“Realmente, em nenhum momento a compaixão se apossa tanto de nós como quando vemos a beleza tocada pelo hálito putrefato da devassidão.”
Nikolai Gógol
O que posso falar sobre música erudita para vocês, amigos leitores do blog? Muito pouca coisa, certamente. Nunca estudei teoria musical, tampouco possuo talento para envergar um violino, um clarinete, ou o mais popular dos instrumentos, o violão. A natureza não me beneficiou com seus dotes artísticos. Tenho a mão dura dos brutamontes e a impaciência dos ansiosos. Isso também vale para a escrita. Quantas vezes não desejei desenvolver um pensamento com maior destreza e desenvoltura e me vejo encarcerado pelos paredões da norma culta. A grande arte, seja qual for, é para corações e mentes sensíveis, no sentido mais amplo que esta palavra carrega.
O que tenho a dizer pode machucar os corações esquerdistas, os que se acham solidários e beneficentes, os que sonham com utopias socialistas e delírios democráticos. Não, não vou defender a elitização da sociedade. Que a sociedade ofereça mais e mais privilégios de equiparação social e lute contra a pobreza degenerante dos que sentem fome e não possuem o básico. Hei de defender essa idéia sã e justa. Ou não, talvez eu minta. Minta para agradar o leitor que me visita, meus amigos cheios de cartilhas partidárias. Não defendo nada que escape as minhas forças, nem nada que exija de mim a coletividade. Aprendi a dançar, mesmo que canhestramente, conforme a música.
Nesse agradável mês de agosto, aqui pela planície litorânea do Recife, desembarcou o Festival Chopin-Schumann dedicado aos 200 anos de nascimento desses dois compositores do século do Romantismo. Uma oportunidade para reunir grandiosos músicos do nosso país em devoção à arte maior da música. E tudo foi tão bem arquitetado! Escolheram dois excelentes teatros para as apresentações: o antigo e majestoso Santa Isabel e o aconchegante e acústico Teatro da UFPE. Os ingressos eram gratuitos, graças à contribuição de grandes empresas fomentadoras de maravilhosos eventos como este, além do apoio do Governo.
Apoiar a cultura, seja regional ou não, tem sido uma das tarefas mais festejadas pelos cidadãos no período eleitoral. O sempre necessário pão e circo. Acredito que até o ego de uma cidade pode ficar mais enaltecido quando os moradores observam, cotidianamente, o circular das mais variadas formas de arte. E o recifense, depois da geração manguebeat até a “nação multicultural” de hoje, é o maior exemplo. Depois dos cariocas, não conheço outro povo que se orgulhe mais de sua cultura popular. Mas, isso é outro assunto. Voltemos ao Festival Chopin-Schumann. No dia 12 de Agosto dirigi-me até o Teatro da UFPE na intenção de acompanhar o solo da pianista Andréia da Costa Carvalho. Cheguei uma hora antes e pude retirar o ingresso e acompanhar a chegada do público. Pois bem, de repente, quinze ônibus cheios de adolescentes, alunos das escolas públicas do Recife, começaram a chegar. Ao estacionar, já se ouvia a algazarra que faziam dentro do coletivo fretado pela Prefeitura. Vinham cantando músicas de brega e funk. Pensei comigo: “Eles devem ter selecionado os alunos mais interessados.”
Antes mesmo da pianista adentrar a algazarra era completa. O apresentador, José Mário Austregésilo, pedia silêncio para a juventude que respondia com gracejos, aproveitando-se do ocultismo da penumbra. Nem mesmo a pianista iniciara seu trabalho, ouvia-se “fiu-fiu”, “Tereza, rapariga!” e outras baixezas que só são permitidas em estádio de futebol. Levantei-me com um ódio profundo e voltei pra casa. Era pra ser uma noite de divertimento e devoção à música e terminou numa profunda dor de cabeça e reflexão sobre a promoção desse tipo de evento. Não se trata de preconceito contra alunos de escolas públicas. Se fossem alunos dos mais “respeitados” colégios do Recife, fariam o mesmo, ou parecido. O que me irrita é essa necessidade de casa cheia, de inserir a população na arte da música erudita como se fosse um remédio que se toma goela abaixo e fosse limpar a mazela social em que estão inseridos. Ora, não duvido que para alguns poucos alunos, aquele momento tenha sido sublime, mas para a grande maioria só deve ter feito aumentar o abismo interno em que se sentem em relação à classe culta. Mesmo gracejando, eles tinham consciência do quanto estavam incomodando, do desprezo da maioria da platéia por suas atitudes. Será que os organizadores desses eventos não percebem a agressão que estão cometendo para com o público, a artista que estudou a vida toda para atingir aquele grau de perfectibilidade, e o espírito dos compositores homenageados?! Ou estão cada vez mais interessados nas gordas verbas do Estado que exige apenas a participação popular? A grande arte não foi feita para a maioria e, não estou separando por classes sociais, mas por grau de sensibilidade. Faço côro ao filósofo Nietzsche quando põe na boca de Zaratustra que “a vida é um manancial de alegrias, mas onde quer que o populacho vá beber, todas as fontes se encontram envenenadas.”
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