terça-feira, 30 de março de 2010

O Jogo

Após seis anos na cadeia, Adolfo botou a cabeça na rua. Era uma tarde quente ali pelas bandas do bairro do Curado. Os portões do presídio Aníbal Bruno batiam nas suas costas. Era a última vez que ele esperava ouvir aquele som chumboso. Nesse ínterim em que esteve preso, perdeu Nara que não viera lhe visitar mais do que uma vez, no primeiro mês. A família também se afastou. Sua mãe, uma mulher doente, rareou as visitas. Ele preferiu sair sem avisar a ninguém. Foi caminhando até a parada de ônibus com a mochila nas costas. Não sabia nem que ônibus iria pegar. Ficou parado embaixo de uma mangueira e começou a lembrar do fatídico dia em que sua vida se transformou para sempre.

Adolfo tinha vinte e sete anos. Estava fazendo pós-graduação em física na universidade. Morava no Recife desde os quinze anos, mas era natural de Petrolândia no sertão pernambucano. Havia dois meses conhecera uma moça muito bonita, vinda do interior também, só que de Belo Jardim. Tinha um sorriso tímido. Conhecera-a no quiosque onde tirava xerox. Ela gostava de forró, de comer sushi e era muito afetuosa. Seus cabelos castanhos, seu rosto afilado, suas curvas bem moduladas, uma magreza saudável. Ela era alvirrubra, assim como Adolfo. Tinham ido assistir alguns jogos juntos, contra times do interior. Nara passou a semana insistindo para assistir a partida final do campeonato. Adolfo relutou, era perigoso, mas aquiesceu. Náutico e Sport se enfrentariam no estádio da Ilha do Retiro.

Agora, Adolfo segura a bandeira antes de entrar no carro e pede pra Nara: “Linda, bota a bandeira pra frente senão o pano vai cair quando o carro acelerar.” E partiram pro estádio, seguindo pela Avenida Caxangá. Adolfo tocando a buzina clássica da equipe alvirrubra: Quer dançar, quer dançar, o timbu vai te ensinar! Ao chegarem próximo do estádio, cerca de um quilômetro, na rua Benfica, o sinal ficou amarelo. O carro da frente freou. O Fiat Uno de Adolfo também. Uma pequena fila de carros do lado direito. Um ônibus azul, vindo de Camaragibe ocupou todo o espaço do lado esquerdo do seu carro. Outro carro situou-se atrás de Adolfo. Estava preso no engarrafamento pelos cinqüenta segundos em que o sinal estava fechado.

No ônibus azul, cerca de trinta torcedores da torcida organizada Jovem do Sport praticavam surf no teto do ônibus e windsurf nas janelas. Gritavam aqueles funks galerosos. Discretamente e como quem fala tentando mexer pouco com os lábios, Adolfo pede a Nara que abaixe a bandeira rapidamente. Nesses rápidos segundos em que se desenrolou essa ação, cerca de dez torcedores vestidos de amarelo gritavam, pulavam e se aproximavam do carro de Adolfo. Da janela do ônibus, outro torcedor aponta um morteiro de doze tiros em direção ao carro. Os fogos explodem contra o vidro frontal e a lataria. Nara começa a gritar de pânico. A bandeira cai no asfalto. Um rapaz de cabelo pintado com água oxigenada começa a socar a frente do carro, se aproxima da janela a plenos pulmões, insuflado pelos gritos dos companheiros dentro do ônibus. Uh, a Jovem aê! A cabeça de Adolfo estava confusa, a mulher gritando ao seu lado, os homens sacolejando seu carro, o medo tremulando em sua carne, as idéias embaralhadas, o mijo descendo pelas pernas...

O que Nara não sabia e ele nunca ia querer revelar isso naquele começo de namoro promissor, era que possuía uma arma escondida no carro. Uma arma adquirida com um amigo da faculdade, Salviano, também de Petrolândia. Uma pistola prateada. Ele tinha dado uns tiros no meio do mato da última vez que fora passar o São João na terra de seus pais, pequenos comerciantes. Mas, nunca tinha feito um curso de tiro ou algo parecido. O revólver estava embaixo do banco de trás. Adolfo não tinha escapatória, estava preso no trânsito. Mais jovens saltavam do ônibus. Seria escorraçado ali, preso. Sua namorada também não seria tratada com galhardia pelos rapazes que se jogavam do ônibus. Miséria! Em pensar que tudo aquilo durou o tempo de um sinal vermelho! Rapidamente, Adolfo puxa a arma, abre a porta do carro. Os rapazes deram um passo pra trás. O que estava com o morteiro na janela se emburacou pra dentro do ônibus. Os outros torcedores começaram a pedir que o motorista arrancasse com o ônibus. Corre, corre! O cara tá armado, porra! Adolfo invertera a situação. O jovem que socava a frente do seu carro deu três passos para trás e foi alvejado com um tiro no ombro. Pá! Ele balançou e se virou correndo para a frente do ônibus. Mirou o revólver pro rapaz do morteiro, mas ele não estava mais ao alcance. Assim mesmo, deferiu mais dois tiros contra os torcedores de amarelo. Um foi atingido na cabeça. Outro tiro atravessou o ônibus e se chocou contra a parede de um supermercado. Nara gritava dentro do carro. Socorro! Minha Nossa Senhora! Adolfo volta pro volante. O semáforo ficara verde. O motorista do ônibus andou poucos metros, ficou buzinando loucamente. Adolfo entra no carro, um barulho de buzinas toma conta da Rua Benfica. Todos tentam chamar a polícia de alguma forma. Outros torcedores do Sport se solidarizam com os rapazes do ônibus. O carro de trás dá uma ré e se joga na lateral onde estava Nara. O suplício da garota é interminável. Adolfo consegue arrancar e tomar a Visconde de Suassuna tentando voltar para a Caxangá. Mas, nem andou um quilômetro e duas viaturas da polícia já o seguiam. Tenta engatar uma fuga, mas Nara gritava, segurava seu braço e pedia, aos prantos, que parasse o carro. Ele para. Vários policiais o cercam. Mão na cabeça, vagabundo!

domingo, 28 de março de 2010

A Grande Inquisidora

Nos últimos dias o Brasil tem acompanhado o julgamento da família Nardoni. Nesse momento, o leitor vai se perguntar: Puta merda, até esse cara falando desse assunto!? Mas, calma, quero falar por outro ponto de vista. Estive a pensar no poder que a mídia exerce sobre a vida dos cidadãos comuns e, embora todos nós saibamos do resultado da questão e que grandes filósofos já versaram sobre o assunto, sinto-me com vontade de expor minha estupefação com esses veículos divulgadores de notícias.

Certo dia, em sala de aula, uma aluna começou a explanar sobre as atividades do Tribunal do Santo Ofício na Baixa Idade Média, e que em regiões da Espanha foram responsáveis por um controle do cotidiano de tal forma que levaram ao suplicio muitos milhares de hereges. Heresia é uma palavra do grego clássico que significa “escolha”. Ou seja, os hereges são aqueles que escolheram viver de forma diferente do pensamento dominante, no caso medieval, da Igreja. Pois bem, ao final, ela perguntou: Quem representaria o Tribunal do Santo Ofício no mundo atual? Ou seja, quem seria a controladora do pensamento dominante e sentenciaria como herege os que não se adaptam ao que é comum a maioria?

A imprensa, com seu fortíssimo poder de penetração na sociedade, modula o comportamento da maioria (pessoas com quase nenhum senso crítico porque lêem pouco, principalmente) conduzindo-os em suas escolhas, desde políticas a culturais. Toda manhã está lá, impávido em sua panóplia, um troféu de cidadania, guiando os bons cidadãos como um legítimo pastor, dono de imenso rebanho, o senhor Alexandre Gracia. E ele, do alto de seu prestígio, julga os certos e os errados, tece condenações contra os inimigos da imprensa (que é o mais excelso exemplo de liberdade), os políticos corruptos, os que fazem propaganda antes das eleições. Não estaria ele certo? Claro que sim, é o Alexandre Garcia.

Na vida comum, enxergo o papel transformador da imprensa em dois exemplos que acho que posso citar com conhecimento de causa. Gosto de freqüentar dois espaços que são, como a imprensa diz, democráticos: o futebol e o carnaval. Lá estão os ricos e os pobres, dividindo o mesmo espaço. Gente da direita, da esquerda, anarquistas, velhos e moços. E, posso estar enganado, desde que comecei a freqüentar tais espaços na minha pré-adolescência observo a mudança do comportamento geral das pessoas devido à presença da imprensa. Há doze anos, o carnaval de Olinda era a residência do satanás na Terra: brigas o tempo todo; homens beijando as moças forçosamente; mulher nua em cima de uma porta carregada pelo povão. Todo tipo de baixaria. Quando a mídia passou a transmitir o espetáculo, o comportamento das pessoas mudou. Repito, posso estar enganado, mas que uma forte mudança de atitude atuou sobre os carnavalescos, disso não tenho dúvidas. A televisão com câmeras espalhadas inibe, de certa forma, os exageros, como uma mulher subir em cima da porta. E onde ela está, a segurança é multiplicada, é propaganda. No futebol, as brigas ocorrem do lado de fora do estádio, pois dentro todos tem medo de serem flagrados em atos animalescos. Eu mesmo corro dos depoimentos da mídia quando um jogo acaba. Em 1999, fui vítima do poder da imprensa, embora não estivesse fazendo nada demais. O Náutico tinha um atacante chamado Célio Jacaré, era o brasileiro da terceira divisão. O atacante fez um gol e subiu no alambrado na minha direção. Automaticamente, subi também e apertei a mão do jogador. No outro dia, eu estava na capa do Jornal do Commercio, em cima do alambrado, apertando a mão de Célio Jacaré.

A imprensa julgou a família Nardoni antes mesmo da justiça. No primeiro dia do julgamento oficial, poucos indivíduos foram pedir a condenação do casal que matou a criança. Ah, mas quatro dias depois, tinha gente com a bandeira do Brasil, faixa na cabeça com o nome “justiça”. Um espetáculo visual de indignação. Todos queriam estar na matéria principal do Jornal Nacional. Ou, quem sabe, dar sua opinião naqueles programas feitos para velhas semi-mortas da RedeTV: Cozinhando para os Netinhos. Para mim, a verdadeira condenação do casal, se eles são culpados, seria a “liberdade”! Dentro de uma cela, longe dos julgamentos sociais, eles poderão ter paz e tranqüilidade. Nas ruas, seriam lembrados de suas atrocidades o tempo todo. Pois bem, se temos sede de sangue, gritemos pela liberdade. Mas, a imprensa convenceu-nos que o pior castigo foi isolá-los numa cadeia. E todos estamos satisfeitos. E assim, a opinião pública torna-se a vontade dos julgadores midiáticos . Para as crianças: TV Globinho. Para os adolescentes: Malhação. Para os adultos, mais opções: Alexandre Garcia ou Arnaldo Jabor. Para os velhos: Ana Maria Braga. E viver sem heresia é como seguir receita de bolo.

sábado, 27 de março de 2010

A Cidade Morreu De...

Sábado a noite e troquei a mesmice noturna recifense pelo livro de Michel Serres, Hominiscências, e com absoluta certeza tomei a atitude mais correta! Logo no começo ele vai falar sobre o surgimento das cidades na antiguidade e que, inicialmente, "as metrópoles começaram como necrópoles". Ou seja, as casas eram locais onde se cultivava a memória dos ancestrais mortos, inclusive as relíquias. Mais adiante, ele faz uma análise que as civilizações, como os indivíduos, morrem de maneira incerta e imprevisível. Deste modo, comecei a pensar em como seriam as mortes das cidades que me vieram à cabeça. Irremediavelmente, comecei a rir das possibilidades. Permitam-me esta galhofice:

São Paulo morreu intoxicada
Nova Iorque num acidente aéreo
São Petersburgo morreu afogada
Veneza morreu de cirrose
Rio de Janeiro morreu numa cirurgia plástica
Paris levou um choque fatal
Bagdad tomou chumbo quente sem parar
Hamburgo foi esmagada por um container
Tóquio se jogou de um prédio
Jerusalém ficou velhinha e subiu aos céus
Pequim, de claustrofobia no elevador
Amsterdan, de overdose
E Recife morreu de gonorréia.

Sei que tem muitas cidades com características e estigmas preconceituosos. Quem quiser me ajudar nessa brincadeira...

O que virá após o Pós?

A disciplina do professor Lourival Holanda no mestrado de literatura traz à discussão a tentativa de entendimento das motivações humanas no perpassar do tempo. A literatura é, nesse ponto, um exemplo vivo e que se renova das aspirações, inquietudes e da busca de sentido para a interpretação do mundo. É a terceira disciplina que assisto com o mestre citado e, entre os temas abordados em suas disciplinas estão a esperança, a utopia, a igualdade, a autonomia, a razão. Lourival, mui argutamente, nos instiga a questionar o por quê do desencantamento da nossa geração em relação aos projetos de futuro. Por quê a utopia não faz mais parte do caráter do homem pós-moderno?

O descrédito da razão é uma das poucas certezas de nosso tempo. Vivemos o que Lourival chama de nictotropismo, ou seja, a noite como centro do universo. O principal reflexo dessa desesperança encontra-se no manancial de alegorias que produzimos em que a principal temática é “a morte do homem”, “o apocalipse” e o descrédito em relação ao futuro. Em oposição a este presente, voltemos dois séculos no tempo. Estaríamos sob as luzes do Iluminismo. Ao menos, sua luz forte ainda brilhava sobre os espíritos criativos. Para esse período, o mestre deu o nome de heliotropismo, ou seja, a luz como centro fundador de paradigmas. O que perdemos/ganhamos nesse intervalo entre as luzes e as trevas? Ou será que os intervalos de luminosidade não fazem parte do movimento de rotação da história humana? Numa de suas aulas, citando Rilke, dizia: “O amor só é possível em intervalos de solidão.” Estaríamos no período do interlúdio entre o amor, com suas projeções e aspirações, e o orgiástico recreio dos que desafeiçoam?

A modernidade, essa cria do nosso desejo, conduz o homem a ultrapassar seus limites, principalmente físicos. O que é essência (palavra tão difícil de definir) só faz sentido ou encontra respostas se estiver num processo de mutação para algo está sempre por vir. É a era do pós-humano, da pós-modernidade, pós-rock... Até o prefixo neo está ultrapassado. Conversando com um amigo sobre um álbum da violinista Anja Lechner e do pianista Vassilis Tsabropoulos, tentei defini-los como neoclássico. Mas não, o estilo neoclássico pertenceu a uma geração anterior, década de 40, 50. Hoje, tem que ser pós-clássico! E rimos disso tudo. Esse desejo de transpor significados é o que causa o descrédito do homem comum (categoria que pleiteio) com o tempo presente. Os exemplos de fracasso da razão dilaceraram demais a carne humana. O tempo das certezas nos conduziu ao choque, que por ato-reflexo, paralisou-nos enquanto aspiradores de um projeto social de futuro.

Mas, enquanto o homem permanece em seu estado de choque, o universo pós-moderno ao seu redor, molda-o com uma armadura ideológica fortíssima, conduzindo-nos a um corpo anti-natural, a um planeta que nos rejeita, somos marionetes tristes do nosso tempo, desejando o dia do airoso fim. Mas, como diz o professor, ainda assim chegaremos atrasados no paraíso. E com a hostil imagem dos portais fechados, do nosso futuro mecanizado, só nos resta vislumbrar, num misto de desdém e alegria, a chegada do fim, a materialização do pós ou o que virá após. Criemos um novo epíteto!

sexta-feira, 26 de março de 2010

Nick Cave e Warren Ellis

Olá amigos visitantes do Blog. De vez em quando, sinto-me na obrigação de escrever sobre coisas menos pretensiosas como a música e o futebol, porque são paixões que cultivo e não consigo me desvencilhar. Esse ano vai ter Copa do Mundo e espero dar uns pitacos em breve. Normalmente, costumo acertar em certos prognósticos. Na Copa de 1998, por exemplo, eu cravei que a Croácia seria a grande surpresa da Copa, e acertei na mosca! O escrete liderado por Suker (lê-se "Shuker"), Boban e Prosinecki (lê-se Proshinetski) arrebentou no mundial. Mas, deixemos esse assunto para a data que lhe convir. É preciso traçar planos para o futuro, mesmo que ele não chegue. E esse ano, tenho minha surpresa na ponta da língua! Porém, hoje, quero compartilhar com vocês um disco que, para mim, é muito especial. Vamos ao assunto.

Não é a primeira postagem que dedico a esse artista contemporâneo nascido numa pequena cidade da Austrália chamado Nick Cave. Ele é uma presença perene na minha vida. Alguns grupos musicais passam pela nossa existência, caracterizam uma época, cravam verdadeiras trilhas sonaras de nossas lembranças. E no caso dessa postagem de hoje, é justamente sobre uma trilha sonora que quero dividir a emoção que sinto com vocês. Como dizia, alguns artistas marcam uma geração, um período de nossas vidas, e quando amadurecemos (ou conhecemos outras coisas) eles deixam de fazer sentido. O Pink Floyd, por exemplo, é digno de profundo respeito da minha parte, mas não sinto mais aquela paixão que me cativava há seis anos.

Conheci Nick Cave em 2001, através das
indicações do guru musical dos primeiros anos de faculdade, o sr. Cristiano Randau. Me afeiçoei da sua voz, da dramaticidade como interpretava e do gosto de sangue que acompanhava as letras. Quase dez anos depois, estabeleci uma seleção dos discos que mais gosto, posso decifrar as fases vividas pelo artista e suas incursões na vida exterior ao Bad Seeds.


Esse disco é a trilha sonora do filme "O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford". Vou limitar-me a dizer que gostei do filme. Ouvi comentários que a película foi mal recebida pela crítica. Eu não entendo a parte técnica do cinema (fotografia, efeitos especiais, direção de figurino e etc), mas o filme foi-me interessante. Tem um desenrolar lento, o final é possível de ser previsto desde o começo. Ora, é um filme baseado em fatos reais! Numa história que qualquer norte-americano deve conhecer. Jesse James foi o Lampião estadunidense. Mas, não se trata de um filme de ação. É uma pegada arrastada, melancólica. Os valores das "pessoas simples" são expostas de maneira muito decente. Sua morte, fruto de um ato covarde como o título anuncia, contribui para a fixação do mito no imaginário popular norte-americano. O próprio Nick Cave atua no filme. Ele faz o papel de um cantor de boteco, desses que fazem música de improviso sobre os temas mais populares.

Desde o início de sua carreira, Nick Cave contou com um belíssimo time de músicos que garantiam o som vanguardista dos Bad Seeds. Pois bem, o violinista da banda, o sr. Warren Ellis, juntou-se a Cave para fazer a trilha desse filme. Violino e Piano. Não tem músicas cantadas. O clima é escaldante, sedento, uma constante preparação para algo harmonioso que está para chegar. E essa expectativa é saciada nas faixas "Rather Lovely Thing", "What Must Be Done" e, principalmente, na mais bela de todas, "Song for Bob". A canção-tema do covarde é a mais melancólica e delicada. É o prêmio dos que aguardam.

Enfim, deixo-vos com o link para o download do disco. Fico muito feliz quando encontro meus amigos "reais" e eles dizem que tiveram imensa surpresa com alguns discos que posto por aqui. Os amigos virtuais são mais tímidos em comentar, eu percebo. Aguardo comentários positivos ou negativos. Abraço!

Trilha Sonora do filme "O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford: http://www.4shared.com/file/250263867/a4e31e2a/Nick_Cave_And_Warren_Ellis-The.html

segunda-feira, 22 de março de 2010

Um Cochilo Acordado ou Romantismo Tardio

Existe uma cadeira de balanço no meu quarto. Ela é cor de vinho tinto. Fica próxima a janela que quase sempre está fechada. Ao redor, dois ou três livros. Minha cama do lado oposto a janela. Uma geladeira branca na frente. Quase nada me desvia a atenção. O chão às vezes fica sujo, empoeirado. Eu gosto. A música que vem da sala está em baixo volume. Um acorde de violino acompanhado do piano. Nick Cave e Warren Ellis. Deixo-me pender para trás e observo o teto. Penso que poderia estar num lugar longínquo nesse momento. Talvez em Ashgabat. Tenho às mãos um conto de Górki. “Ah! Viver sem que nada mude à volta da gente, que tormento amargo! Se uma tal monotonia não chega a matar a alma humana, que vida dolorosa ela lhe reserva." Novamente penso no vasto mundo. Decido que preciso fazer uma viagem.

Ponho-me a organizar uma empreitada turística. Caneta e papel. Dinheiro emprestado ao banco. Vou vender o fusca 78. Talvez retire o dinheiro das passagens e sobre alguma coisa. Não, só vou vendê-lo quando estiver com a data da viagem marcada. Tudo bem, ele me renderá quase três mil reais. Acredito que com dez mil reais posso passar dois meses em algum lugar como estudante. Sem luxo. Destino? Acho que deve ser São Petersburgo. Sim, não resta dúvidas. Estou pesquisando sobre esta cidade e já me sinto íntimo dela. Lá estou eu. Numa peliça espessa, exposto aos maus tratos do vento cortante de novembro. A observar dois homens no canal de Fontanka. Talvez seja apenas o Goliádkin. Mas, estando cá em Petersburgo, por que não visitar a antiga Courlândia. As noites brancas em Múrmansk. Descer para Novgorod. Se estou em Novgorod, atravesso o Lago Ilmen e vou para Staraia Russa, onde Dostoiévski se inspirou para escrever a saga dos Karamazov. Ah, e quantas aldeiazinhas estarão pelo caminho, jardins de cerejeira, bosques infinitos. Na porteira de uma grande propriedade eu vejo Catarina Tcherbatskaia passeando com seu pequeno rebento. Não me atrevo a interromper seu passo. Sou como o fantasma do Hermitage, apenas observo e teço comentários. Breves. Não quero tomar vosso tempo com divagações. Mas, estando já em Dorovoie, faltam cem quilômetros pra Moscou! Sim, preciso visitar todos esses lugares. Terei dois meses para tal e pouco dinheiro. A viagem para a Rússia é fundamental. Dois meses me fariam avançar imensamente em meus estudos da língua.

Levanto a cabeça. Olho ao redor, um camundongo na jaula. Percebo que é inútil. Abandono as contas. Acho os sonhos ridículos. Lembro-me da frase de Górki. A Rússia que me cativa não existe há cem anos. Anna Akhmátova passou a vida travando esse duelo moral com sua identidade nacional. A poetisa recebe visitas em Tsarskoie Seló. Não sou eu um daqueles jovens estudantes? A velha escritora se aproxima, sua franja na testa, seus olhos semicerrados. Um beijo de despedida, único, inesquecível. Alguma coisa nasce do silêncio. Abro a janela, a rua está calada como acontece em todas as noites de segunda. Sento-me na cadeira de balanço cor de vinho tinto. A cabeça está cansada. Um emaranhado de imagens. Adormeço. Não desejo sonhar. Mas, como controlar esse desejo involuntário? No sonho, nem nós mesmos somos capazes de nos encontrar. De alguma forma, tudo está mudado.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Antes da Partida



- É minha a lágrima que escorre no espelho?
Perguntava a parte física que estava ausente.
- Ou da metade indesejada que pulsa cá em mim?
Havia
Havia manchas de sangue na alma.
Era a saudade derradeira dela.
Sonhos são construídos por desertos e medos
E o peito desse homem era uma habitação ao ermo.
Páginas em branco de um ansioso futuro
Onde trôpegas mãos insistiam em rabiscar
Incolor.
A ativar uma explosão
Uma granada no coração
Um sopro vibrante de maus ventos.

quarta-feira, 3 de março de 2010

A Tamarineira


Quando trabalhava na zona norte do Recife presenciei, no ônibus, uma cena vulgar que hoje volta à minha memória. Um garoto moreno que aparentava uns oito ou nove anos, virou-se para a mãe, uma senhora corpulenta, vestida humildemente, com uma saia verde que circundava seu corpo abundante, e perguntou-a: "Mamãe, o que é esse parque?". O menino fincou os olhos curiosos na mãe que, sem muito preâmbulo, respondeu: "Isso é um hospital pra doido." Aaaaah! Respondemos todos.

Cada dia que passa, a televisão é um objeto mais inútil. Ao menos para mim! Ainda assisto os jogos do Náutico quando tem, fora esta condição, nada é digno de atenção. Mas hoje, enquanto jantava, minutos atrás de estar aqui perante esta tela reluzente, dei-me o dissabor de assistir o NETV, programa com notícias locais. O assunto do dia foi uma reunião entre o Bispo de Recife e Olinda, num-sei-o-quê tamarindo, e mais quatorze deputados estaduais. Homens cheios de papada, bigodes senhoriais, paletós desalinhados, passando a língua entre os dentes para retirar um pedaço de carne guizada que restou do almoço. Esses senhores respeitabilíssimos foram ouvir e assistir a apresentação do projeto de uma empresa carioca que vai desativar o Hospital Ulysses Pernambucano para doentes com problemas mentais e construir o quê... um shopping!! U-huuu!!! Mais McDonald´s, mais lojas de games, cinema, lazer para toda a família. Recife, com os incentivos do PAC e a atuação do capital privado está deixando de ser a cidade dos caranguejos, da fedentina, dos mau educados que jogam lixo pela janela dos coletivos, e se tornando uma metrópole de respeito internacional, quiçá!

Sempre tive vontade de me mudar de Recife. Apesar de ter vários motivos para gostar da cidade (e os tenho!), uma característica genuína da manguecéia é o calor e a umidade. Todos os dias do ano, o calor é estável e impávido. O calor me irrita, fico completamente suado cinco minutos após tomar um banho. Recife é uma cidade que possui trechos que estão abaixo do nível do mar, além de possuir as áreas de beira-mar completamente tomada de prédios altos, o que faz com que o vento suba e passe por cima da cidade, onde os moradores do subúrbio ficam como grãos de arroz que sobram na base de um prato fundo. As áreas de vegetação preservada são escassas, os parques são poucos e a especulação mobiliária com suas "armas verdes" sempre vencem a resistência moral dos nossos legisladores. Agora, o Parque da Tamarineira e o Hospital Ulysses Pernambucano darão lugar à égide maioral da cultura moderna, o deus-shopping!

Infelizmente, não posso falar muito pelos doentes que eram tratados no hospital, pois nunca tive a oportunidade de entrar no recinto. Mas, ao que me consta, era o local menos desumano (como assim "desumano"? O que há de mais perverso e doentio é o mais humano) para o tratamento de doentes mentais. Recordo-me que os médicos e diretores do Hospital realizam shows de rock, amostras de arte, para reintegrar esses homens desafortunados à sociedade. Sem contar que o Hospital fica numa das mais importantes e movimentadas avenidas da cidade, a Conselheiro Rosa e Silva. Os "normais" estão sempre em contato com os "doentes", fazendo-nos lembrar de sua condição, da linha tênue que separa o racional do bestial. Mas agora, vamos substitui-los! Vamos colocar a sujeira pra baixo do tapete, arranjar um local distante, de preferência cheio de concreto, pois nós o amamos. Esconder o hospital psiquiátrico. Substituir a doença involuntária pela neurose das maquiagens, calças acochadas, bundinhas empinadas. Eu adoro! A chacoalhar! A chacoalhar! A chacoalhar! Cabrum!!