segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Cosmos

Viver sem questionar a existência e a localização de nosso espírito no universo que nos circunda, deve ser uma maneira um tanto vazia de atravessar a vida, creio eu. Estamos cercados pelo desconhecido, e sua presença oculta nos leva a formular as mais diversas formas de superstição, mitos e lendas religiosas em torno daquilo que não podemos explicar, das coisas que extrapolam nosso alcance, da metafísica. Uma ida ao jardim de casa, lugar habitual, pode revelar a grandeza de um universo nunca antes explorado por nossos olhares descuidados. As raízes das plantas sugando alimento da terra, circulando por seus galhos, as formigas carregando folhas, as gotas da chuva a revirar o solo, misturando os elementos. Eu passei toda a vida a andar pelo jardim, mas apenas recentemente me apercebi do volume de vida existente naquele pequeno espaço do universo. E, ainda assim, não consigo formar mais que um minúsculo panorama dos acontecimentos que se desenvolvem naquele pequeno espaço o tempo todo.

No filme Stalker, de Andrei Tarkovsky, o protagonista, ao chegar na Zona, abraça a terra, agarrando-a entre seus dedos, esfrega o rosto contra o chão. Parece buscar uma relação com a natureza, justamente num local proibido aos homens, já que a Zona tem suas fronteiras vigiadas. A vida moderna nos proporcionou um distanciamento da natureza, do contato direto com a matéria viva que nos circunda. Trancados em nossos prédios e repartições, esquecemos que os nichos ecológicos, florestas e oceanos, estão em atividade constante e que dependem de nossas atitudes para que continuem existindo. Na grande cidade, motivado pela busca incessante do lucro, da racionalidade e oprimido pela burocracia, achamos que a vida só se dá no curto intervalo de tempo em que somos adultos gananciosos. Estados brasileiros como Tocantins e Mato Grosso, por exemplo, estão sendo avassaladoramente devastados por fazendeiros de soja e criadores de gado, aleijando assim, o mais importante centro de equilíbrio da parte não submersa do planeta. Tudo em nome do lucro de uma geração, desses agricultores do presente, que pouco se importam com o futuro dos que estão por vir, nossos filhos.

Recentemente, me deparei com uma série que foi ao ar na televisão nos anos 1980, chamada Cosmos, comandada e idealizada por Carl Sagan. Seus treze capítulos desnudam o universo em que vivemos desde o surgimento da primeira molécula até a mais remota e inimaginável esquina do espaço sideral. Nossa época é um período de crise, de tensão. Sei que é batido repetir esse tema: crise, pós-modernidade, morte do homem... Mas, desde a Segunda Guerra Mundial, ficou claro que chegamos num limiar de tecnologia destrutiva que, se mal utilizado, pode decretar o fim da raça humana. Carl Sagan nos mostra em sua série, o quão milagrosa é a vida no nosso planeta, se comparada com tudo o que nos circunda, principalmente com os planetas mais próximos: o abrasador Vênus, e o poeirento e frio, Marte. O desenvolvimento das eras geológicas, dos desdobramentos da biologia e da química natural, proporcionaram o aprimoramento das constituições genéticas, as adaptações climáticas, até que chegássemos em nós, homo sapiens, que escrevemos e pensamos nossa existência, que projetamos o futuro, que contamos histórias de tempos quase esquecidos.

Mais do que qualquer religião ou pregador fanático, essa série desnudou aos meus olhos o milagre da vida, desde o mais microscópico elemento que circula pelos meus vasos capilares, até o mais distante dos milhões de sóis que existem nas galáxias mais distantes das infindáveis raias celestiais. O nosso planeta é pequenino. Mas, ao observarmos as imagens e condições dos outros, como ele se torna maternal, aconchegante, vital. É o único pontinho miúdo neste oceano infinito do céu em que a vida pode desabrochar. Poxa, nesses últimos três dias, surgiu em mim um carinho diferente pela Terra. Por isso, quero dividir essa experiência com vocês. Baixem os episódios e assistam. O cosmos é uma palavra tão abrangente que não me arrisco a explicá-lo em rápidas palavras. Carl Sagan precisou de treze episódios para transmitir a importância deste conjunto de forças visíveis e invisíveis.

Em Guerra e Paz (Voyná i Mir), Tolstói escreve um longo enlace da relação do povo com o solo materno. Quando os russos expulsam Napoleão, não estavam reconquistando apenas o território onde dormiam e plantavam e viviam, mas algo ainda mais grandioso. A palavra Mir, que também é o nome do projeto espacial russo, significa, na realidade, cosmos, em russo. Sua tradução como “paz” é correta. Mas, na língua original, Mir tem um significado de amplitude maior do que a própria paz (que, certamente, é o significado mais próximo se tratando de um período de guerra), também é harmonia com o solo-mãe, com as práticas culturais, com o universo. Hoje, num período de avanço tecnológico tão acentuado, descobrimos curas para doenças antes terminais, somos capazes de viajar o mundo de um dia pro outro com nossas fabulosas máquinas, comunicamo-nos com o mundo inteiro conectados pela internet, é importante lembrar o significado da palavra Cosmos, da sua implicância em nossa sobrevivência enquanto espécie. Para mim, leigo em astrofísica, Carl Sagan explanou de maneira agradável e inteligente a aventura da vida através das eras. Espero que para vocês também. Vamos cuidar da nossa casa.

Cosmos – parte 1: http://laranjapsicodelica.blogspot.com/2010/12/cosmos-parte-1-1980.html

Cosmos – parte 2: http://laranjapsicodelica.blogspot.com/2010/12/cosmos-parte-2-1980.html

Cosmos – parte 3: http://laranjapsicodelica.blogspot.com/2010/12/cosmos-parte-3-1980.html

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Vida Após a Morte

Tem dias que a desilusão apossa-se do nosso espírito, prostrado diante de tantas inexplicáveis respostas, da incerteza do futuro e do iminente e inevitável contato com a morte, perguntamos a nós mesmos: Para quê viver? Qual a função do trabalho se numa seqüência rápida de algumas dezenas de meses, estarei soterrado pelo que me sustentava? O que motiva uma mente dotada de força poética a questionar esta finitude? O filósofo alemão Arthur Schopenhauer dizia que a morte era a musa da filosofia! O poeta, mortal, perdura na espécie, na futura geração que o lerá e o consagrará. O que nos motiva a viver neste tão curto intervalo que nos é oferecido é a possibilidade de alargar, imortalizar a espécie humana, onde cada um de nós oferece, como voluntariosas formigas, sua carga de experiência.

O escritor e poeta russo Igor Volguin, presidente da Fundação Internacional Dostoiévski, sugeriu em palestra realizada no dia 01 de dezembro de 2009, que o Mestre de Petersburgo nunca poderia imaginar que no início do século XXI, tantos congressos e palestras fossem proferidos para debater sua obra. Ele que passou toda a vida com dívidas e lutando para sobreviver, é, há muito tempo, um sucesso de vendas em todo o mundo e motivo de discussão e inspiração para todos que o lêem. Para o crítico Harold Bloom, o grande escritor/poeta só faz crescer com o tempo:

“A força desses fantasmas – que é sua beleza – aumenta na medida em que a distância do poeta concorrente cresce no tempo. Homero, um poeta maior no Iluminismo do que foi entre os helenos, é ainda maior agora em nosso Pós-Iluminismo.”

A influência poética, diz Bloom, é uma luta pela Eternidade, ou seja, o autor quer prolongar sua existência nos textos escritos. Quando Schopenhauer profere que a morte é a musa da filosofia, está sugerindo que o poeta/filósofo tem consciência de sua curta jornada, mas sua projeção na continuidade da espécie humana o motiva a pensar num tempo muito mais abrangente que sua vida natural. Assim, o grande escritor vive noutra geração que o deslê, como diz Bloom, e o revive noutra linguagem adaptada à outra realidade de outro presente, adiante.

Esta influência não se demonstra necessariamente na manutenção da linguagem, mas principalmente, no universo das idéias, da experiência. Quando fazemos uma leitura de Montaigne, nos surpreendemos, de início, com a incalculável quantidade de citações que o escritor da Gasconha apresenta de textos antigos, da retórica clássica. O universo clássico povoa sua visão do século XVI, servindo de suporte para sua interpretação do presente. Assim, a tradição/influência de Sêneca, Virgílio, Teócrito, Cícero, Lucrécio e outros, mantêm-se viva através de centenas de anos, sobrepujando inclusive, a consistência do granito, do mármore e do concreto. O pensamento mostra-se mais forte que qualquer monolítico monumental, e o poeta torna-se perpétuo em seus versos, mesmo contra sua vontade: salve o desobediente Max Brod!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O Prédio

Como descrever com precisão a imagem de um lugar onde não se sabe ao certo se estive ou não dentro dele? Não é minha função buscar respostas, ao que parece, mas, ainda assim, é minha tarefa tentar explicar alguma coisa. Há uma estranha névoa aqui também donde escrevo. O certo era que o lugar era amplo, como uma infinita enfermaria de um hospital sucateado. Talvez o local se parecesse com uma imensa universidade. Talvez fosse mesmo uma grande cidade que vivia ali, dentro daquele vasto prédio. Um vulto passa perto de mim e inquire: “Não seria um desses moderníssimos prédios chineses ou tailandeses de cento e vinte andares? Uma cidade inteira caberia neles.” Mas não. Era um lugar bem decadente, quase uma repartição instalada num labirinto pré-digital: cheios de prontuários, receitas médicas, senhas e contas; que caiam em câmera lenta de um teto abobadado, cuja estranha claridade parecia impedir qualquer definição. Talvez o deus do prédio vivesse lá...

Olhando com mais atenção, observamos uma grande escada de ferro que range ao passar das subidas e descidas de seus transeuntes. Estou inclinado a afirmar que toda uma cidade vive dentro deste prédio que, em algumas paredes, possui um azulejo azul celeste parecido com os dos hospitais. Mas, pelo andar frenético dos passantes, assemelhasse mais a uma portentosa e antiga universidade. Ou talvez, seja mesmo uma cidade, por que não definimos assim de tal modo... Está difícil delimitar as coisas. Se tivesse mais janelas, poderíamos ver o exterior, mas não vejo nenhuma daqui, tampouco me recordo de ter passado perto de alguma janela. Há uma imensa escada no centro deste prédio, larga, onde não cessa a multidão de se movimentar. E range sua estrutura de ferro corroído. Nas periferias da grande escada central, curtos corredores conduzem a novas escadas, mais estreitas, onde a multidão se avoluma mais e quase se toca e se cumprimenta. Quanto mais próximos da escada central, mais denso se torna o nevoeiro. Que danado de lugar é este? À primeira impressão pensei se tratar de um imenso prédio dividido em vinte andares, talvez, Mas, subindo uma das escadas laterais da direita, cheguei à conclusão que todas as escadas laterais encontravam-se conectadas à grande escada central, de maneira que essa grande escada central era o próprio sustentáculo e caminho vital deste enorme prédio de um único andar, mas de altura incalculável aos nebulosos olhos. Eu próprio já não tinha certeza. E como pude afirmar que estava na escada da direita se o tal prédio não tinha referências exteriores?

Assim como quem acorda de um sonho, toda a multidão precipitou-se a andar ainda mais obstinada e uma grande ação coletiva estava prestes a irromper daquele ambiente. Uma voz de locutor de televisão principiou-se a narrar o itinerário de dois grupos de rebeldes rivais que começavam a se caçar dentro da estrutura labiríntica do imenso prédio. Eram centenas de jovens vestidos com as camisas pretas que indicavam um grupo e do outro lado, os de camisa vermelha, ambos se caçando dentro do prédio. Eles passavam em grandes grupos portando porretes, tacos de beisebol, serrotes, paus com pregos na ponta, marretas e muitos martelos de variados tamanhos. Quando se encontravam em algumas das escadas laterais, toda a multidão neutra corria e se atropelava. Alguns mesmos caíam no precipício. Assim como o céu era de uma claridade inexplicável, o fundo do prédio era escuro como um espelho sem luz. Até então, toda a multidão se locomovia em silêncio, mas quando a voz narrativa, locutora, passou a narrar o andamento da disputa entre os grupos rivais, um alvoroço e algazarra passaram a tomar conta de todas as escadarias.

Do fundo da escada central, mais e mais rebeldes com camisas alvinegras subiam as escadas e outros tantos na mesma proporção desciam do alto da escada central com as camisas coloradas. De repente, pareceu-me que toda a multidão tomava partido para um dos lados e me preocupava a neutralidade de minha posição, que parecia encontrar coro apenas na voz locutora que surgia sabe-se lá de onde! A voz narrava em tom de desespero, gritava e quase chorava de tanta comoção: “Minha Nossa Senhora, que absurdo! Alguém tome uma providência, o rapaz está abrindo a cabeça do outro com o martelo! Que cena lamentável!” Eu corria atrás de uma pequena multidão que se espremia numa apertada escada lateral onde as pessoas subiam e tentavam alcançar outra escada que daria em algum lugar-nenhum. Enquanto eu empurrava e era empurrado, o locutor conclamava alguém que fizesse parar a guerra entre os vândalos ensandecidos que arremessavam seus martelos uns contra os outros. A escada central e as laterais começavam a se encher de corpos mutilados e o sangue descia pelos cantos enferrujados delas. “Estão batendo nesse rapaz, na cabeça dele com um martelo. Façam alguma coisa, pelo amor de Deus!” Pranteava a voz narrativa. Uma moça chorava em desespero numa escada que passava perto. Eu quase alcancei sua mão clemente da escada onde estava. Eu temia perguntar algo, apenas fugia da multidão de rebeldes que se enfrentava bravamente e se buscavam obstinadamente nas escadas laterais. Todas as mortes se davam por espancamento incessante e persistente. E se alguém achasse que eu pertencia a algum grupo? Empurrava as pessoas que subiam as escadas enquanto a narração dos espancamentos tornava-se ainda mais comovente. Estava prestes a acreditar que quanto mais reprovativa era a locução, mais obstinada era a batalha selvagem. Não havia quem impedisse tamanha barbaridade e brutalidade? Deixei-me acocorar numa escada à procura de sair de interminável tormento. Onde estariam as portas e janelas? Eu apenas quero sair daqui!

O cachorro está latindo. Busco o relógio ao lado da cama. Ainda vai demorar umas duas horas para amanhecer.