os Rituais da Morte

Cada sociedade tem sua maneira de encarar a morte, isso todo mundo já sabe. Há algum tempo, tenho tido vontade de escrever algo sobre esse ritual de finalização da vida. Algumas pessoas acreditam que é um momento de passagem para um local que, ao certo, ninguém sabe onde fica nem pra que lado vai. Todavia, a intenção dessa minha vinda ao teclado não se justifica pelas especulações à respeito do sobrenatural, mas do ritual próprio de morrer, ser enterrado, ser velado. Tenho percebido que com o passar dos anos, essa cerimônia, antes custosa e prolongada, tem passado por uma tentativa de refinamento, se não espiritual, ao menos do ponto de vista da praticidade.

Em alguns países da América Central, o defunto é tratado como um noivo. É maquiado, vestido na sua melhor roupa, os melhores amigos se põe a chorar. O embelezamento é tamanho que a foto do moribundo fica estampada na sala. Há locais no Oceano Pacífico em que o corpo é atrelado a uma canoa e viaja incessantemente pela infinita vastidão com os pertences do morto. Outros queimam e guardam as cinzas. Os reis mongóis eram levados para as montanhas do Altai para ficarem próximos dos deuses, e assim, uma vasta possibilidade de destinos é oferecida ao recém falecido em diferentes épocas e sociedades. Hoje, ao caminhar em direção a biblioteca, passei na frente do necrotério do Hospital das Clínicas e percebi dois carros funerários estacionados na entrada. O que me chamou a atenção é que não eram aqueles Opalas e Comodoros pretos de antigamente, ou ainda, a Caravan enegrecida. Ambos os carros eram brancos e de última geração. Eu mesmo, me orgulharia muito de possuir um veículo de tamanha envergadura. Uma coisa é notável, o ritual de morrer está passando por uma transformação, se modernizando.

Quando minha mãe era uma jovem senhora no sertão da Paraíba, ela, juntamente com as tias e outras parentas, iam para o velório e se derramavam em pranto por dias inteiros. O defunto só poderia tomar seu caminho pros sete palmos de terra a que todos temos direito, após todos os parentes e vizinhos terem se certificado de que não faltou derramar mais nenhuma lagrimazinha. Pergunto-vos: uma atitude dessas seria conveniente nos dias de hoje? Claro que não! O que dirão na repartição se me virem chorando feito uma criança a perda de minha mãe ou pai!? É provável que o chefe até me demita alegando que uma pessoa que não tem controle emocional não pode defender o emblema de uma empresa de sucesso. As cerimônias são cada vez menos frequentadas, intimistas e precisam apresentar uma aparência de claridade. Os cemitérios já nem pertencem à essa categoria taxonômica, hoje são jardins, parques, moradas. Morada da Paz, Parque das Flores, Jardins do Éden. E assim, por uma boa quantia, passa-se a impressão que o defunto está transladando para um lugar idealizado pelo fetiche dos vivos. A eternidade é garantida pela presença de cópias de quadros de artistas renascentistas, por uma imitação de pensador de Rodin e coisas do gênero. Há até trilha sonora de Beethoven! Nos Estados Unidos, existe um cemitério chamado Forest Lawn-Glendale, na Califórnia, que segue tanto o estilo relatado acima que muitos casamentos são realizados lá (há quem diga que muitos já nascem mortos).

Para mim, o pior é não saber se essa michael-jacksação da morte, deixando sua enegrecida aparência para assumir um caráter alvo, luminoso, não esconde um desapego ao morto, à sua história, suas lembranças. Durante o velório se discute futebol, toma-se whisky, fala-se da bolsa de valores e mais importante que o sentimento e a gratidão em relação ao falecido é a famosa coroa de flores com frases feitas pela própria funerária. Quando eu morrer, quero uma coroa com a frase de Tom Zé: "Na vida quem perde o telhado em troca recebe as estrelas. Pra rimar até se afogar e de soluço em soluço esperar." Não, não! Muito grande! Ficaria muito caro, talvez. O cara da funerária tem uma mais ajustável aos nossos padrões modernos, quem sabe aquela velha frase: "A morte não é o fim. Te amamos." Também a morte virou um dilema entre tradição e modernidade.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Como Posso Estar Sozinho?!

Meia-noite. Devo dormir? Poderia dizer que estou fatigado, após longa viagem. Há quem não acredite, mas isso não me importa. Uns dirão que é humanamente impossível, outros que estou a galhofar. Mas, se exprimo a verdade de forma consciente, como posso me ocultar a relatá-la? Ah, meus amigos, a vida de viajante é turbulenta, em menos de 24h podemos escapar às crepitantes labaredas do inferno e enfrentarmos uma nevasca desoladora. Como numa agenda, deixem-me relatar o que aconteceu. Juro pelo que de mais sagrado há, que tudo, absolutamente tudo, é verdade, e ocorreu num intervalo de 1 dia:

Estive numa praça em Maceió com Graciliano.
Em Alexandria com Teócrito.
Em Roma com Virgílio.
Estive em Paris com John Cale e em Berlin com Nick Cave.
Visitei a tristeza de Schubert em Vienna.
Estive no Rio de Janeiro com Tom Jobim.
Vi Minsk ser pisoteada por uma garota.
Estive em Norilsk, na Sibéria, durante uma tempestade.

O diabo me apareceu e me propôs um pacto. Como sempre: poder!
Em contra-proposta, Deus me ofereceu a suavidade.
Leve gaivota me conduz pelo mundo: céu sem fronteiras!
Familiar jornada.
Barroco desejo de estar em todo lugar.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Yelena Sagarova

Um certo dia, eu conheci uma mulher russa, chamava-se Yelena Sagarova. Era um mulher cinza. Uma prataria esquecida no porão. Isso foi pelos anos de 2002, se não me engano. Mas, antes de chegar na história dessa mulher, carece que outros personagens adentrem na história. Era aluno do terceiro, talvez quarto período de História da UFPE. No intervalo das aulas, os alunos versavam sobre os mais variados temas, desde o tradicional futebol, passando pelas discussões sobre a utilização do marxismo, uns falam mal, outros fazem a defesa de tal professor. Entre tantos colóquios, recordo-me de dois colegas de sala, Flávio e Felipe, que discutiam calorosamente sobre a obra de um tal russo, Dostoievski. Estava num dia de mau humor, não queria ficar conversando no corredor, baixei a cabeça e prestei atenção na conversação. No dia seguinte, na aula de espanhol, uma garota da qual, silenciosamente, me afeiçoava, falou que entre os próximos livros que gostaria de ler, estava o do citado escritor russo. Para ter assunto para conversar com a distinta e jovem dama, corri na biblioteca e peguei o romance autobiográfico, O Jogador, além de um segundo romance chamado Humilhados e Ofendidos.

Comecei a ler com voracidade, sem me ater aos detalhes, queria terminar para poder falar sobre a idéia central, começar o segundo e ter ainda mais assunto para minha sonhada palestra com a estudante de espanhol. O livro O Jogador não deixara uma boa impressão em meu espírito. Pelo que ouvia falar de Dostoiévski, achava que em suas páginas haverias coisas muito mais surpreendentes que um simples relato de um viciado na roleta. Então, em nome à afeição que, calado, dedicava a estudante de espanhol, resolvi ler os Humilhados e Ofendidos. Nesse livro, Dostoievski me fisgou. A morte do cachorro Azorka despertou tamanha comoção em mim que ainda agora, ao escrever, posso reviver a torturante leitura feita dentro do ônibus de Engenho do Meio no horário das 13:00h.

Até então, as leituras eram feitas por prazer, sem uma análise mais aprofundada, sem buscar relações e significados com outros textos. Mas, aquele exótico mundo passava a fazer parte do meu cotidiano: ispravnnik, staretz, samovar, pomechtchik. Um outro amigo, Zé Mário, também me servia de espelho. Seus avanços na língua alemã tornavam possível que ele lesse Göethe e Nietzsche no original. Aquilo muito me impressionava. Não sei se por um pouco de excentricidade ou dedicação à obra de Dostoievski, resolvi que procuraria um professor de russo na cidade, e, mesmo que fosse caro o orçamento das aulas, faria todo esforço para aprender. O problema que em lugar algum era possível. Não havia curso de russo, escola de russo, nem professor particular. Minha empolgação inicial teve que ser freada. Passei alguns meses, talvez tenha completado um ano, e nada acontecia. Até que uma noite, assistindo uma matéria no NETV sobre as presas de outros países que se encontravam na colônia penal feminina do Bom Pastor, percebi uma mulher russa, falando um bom português, ela falava das dificuldades de adaptação e tal. Pensei comigo, vou ter aulas de russo com essa presidiária! Ela estará prestando um serviço comunitário, ocupando sua mente e o governo vai até louvar-me pela idéia. Já pensaram, as encarceiradas estrangeiras ensinando línguas para a comunidade carente?

Noi outro dia, estava na porta do Bom Pastor, dizendo-me estudante e pesquisador de história da Rússia e que gostaria de entrevistar a presa, saber como ela avaliava a transição do socialismo pro capitalismo. A assistente social ouviu-me com desdém, mas disse que se eu levasse um documento assinado pelo secretário do meu curso, eu poderia fazer a entrevista. Corri na sala do Professor Luciano Cerqueira e dois dias depois, estava na colônia penal de novo, dessa vez com a papelada. Mas, não foi possível. Estavam fazendo "pente-fino" nas celas e ninguém podia receber visitas. Me mandaram no outro dia útil, que seria na segunda-feira. Apenas neste dia pude conhecer a russa que deu entrevista na TV.

Ela era muito tímida, a roupa do presídio, suja, tornavam-na cinza, como já disse antes. O azul dos seus olhos era nublado também. Me respondeu muito educadamente. Pra não contrariar a Assistente Social que estava ao meu lado, fiz as perguntas sobre a transição do socialismo para o capitalismo. Ela me respondia que as coisas pouco tinham mudado e que o país continuava pobre. Pedi que me falasse sobre a Rússia, as regiões que ela conhecia. Então, ela me contou que tinha nascido numa cidade da Sibéria, mas que desde a morte do pai quando ela tinha 12 anos, foi morar com a mãe na cidade de Odessa, Ucrânia. Continuamos a falar sobre a Rússia, até que meus 40 minutos concedidos, tinham terminado. Pedi à assistente social que deixasse-a lecionar russo para mim. Ela disse que eu poderia visitar, mas as aulas não poderiam ser formais: com quadro, horário definido e etc. Além do mais, ela já estava há 2 anos e 8 meses presa e seria expulsa do país dentro de mais 3 meses.

Na segunda entrevista, a assistente social deixou-nos mais livre e podemos conversar sobre temas mais variados. Tomei a liberdade de perguntar o motivo de sua prisão. Então, Yelena começou a me contar sua história desde a infância. Ela tinha engravidado aos 15 anos e, então, com 24 anos, ela tinha três filhas. Quando ele me disse sua idade me assustei. Aquele rosto de 24 anos carregava sofrimentos e amarguras que estavam estampados no luto que carregava consigo. Parecia ser mais velha. Perguntei como tinha sido presa. Ela contou-me que receberia uma boa grana para fazer um traslado entre o Rio de Janeiro e Lisboa, carregando uma boa quantidade de coca, que chegava da Bolivia e que através de Portugal se espalhava pela Europa. Ela fazia o papel de mula. Passaria pelos aeroportos do Rio e Recife, e em Lisboa estaria livre e com a recompensa. Tudo certo no aeroporto do Rio, mas no de Recife... E se passaram 2 anos e 8 meses. Com raras notícias das filhas, a caçula tinha sido deixada com menos de 1 ano. Convivendo com a falta de privacidade. Dostoiévski, inclusive, reclamava que a pior coisa de se estar preso é a falta de privacidade, em momento algum do dia você está sozinho. Um tormento contínuo. Perguntei a Yelena se ela tinha vontade de voltar ao Brasil, pois o país é bonito em riquezas naturais e, infelizmente, ela só conhecia um triste pedaço de chão. Ela disse que não, muito abatida. Pela janela, pelo pátio, podia ver as árvores frondosas, o clima quente, a brisa suave, o grito das crianças, a vida que segue. Mas, que fôra reservado para ela, apenas o confinamento e que as lembranças que guardaria do Brasil, seriam dos tempos de privação. Da saudade das três filhas que cresciam distante da Mama, de andar em liberdade pela rua, das montanhas distantes e do Mar Negro. Perguntei o que iria fazer quando voltasse pra Ucrânia e ela disse que iria costurar junto com a mãe, pois com as freiras do convento que fica vizinho à colônia penal, ela tinha aprendido a costurar diversos tipos de modelos, que se não fossem da moda comercial, poderiam servir para forrar mesas e camas.

Depois de quatro entrevistas, onde ela me ensinou algumas palavras e um pouco do alfabeto, fui barrado de entrar nas outras cinco vezes que tentei fazer contato. Desisti. Meses depois, arranjei uma professora particular, a competentíssima Larisa Shevtchenko, com quem estudei por quatro anos e desejo regressar, tão breve seja possível pagar as aulas. Yelena Sagarova voltou para a Rússia, ficou a lembrança de sua palidez e do seu testemunho de vida. Quando contava sua história, muitas pessoas diziam que ela poderia estar mentindo para aliviar a pena, ou coisa parecida. Mas, sei que não. Ela carregava uma dor de mãe consigo, um arrependimento sem igual, uma força que nos faz lembrar certos personagens da literatura russa, cujas intempéries da vida só fortalecem sua personalidade.