segunda-feira, 28 de junho de 2010

Do the Evolution


Assim como a maioria dos brasileiros e boa parte da população mundial, tenho acompanhado com fervor os jogos da Copa do Mundo 2010. Uma competição que começou fria, com jogos parados, times pouco ofensivos e uma culpada pela baixa qualidade técnica, a pobre coitada da bola Jabulani. Terminou a primeira fase e amanhã se realizará a última partida das oitavas de final entre Portugal e Espanha. Na hora da onça beber água, as grandes seleções mostraram suas garras: Brasil, Alemanha, Holanda e Argentina seguem favoritas. A França que entrou pela porta dos fundos com a ajuda da arbitragem e a Itália que ganhou a última Copa com um futebol pouco acima do regular, estão ausentes da disputa pelo título. Mas, o que mais me chamou a atenção nessa Copa foi a discussão sobre os erros de arbitragem.

No mesmo dia, um domingão de Copa com dois jogos entusiasmantes, o mundo constatou, perplexo, como é frágil a justiça também dentro das quatro linhas. A televisão com suas milhares de câmeras não deixa escapar absolutamente nada, desde os 33 centímetros que a bola entrou no gol não marcado da Inglaterra, como a mastigada de catota do técnico da Alemanha. Enquanto assistia o jogo com amigos em Itamaracá, surgiu a discussão se a televisão deveria interferir na decisão do árbitro ou não. E aí, gols históricos como “a mão de Deus” de Maradona em 1986, o “gol” da Inglaterra na final da Copa de 1966, não seriam mais validados. Em compensação, a justiça se aproximaria cada vez mais do ideal de perfeição futebolística, onde o melhor deveria vencer.

Será que foi a justiça que fez o futebol se tornar o esporte mais popular do mundo num intervalo de 150 anos? Na minha opinião, o erro faz parte do espetáculo. Se um médico soubesse que uma cirurgia terminaria no óbito do paciente, pensaria duas vezes em executá-la, assim também, o ladrão que amaldiçoa sua infeliz idéia de ter saído para assaltar sabendo do risco de cair na vigilância total da prisão. O erro intencional é o mais perigoso, a meu ver. A mão de Henry que colocou a França na Copa tem cheiro de dinheiro, de mutreta, de acordo comercial. Ora, a França é um mercado bem mais interessante que a Irlanda! Juízes comprados teriam suas vidas dificultadas pela intervenção da televisão.

A grande fascinação do futebol é que ele é o único esporte em que um time A ataca 30 vezes e um time B ataca apenas uma vez e pode sair vencedor. Ele é imprevisível, assim como quem será o vencedor do confronto entre Argentina e Alemanha. O futebol é amado porque é fatalista, injusto, cheio de “campeões morais”, enquanto faz a fama dos doces malandros e desonestos. Romário, Garrincha, Maradona, Stoichkov, nunca foram exemplos de seres humanos galhardos, mas ali dentro, foram os grandes mestres. É jogo, é coisa do diabo, de gente enganadora, que esconde a bola embaixo dos pés. O futebol é maldito. Em sua imperfeição, nós o amaremos até o fatídico dia em que ele for falível.

Porém, o futebol caminha para o mesmo caminho que o Homem: o da adaptação tecnológica. O impedimento de 3 centímetros, o pênalti que só a câmera que se sustenta na marquise do estádio pode flagrar, o escanteio que resvalou na orelha de um zagueiro... nada escapará aos vigilantes olhares dos sedentos de justiça, dos vingadores. Quem garante que o mesmo chip colocado dentro da bola pra delimitar o gol, não pode dar uma desviada no trajeto da bola pra beneficiar o país-sede, por exemplo? A desconfiança continuará.

domingo, 13 de junho de 2010

Nostalgia

Cena 01. Andrei:

Na infância eu havia adoecido. Montanhas de medo na minha memória. Recordo-me de um frescor. E caminho, caminho... ora me vejo sentado na escadaria, ora caminhando em delírio. De repente sinto calor, desabotôo o colarinho... Eis que soam as trombetas, uma luz se move... minha mãe está lá, pairando sobre a rua e acena com as mãos. E já se vai voando! E agora eu a vejo em sonho toda de branco. Na infância eu havia adoecido...

Cena 02. Domenico:

Qual ancestral fala atrás de mim? Eu não posso viver ao mesmo tempo com a minha cabeça e o meu corpo. Por isso não consigo ser uma só pessoa. Sou capaz de sentir infinitas coisas ao mesmo tempo. O grande mal de nosso tempo é não haver mais grandes mestres. A estrada de nosso coração está repleta de sombras. Devemos ouvir as vozes que parecem inúteis e que no cérebro cheio de coisas aprendidas na escola, no asfalto e na prática assistencial, e com o zumbido dos insetos que entram na minha orelha. Precisamos encher os olhos e as orelhas daquelas coisas que existem no início de um grande sonho. Todos devem gritar que construiremos uma pirâmide, não importa se não a construirmos! O que importa é alimentar os desejos, temos que tirar a alma de todas as partes, como se fosse um lençol que cobre o infinito. Para o mundo ir em frente, devemos dar as mãos, misturar os assim chamados sãos, com os que são chamados doentes. E vocês sãos, o que significa a saúde? Todos os olhos do mundo vêem o precipício em que estamos caindo. A liberdade é inútil, se não tem coragem de olhar com os olhos da face, e de comer conosco, e de beber conosco, e de dormir conosco. Os assim chamados sãos, foram os que conduziram o mundo a catástrofe. Homem, escute! Em você, água, fogo e depois cinzas. E os ossos dentro das cinzas. Os ossos e as cinzas!

Cena 03. Domenico:

_ Onde estão quando não estão na realidade e nem na imaginação? Faço um novo pacto com o mundo: que haja sol à noite, e que neve em agosto. As coisas grandes acabam, só as coisas pequenas ficarão. A sociedade deve se unir novamente, e não continuar fragmentada. Vamos observar a natureza, pois a vida é simples, devemos voltar ao começo, ao ponto onde pegaram o caminho errado. Devemos voltar as bases principais da vida, sem sujar a água. Que raio de mundo é esse, se um louco lhe diz que devo envergonhar-me! Música agora.

_ Música! Música!

_Tinha me esquecido disto. Oh, mãe! Oh, mãe! O ar é aquela coisa rápida que gira em torno da cabeça, e se torna mais clara quando você ri.

(Domenico ateia gasolina sobre o corpo)

_ A música não está funcionando. Ajudem-me!

(Corpo em chamas. Nona sinfonia de Beethoven. Allegro Assai)

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Insídia Divina

Bordejando o rebentar das ondas,

um casal perdido na praia.

Em seus braços, a decepção mortal,

uma estátua de Deusa.

O belo sexo,

marmóreo,

oração da perfeição,

semblante da serenidade.

No seu olhar,

recôndita saudade dos fugidios amantes.

Em busca de uma teogonia,

atormentado,

clama aos céus,

clama ao sol:

detêm-te!

Mas, só a beleza é infinita.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

O Demônio

"Quando não me era ainda insossa
cada impressão da vida outrora
- rumor de bosque, olhar de moça,
canção de rouxinol na aurora -
e quando a liberdade, o amor,
a glória, as artes, o melhor
da inspiração e altas idéias
turvavam-me o sangue nas veias,
um certo espírito nefando,
trazendo angústia e me anuviando
horas confiantes de prazer,
passou, em sigilo, a me ver.
O nosso encontro era sombrio
e ele sorria com o olhar
cheio de escárnio ao me instilar
dentro da alma um veneno frio.
Pois caluniava sem receio
e desafiava a Providência,
julgava o Belo - um devaneio,
a Inspiração - tolice imensa,
o amor e a liberdade - vis.
E, olhando altivo, com profundo
desprezo, a vida, ele não quis
abençoar nada em todo o mundo."

Aleksandr Sergueievitch Púshkin, poeta russo.

tradução de Nelson Ascher e Boris Schnaiderman.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Musgo

No ano passado, para a vergonha do avô com quem morava, além do irmão, Alceu, Maria Aparecida fora mãe solteira. Dera a luz a uma menina, Nina, uma criança esperta de um ano e oito meses. O avô, um homem de mais de oitenta anos que se locomovia tão vagarosamente quanto uma tartaruga velha devido à artrose, cansava de aconselhar a neta para que não engravidasse muito jovem, de um pai qualquer, assim como sua mãe, Antônia, que falecera havia quatro anos por conta de uma infecção hospitalar no Hospital Getúlio Vargas. O velho usava seu próprio exemplo, tinha sido pai já com mais de trinta anos: “Tenham paciência, arranjem um emprego antes de ter menino.” Mas, Cida não ouvia seus conselhos e foi mãe com um pai qualquer. O velho passara algumas semanas sem falar com Cida durante a gravidez, mas à medida que a barriga crescia, seu coração amolecia. Coisas de gente velha, que não tem tempo pra guardar rancor. O velho, os dois netos e uma criança.

Eles moravam no Beco da Periquita, um logradouro no bairro da Várzea, constituído de pequenas casas dispostas muito próximas umas das outras. Uma rua estreita onde só passa moto e bicicleta. Na verdade, a “rua” é formada por placas velhas de concreto, onde segue, por baixo, um canal com água de esgoto, adicionados ao curso de um antigo riacho. Uma água meio verde, lodosa, pegajosa, que de vez em quando desfere um cheiro fétido para as residências. Como as placas são muito antigas, entre as rachaduras e falhas no concreto, os moradores observam aquele movimento quase silencioso das águas lodosas carregando lentamente o lixo das casas, algum pequeno animal morto ou a espuma branca dos shampoos e dos detergentes que saem das casas.

Apesar das dificuldades de se viver nesse ambiente, estava sendo um dia animado no Beco da Periquita. Nos últimos dias, tinha chovido bastante, até o riacho tinha ficado mais barulhento. Porém hoje, o sol deu o ar da graça. As crianças corriam de um lado de um pro outro, umas, à pé, outras, de bicicleta. Na frente das casas, senhoras corpulentas conversam sobre os mais variados assuntos, desde o aumento do preço do pão às fofocas e rixas entre vizinhos que vivem tão perto, dividindo suas realidades. No dia que Cida ficou grávida, a discussão com seu avô e seu irmão foi tão acalorada que todo o Beco descobriu que a moça estava barriguda. No dia seguinte pela manhã, enquanto ia comprar o pão, uma vizinha mais assanhada perguntou com uma risadinha cínica: “E aí, Cida, qual vai ser o nome do bebê?”

Cida trabalha de manicure e pedicure. Atende na residência dos clientes. Fica sonhando em abrir um salão na Avenida Polidoro. Já até conversou com sua amiga, Shallyene, que é cabeleireira, pra montarem um negócio e garantirem seu sustento. Mas, é preciso dinheiro pra começar e ela não consegue nem juntar com tanta despesa que tem com a criança. Seu irmão, Alceu, conseguiu convencer a tartaruga velha a tirar 79 reais da sua aposentadoria de 515 reais, para pagar uma moto num consórcio. Nesse último mês, a moto de Alceu saíra. Dizia para o avô que quando tivesse uma moto arranjaria um emprego mais facilmente. Agora, ele passa o dia na entrada do Beco, mostrando sua moto para as mocinhas que pedem para dar uma voltinha. De emprego, até agora, só apareceu uma proposta: seu melhor amigo, Fábio, convidou-o para fazer um assalto numa farmácia lá no Engenho do Meio. Uma parada rápida, não tem nem segurança, nem câmera. Alceu pensou nisso todos os dias, mas não teve coragem. Fábio acabou arranjando outro comparsa.

Às nove horas, Cida saiu para fazer as unhas de uma cliente em Camaragibe e deixara a criança sob os cuidados de Alceu e do avô. O rapaz pegou sua moto e foi brincar com a menina na garupa. Ele sabia que a sobrinha fazia sucesso com as garotas que passavam. Vrum! Vrum! E Nina desatava a rir! “Axeu, Axeu, vrum, vrum!” O velho saiu de casa com muito esforço pra ajudar Alceu a observar a menina. Estava olhando-a de longe, na porta de casa. “Bijô, Bijô!” A menina desceu da moto e partiu em direção ao “bijô”. Nina correu a todo vapor, trôpega, cambaiando no Beco. A casa ficava do lado direito do Beco e a menina, como um carro dasalinhado, quanto mais queria ir para a direita, mais se movia para a esquerda. Em seu olhar, via a imagem do bisavô, tremendo em sua saltitância. O que era o chão para Nina?

No concreto rachado, o espaço moldurado para o seu corpo. Alceu corre em direção ao buraco e abandona a moto no chão. A tartaruga velha se comprime dentro do casco, sem forças. O rapaz enfia a mão na água lodosa, tenta tatear o corpo macio, a água verde e cheia de musgo e fedor não o incomoda. Está atarantado. A gritaria toma conta do Beco. Traz uma marreta, Luiz, rápido! O rapaz tenta colocar as pernas dentro do buraco, procura aquele corpinho macio de criança e só encontra o líquido pegajoso. Levanta-se desesperado e tenta achar novas frestas na calçada. Em vão tenta arrancar com as mãos a placa de concreto. O homem da marreta chega.

Enquanto isso, Cida estava voltando pra casa. Mentira que iria atender uma cliente em Camaragibe, tinha ido ao Hospital Barão de Lucena. No ônibus pensava como iria dizer ao avô que estava grávida de novo de outro filho sem pai.