terça-feira, 31 de março de 2009

Numa Tranquila Noite de Segunda Feira...

Meus amigos, parece que quanto mais a gente quer viver em paz, mais aparece gente bizarra pra atravessar nosso caminho. Vocês vão entender o que se passou comigo numa, até então, pacata noite de segunda feira pelas bandas do velho oeste recifense. O dia transcorreu na maior tranquilidade, acordei cedo, estava feliz porque o Náutico tinha vencido o Santa Cruz no Arruda ontem e eu tinha ido pro jogo, tinha dormido 8 horas de sono pesado e estava pronto pra encarar a nova semana que se abriu com a leitura do texto de Northrop Frye que seria debatido na aula do professor Anco Márcio, no período da tarde. Passei a manhã e a tarde entretido nos estudos, concentrado com as idéias e ao sair da aula, por volta das 16:50, sentei-me na frente do CAC a observar o belo movimento feminino, liguei meu mp3 nas melancólicas e profundas canções de Johnny Cash e fiquei ao sabor do tempo, esperando que meu amigo Tiago Perez passasse pela UFPE para a gente ir de carro no Shopping Tacaruna retirar os bilhetes pro Show do Iron Maiden que acontecerá hoje, dia 31, terça feira.
Acontece que a simples presença da Donzela de Ferro em nossa cidade parece que mexeu com os ânimos das pessoas, tornando-as mais agressivas que de costume. Ao ir de carro ao shopping, deixei minha bicicleta amarrada no bicicletário do CAC e na volta pra casa ainda pensava comigo: "Vou pra casa e deixar minha bike amarrada lá no CAC mesmo, amanhã eu passo e retiro-a, como ela está amarrada, mal nenhum haverá de ocorrer." Porém, quando já estávamos nos aproximando da minha vizinha UFPE, resolvi que deixaria de preguiça e levaria a bicicleta para casa, numa viagem que demora em média 5 minutos, apenas. No teatro da UFPE estava acontecendo um evento, provavelmente uma formatura, pelo desfilar de moças bem afeiçoadas em seus elegantes trajes noturnos, acompanhadas de seus grisalhos parentes. Venho eu na bicicleta, feliz por estar com meu ingresso pro show do Maiden, com a cabeça lubrificada (sem duplo sentido!) após um dia de leituras e debates, enfim, estava na melhor das situações. Resolvi dobrar minha bicicleta pelo mesmo caminho que habitualmente eu faço, peguei aquela ruazinha na frente da Biblioteca Central que vai terminar na porta do Teatro. O trânsito no local estava meio confuso, devido às pessoas que desciam do carro alí mesmo no meio da rua. Eu na minha bicicleta saio contornando os carros, até que já no fim da rua, no último carro, um palio weekend, passo com minha bicicleta na frente de um motorista raivoso que violentamente buzina atrás da minha bicicleta, colérico por ver uma bicicleta atravessar seu caminho. Me assustei com o barulho da buzina, mas continuei pedalando tranquilamente. Meus amigos, vocês nem imaginam como eu estava tranquilo!
De repente, o motorista não satisfeito em ter buzinado com violência na frente do teatro e ainda ter me conferido um susto, emparelha-se com a minha bicicleta, baixa o vidro do carro e profere a seguinte pergunta acompanhada da devida resposta. Escarnou o sujeito: "Sabe o que ia acontecer se eu te atropelasse alí atrás?" Antes mesmo que eu pudesse me assustar com aquela investida de um senhor magro, careca, de óculos e com ameaçadora alocução, ele continuou: "Eu ia manchar meu carro, seu babaca de merda!" Senhoras e senhores, pergunto-vos eu, mesmo que eu estivesse errado, estando eu numa bicicleta concorrendo em forças com o titânico veículo de metal, o senhor motorista em questão não poderia relevar tal fato? Além do mais, no momento que minha bicicleta cruzou sua frente, seu carro estava parado, tendo se movimentado no exato momento em que eu atravessava à sua frente e, segundo a lei geral do trânsito, o culpado é sempre quem bate atrás, pois esse tem a opção de frear. Antes mesmo que eu pudesse responder ao "cidadão", ele foi partindo e só deu tempo de eu gritar: "Eu sou ciclista e tenho a preferência." Pronto, o homem se foi em seu carro, crente de sua vitória na lorpa luta do trânsito. Acontece, meus amigos, que a justiça foi-me concedida antes mesmo que eu pudesse me desenganar. Voltaria para casa sendo xingado por um qualquer (vocês vão se espantar quando souberem quem é o qualquer!) e dormiria sem frustrações, afinal gente mal educada é o que não falta e eu mesmo não sou um exemplo de galhardia. O carro do xingador parou no trânsito das pessoas que precisam devolver o cartão do estacionamento. Não poderia perder a chance de dizer ao arrogante homem certas verdades. Emparelhei-me com o assustado condutor, joguei minha bicicleta, cadernos e sandália na calçada, parei o trânsito e o obriguei a descer. Até agora não sei ao certo como consegui me conter e não ter esbofeteado a face do homem que parecia latejar chamando minha mão: "bate-me que eu mereço!" Além do mais quando vi que o iria alcançar, só me vinha à mente a vontade de atolar uma pedra no carro dele, numa fúria digna dos trabalhadores da Metropolis. Xinguei-o violentamente. Ele disse: "Vou chamar a polícia!" Eu insisti que ele chamasse, logo a segurança da UFPE entrou em ação e eu continuei atirando os mais viscerais palavrões contra o careca na frente dos seguranças e eu possuído pelo furor, fazia questão de xingá-lo na frente dos seguranças e pedindo que ele anotasse um por um os nomes que eu o estava xingando.
Os seguranças começaram a inquerir quem éramos, afinal estávamos mobilizando boa parte da segurança da universidade e causando um tumulto inolvidável. O homem disse que era professor da universidade e eu estudante. No final das contas ele soube que eu sou estudante do mestrado de Letras e eu soube que ele é professor de Química Aplicada. Vou preservar seu nome dessa história aqui até pra evitar problemas, como diria minha avó: "Merda quanto mais mexe, mais fede." A minha grande surpresa foi ver que tal acontecimento se deu com um professor muito respeitado em seu curriculo lattes, com doutorado na Universidade do Texas e vários artigos escritos pelo mundo, em língua inglesa. Se ele quiser me cozinhar internamente na UFPE é um direito dele, mas espero que de cabeça fria, ele pense bem no que vai fazer, afinal ele que me agrediu primeiro ao insinuar que minha vida valeria menos do que uma avaria em seu carro. Num gosto nem de me lembrar. A verdade é que ele achava que ia sair como bacana na situação, ia xingar um zé qualquer que tava numa bike, ia arrancar em seu possante carro e ia dormir aliviado depois de tal episódio. Ele abandonou o local dizendo à segurança que ia à delegacia prestar queixa contra mim por danos morais. Também prestei queixa contra ele pelo mesmo motivo. Acho que no final das contas isso não vai dar em nada com a justiça, porém, meu único receio é que ele venha atrapalhar minha vida estudantil. Prefiro nem pensar nessa hipótese. Meu Deus, às vezes tenho vontade de lançar tudo à merda e ir me isolar em algum fim de mundo. No último concurso para professor do Estado cheguei a pensar seriamente na possibilidade de fazer a prova para a cidade de Buíque, ensinar em alguma escola rural e viver no meu cantinho. Talvez meus conhecimentos fossem mais bem aproveitados alí, onde tudo parece distante. Cada dia parece mais difícil conviver na cidade entre a complacência e a impetuosidade. Segue abaixo o meu Boletim de Ocorrência, onde vou omitir o nome do professor. Ah, hoje vou pro show do Iron Maiden! Acordei às duas da madrugada para escrever esse texto, despertei-me devido a um sonho, achava que tinha encontrado meu fusca andando por uma rua de Roda de Fogo, uma rua daquelas que só existe em sonho, numa mistura de várias imagens que formulamos. Eu encontrava um sujeito todo estranho que dizia que sabia onde meu carro tava... isso daria muito pano pra manga!


EU ESTAVA TRAFEGANDO PELA AVENIDA DOS REITORES NA UFPE QUANDO O SR. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXX, PROFESSOR DE XXXXXXXXXXXXXXXXXXX DA MESMA UNIVERSIDADE, POR MUITO POUCO NÃO ME ATROPELOU, ESTANDO ELE NUM PALIO WEEKEND ADVENTURE E EU NUMA BICICLETA. NA FRENTE DO TEATRO DA UFPE, NA CURVA EM FRENTE AO PORTÃO, O CARRO QUASE ME ATROPELOU. CONTINUEI TRAFEGANDO NORMALMENTE, APESAR DE ELE TER BUZINADO VIOLENTAMENTE CONTRA MIM. MAIS A FRENTE ELE EMPARELHOU O PALIO ADVENTURE LADO A LADO COM MINHA BICICLETA, BAIXOU O VIDRO E PROFERIU A SEGUINTE FRASE, LITERALMENTE: "SABE O QUE IA ACONTECER SE EU TE ATROPELASSE?" ELE CONTINUOU: "EU IA MELAR MEU CARRO DE MERDA, SEU BABACA!" RESPONDI PRA ELE QUE EU ERA CICLISTA E TINHA A PREFERÊNCIA NA SITUAÇÃO JÁ QUE O CARRO DELE NO MOMENTO DA CONFUSÃO ESTAVA PARADO. ENTÃO, MAIS À FRENTE, NA HORA DE ENTREGAR O CARTÃO DE CIRCULAÇÃO DA UFPE, FICAMOS JUNTOS NOVAMENTE E DISCUTIMOS CALOROSAMENTE, SEM ENTRETANTO, CHEGARMOS ÀS VIAS DE FATO. OS SEGURANÇAS DA UFPE INTERVIRAM NA SITUAÇÃO. QUERO DAR QUEIXA DA SITUAÇÃO CONTRA ESSE PROFESSOR PELO FATO DE ALÉM DE TER QUASE ME ATROPELADO, ELE AINDA ME AGREDIU MORALMENTE AO SUGERIR QUE MINHA VIDA VALIA MENOS DO QUE UM POSSÍVEL ARRANHÃO EM SEU CARRO. FICO INDIGNADO DE NUM PAÍS COMO O NOSSO TER QUE OUVIR DA BOCA DE UM PROFESSOR UNIVERSITÁRIO TAMANHA IRRESPONSABILIDADE.

terça-feira, 24 de março de 2009

Só Para Baixinhos



Hoje eu quero deixar de presente para os papais e mamães um disco infantil... ôpa, peraí! Como posso definir o disco O Jardim das Borboletas de 1972 da banda que possui o mesmo nome do disco? Rock psicodélico para crianças?! Peça teatral para uma família cabeça?! As músicas são tão bem trabalhadas que em certos momentos parece que estamos ouvindo o Perfume Azul do Sol, A Cor do Som, Som Imaginário; e tudo com um romantismo paternal. Tudo se passa em um jardim fantasioso, do mundo que só as crianças pertencem. A atmosfera é tão bonita, o instrumental tão harmônico, que eu, meio-ogro, meio-melancólico, bicho velho e ensimesmado, considero-me fâ da obra desses artistas. Vou abrir aspas para o que diz o blog Mopho Discos:


"Em 1972 estreiou a fantasia musical infantil de André José Adler "O Jardim das Borboletas" com músicas de Taiguara, Eduardo Souto Neto, Zé Rodrix, Jorge Omar e Paulo Imperial. Com cenários e figurinos de Cláudio Tovar. A produção era de Carlos Imperial. Desde então a peça já teve pelo menos 18 montagens profissionais pelo Brasil e 2 adaptações para TV."


Queria que Úrsula mostrasse para Tales, Tiago para Joãozinho, Hugo pra Camila. Também quero homenagear com essa postagem os recém-papais e mamães, especialmente Ênio (pai de Samuca), que adorou o disco e fiquei satisfeito por ter apresentado o Jardim para esse nobre músico de nossa cidade. De vez em quando fazemos trocas musicais, ele me apresentou A Banda dos Contentes de Erasmo Carlos e o dançante Chromeo; enquanto eu passei as minhas pesquisas do Leste Europeu, como Balkan Beat Box, Fanfare Cioçärlia, juntamente com outros tantos discos e O Jardim das Borboletas. Os pais, hoje, são meio órfãos de musica infantil: ou entram na ditadura da véia Xuxa ou tem que correr atrás dessas pérolas encrostradas nas veredas da psicodelia.


A vida aí fora pode não ser bem assim, mas tente lembrar do nosso Jardim.




link do álbum: http://www.mediafire.com/?jp2jb11wed5

segunda-feira, 23 de março de 2009

Louvor da Filosofia

O texto que vou postar adiante foi escrito pelo poeta e filósofo latino, Titus Lucretius Carus, ou simplesmente Lucrécio, para os íntimos. Estou lendo uma compilação de Poetas e Pensadores Latinos, organizado pelo professor de latim, o Sr. Leopoldo Pereira, falecido em 1932. Um daqueles livros que já estão sem capa, amarelados e que todo mundo acha que a única coisa que pode acontecer ao abri-lo, é adquirir uma espirradeira faraônica. O nome do texto é "Louvor da Filosofia" e está na única obra sua que chegou até nós (De rerum natura - Sobre a natureza das coisas). Esse texto vem completar minha trilogia da pobreza (estou ficando importante, mas continuo liso!) já que falei de Jesus, Dostoievski e agora do desapego epicurista de Lucrécio. Espero que gostem.


"Louvor da Filosofia (A Natureza das Coisas, Liv. II, v. 1 a 60)


É grato contemplar de terra, em segurança, o labutar dos que se aventuram ao vasto mar agitado pelos ventos, não porque nos dê prazer o sofrimento alheio, mas porque gostamos de ver de que males estamos livres. É grato observar de longe, sem ter parte nos perigos, as batalhas travadas em campo raso; porém nada mais agradável do que dos serenos templos erigidos pela doutrina dos sábios avistar os que vagueiam dispersos, procurando ao acaso os caminhos da vida, a emular em talentos, a porfiar em reputação, noite e dia empenhados em trabalho, para conseguir riquezas e poderio.


Ó miseras ambições humanas! ó cegueira d'alma! Em quantas trevas, em quantos perigos se passa este pouco de vida, qualquer ele que seja! Não ver porventura que a natureza nada mais exige do que isenção de dor para o corpo e tranquilidade para a alma, afastado o medo e todos os cuidados?


Vemos, entretanto, que o corpo não há mister muito para se forrar à dor e gozar grandes prazeres e que poucas são as exigências da natureza. Se não tendes em ampla morada formosas estátuas de ouro a suspender nas mãos archotes que iluminem vossos banquetes; se em vossas casas não brilha a prata ou reluz o ouro, nem os sons das cítaras reboam nas vastas e douradas abóbadas, podeis, reclinados em macia grama, à margem do regato e à sombra das árvores, sem dispêndio, dar folgança ao corpo, quando é boa a estação e por mercê dela os relvados se matizam de flores. Porventura vos deixai a febre mais depressa, se contra ela vos debateis entre coberturas douradas e telas purpúreas, do que se jazeis em pobre leito?


Se, pois, ao corpo não aproveitam riquezas, nobreza e poderio, certamente nem à alma podem aproveitar. Ainda que visseis em campo legiões vossas, que vos dessem a imagem de batalhas, e navios vossos, que em largas manobras se movessem, poderia esse espetáculo afugentar-vos do espírito as superstições e o medo da morte, e trazer-vos a tranquilidade e a isenção de cuidados?


Mas, se tudo isso não passa de ridícula ilusão, e na realidade o medo e as preocupações humanas não fogem ao estrondo das armas nem aos dardos cruéis, e audazmente acompanham os reis e os poderosos, nem recuam ante o fulgor do ouro e das vestes purpúreas, porque duvidais de que esses males sejam filhos da ignorância, uma vez que a maior parte da vida se passa em trevas? Pois assim como as crianças têm medo de tudo no escuro, assim nós, em plena luz, tememos cousas que não são mais de temer que aquelas que nas trevas apavoram as imaginações infantis. Êsses terrores do espírito, essas trevas da alma não os podem espancar os raios do Sol ou a claridade do dia, mas tão-somente a luz da razão e o estudo da natureza."

terça-feira, 17 de março de 2009

Akaki Akakievitch e Makár Dievutchkin

Duas grandes obras da literatura russa se encontram suavemente nas páginas de Gente Pobre, primeiro romance do escritor Fiódor M. Dostoievski, que então tinha 24 anos e estava timidamente, sendo acolhido pela intelectualidade petersburguesa. Nessa época, ainda não tinha sofrido os grandes percalços da vida, entretanto, já tinha a mão pesada de escritor. Laborava na dor dos humildes de tal maneira que dedicou aos pobres do subúrbio de Peterburgo seu primeiro livro. Para tal, chegou a se mudar da Malaya Morskaya, rua do centro, perto da Perspektiva Nevskii, para as vilas empanturradas de homens em situação de desespero. Nesse primeiro romance, trataria de um casal que se correspondia por cartas e através dessas tristes figuras, o cotidiano aflorava-se.

Uma obra de Nikolai Gógol, chamada O Capote, vai servir de inspiração para o personagem principal da novela de Dostoievski. Akaki Akakievitch é o personagem principal de O Capote e, este pobre funcionário, cujo próprio nome era motivo de constrangimento, vivia de copiar os textos na repartição, recebendo um modestíssimo soldo que mal dava para a subsistência. Esse personagem, um belo dia, resolve comprar um casaco dispendioso para se apresentar melhor na repartição, pois o habitual estava rôto. Para não ter que resumir a história, pois esse conto de Gógol é fantástico e merece ser lido por aqueles que admiram o estilo russo de literatura, vou dizer que Akaki teve seu capote roubado e caiu em profundo pesar. Sim, mas o que o personagem Makár Dievutchkin de Gente Pobre tem a ver com Akaki Akakievitch, perguntar-me-ão vocês.

O conto de Gógol, bem como sua obra completa, já era um imenso sucesso entre a intelectualidade russa e não caberia bem a Dostoievski, um escritor que estava se iniciando na aventura literária, copiar um personagem tão famoso como Akaki, tendo apenas que trocar-lhe o nome. Mas esse, não era o intento de Dostoievski. Ele quis abordar uma outra possibilidade. Talvez, até afrontar o gigante Gógol. Makár Dievutchkin, que tem as mesmas qualidades, emprego e condições ecônomicas que Akaki Akakievitch, vai começar a frequentar as noitadas literárias de um escritor chamado Rataziáev e fica impressionado como aqueles homens de alta instrução o aceitam naquele ambiente. Ele que era tão humilde, mal vestido, de poucas letras, encontrava-se entre amantes da literatura, que recitavam poemas de Pushkin e citações de Cervantes. O pobre Makár se sente emocionado e relata a experiência para sua parceira de sofrimento, a distante parente Várinka (diminutivo de Várvara) e exalta:

"A literatura é uma cousa bela, Várinka, algo de maravilhoso, segundo pude comprovar ontem na casa de Rataziáev. E, ao mesmo tempo, é uma cousa profunda! Conforta, revigora e ilustra os homens... e outros benefícios causa ainda, que ressaltam nos livros dele. Estão realmente muito bem escritos! A literatura... vem a ser uma pintura, em certo sentido, está claro; um quadro e um espelho; um espelho das paixões e todas as cousas íntimas; é instrução e aperfeiçoamento moral simultaneamente, é crítica e um vasto documento humano. Tudo isto eu ouvi da boca dos companheiros de Rataziáev."

Ao fazer esse depoimento emocionado, Makár recebe a resposta de Várinka, que junto com a carta, envia um exemplar d´O Capote de Gógol, vendo que o amigo interessara-se pela literatura. Porém, ao entrar em contato com a narrativa de Gógol, Makár se enxerga absolutamente no personagem Akaki Akakievitch e chega a imaginar que o homem que tanto admirava (Rataziáev) fora o escritor de tal conto e se passava por Gógol. Makár passa a odiar a literatura, assim como desgostar de sua própria vida, bem mais que dantes. Atira, Makár, contra a literatura:

"Desejavas, filhinha, enviar-me um livro para que eu não me aborrecesse. Deixa isso por enquanto, Várinka; que necessidade tenho eu de leituras? E de que livro se trata? Não há de contar apenas a realidade... Mas também as sátiras e as novelas são disparates, escritas com o propósito de relatar desatinos, para dar que fazer às pessoas ociosas. Crê, filhinha, no que digo: leva em conta os meus longos anos de experiência. E se começarmos por Shakespeare - esse mesmo Shakespeare não passa de um disparate, nada mais que um disparate, um simples livreco de motejo e escárnio, escrito por esses rabiscadores para divertir o público!"

Acredito que Dostoievski quis alargar o personagem d´O Capote ao criar Makár Dievutchkin, na medida em que vai se aproximar da realidade do personagem; seu cotidiano no subúrbio, sua dificuldade em quitar o aluguel do quarto de pensão em que vive, sua honestidade enquanto servidor, sua simplicidade em contraste com os letrados. Nesse momento, vemos os dois escritores e suas obras se encontrarem no terreno da História da Literatura: o mestre Gógol e o aprendiz, Dostoievski. Dizem que o destino do aluno é superar seu professor e nosso profeta Fiódor Mikhailovich tentou fazer isso já em seu primeiro romance. O crítico literário e agitador, Bielinski, ao tomar posse do manuscrito de Gente Pobre, correu à casa de Dostoievski às 3 horas da manhã e o acordou aos berros, gritando no meio da rua: "Temos o novo Gógol! Temos o novo Gógol!"

Gente Pobre

"Nós, os pobres, somos desconfiados... Assim o decretou a Natureza. Já o havia observado e sentido, anteriormente. O pobre é suscetível; encara o mundo de outra maneira, olha a cada transeunte de soslaio, com receio, e colhe no ar a menor palavra... Estarão falando dêle? Será que comentam em voz baixa seu deplorável aspecto? Indagarão, acaso, o que ele faz agora? Quem sabe perguntarão também como é que se arranja, como sai da entaladela? Todos nós sabemos, Várinka, que um homem pobre é pior que um trapo e que, digam o que disserem, não pode merecer a consideração de ninguém. Por mais que escrevam esses literatozinhos por aí, um pobre será sempre um pobre, com todas as suas consequências. E por que há de ser eternamente assim? Apenas porque, em um homem pobre, tudo, por assim dizer, deve estar com o lado avesso para fora; ele nada pode guardar no íntimo, orgulho, por exemplo, nem outro sentimento análogo, pois ninguém o tolera."
Makár Alekseievitch Dievutchkin, personagem de Gente Pobre de Dostoievski.

sábado, 7 de março de 2009

Lula Côrtes e (Má) Companhia



Hoje gostaria de escrever um pouco sobre essa figura mitológica da psicodelia musical pernambucana e mundial, trata-se do velho lobo do rock and roll, o grande Lula Côrtes. Assisti um show dele na abertura do Pré-AMP em fevereiro e, posso dizer, que foi bastante emocionate ouvir a rouca voz de Lula trucidando as adversidades da vida e mostrando-se o mais jovem de todos os artistas da atualidade. Acompanhado da Má Companhia, eles fazem o melhor show de rock, na minha opinião.


Eu conheci Lula Côrtes antes mesmo de ouvir qualquer música dele, no máximo tinha escutado falar. Estávamos na praia de Atapuz, quando da realização da Regata Atapuz-Recife, onde Lula estava hospedado na mesma casa em que eu e meus amigos, Hugo Perez e Andréia. Desde já, me afeiçoei ao seu espírito altaneiro, ainda mais que quando a gente é jovem se encanta facilmente pelas lendas que envolvem os grandes dinossauros. O éter é perceptível. Mas, o fim de semana passara e eu ainda demorei uns dois anos para ouvir o Paêbiru, disco gravado com Zé Ramalho em 1975. Entretanto, não é sobre esse disco que gostaria de falar, pois este, já recebeu todos os méritos dos críticos musicais ao redor do mundo. Gostaria de falar das parcerias que Lula realizou, seja com Laílson, Jarbas Mariz, Zé Ramalho, Robertinho do Recife e (Má) Companhia (essa última, que banda de rock!!). Os discos de Lula são diferentes entre si, ele bebe na parceria com outros músicos e no caso das atuações com Laílson e Jarbas Mariz, os discos são instrumentais, ficando para a voz humana apenas grunhidos e sibilos. Quando se deixa levar pela poesia, mistura os ritmos nordestinos e do mundo nos brilhos e mistérios de sua imaginação.


Muito se fala que o movimento Manguebeat dispertou uma veia rebelde e impulsionou a juventude a desabrochar sua inclinação musical. Porém, na década de 1970, encontramos em Recife (e adjascências) uma geração de poetas e músicos malditos que irão se engalfinhar em pântanos de cogumelos de onde explodiriam pérolas da música tida como psicodélica. Ave Sangria, Aratanha Azul, Zé Ramalho, Lula Côrtes, Phetus. Desculpem-me os que eu esqueci. Essa rapaziada representava Pernambuco e Paraíba fazendo frente ao Pessoal do Ceará e aos Novos Baianos, entre eles, Raul Seixas.

Através do meu blog, nessa morgada noite de sábado, resolvi prestar minha homenagem ao grande Lula Côrtes, em vida, desejando-o muitos anos de trabalhos na música e nas artes plásticas e que continue a produzir, refletindo sua visão do mundo e expondo sua alma na bandeja! Segue alguns discos do velho Lula. Pra quem não conhece, tá perdendo tempo!


1) Lula Côrtes e Má Companhia (A Vida não é Sopa - 2006): http://cantinadorock.blogspot.com/2008/06/lula-corts-vida-no-sopa-2006.html


2) Lula Côrtes e Laílson (Satwa - 1973): http://sombarato.org/node/16







Obs: Minha gente, tenho dois discos aqui no meu computador que não achei em outros sites da internet: Lula Côrtes (O Gosto Novo da Vida -1981) e Lula Côrtes e Jarbas Mariz (Bom Shankar Bolenajh - 1988). Alguém sabe como faço pra disponibilizar esses discos?

terça-feira, 3 de março de 2009

O Jeito é Virar Crente

A justiça desportiva está prestes a promulgar um novo ato de proibição nos estádios de futebol. Desde o ano passado já é proibida a venda de bebidas alcóolicas dentro das praças esportivas e, agora, será feito teste com bafômetro na entrada dos torcedores nos estádios. Anunciaram que a tolerância será um pouco maior do que a que se encontra em vigor nas medidas de trânsito, porém, se o torcedor, no dia de domingo, ultrapassar (vamos supor...) quatro latinhas de cerveja, será barrado de assistir a partida, mesmo que já esteja com o ingresso na mão. Será que essa é a verdadeira solução para acabar com a violência entre as torcidas nos dias de jogos de futebol?




Ao meu ver, o grande problema da justiça brasileira é que ela bate e depois assopra, onde o policial é o banana e o delegado é o mamão, pois o primeiro prende e o segundo, solta. Todos os clássicos em Pernambuco são cercados de cenas de violência antes dos jogos e, principalmente, depois. A polícia através do Batalhão de Choque faz um trabalho que eu, como torcedor frequentador de estádio, considero muito bom: escoltando a torcida visitante, previnindo aglomerações de torcidas organizadas e vigiando os terminais de integração. Ao final desses jogos vemos aquela clássica foto no jornal, onde encontramos setenta, cem, cento e cinquenta torcedores presos, em sua imensa maioria usando camisas das três maiores torcidas organizadas da capital: Fanáutico, Torcida Jovem do Sport e Inferno Coral. O problema é que no cerne dessas torcidas organizadas, os próprios vândalos já sabem que se forem presos pelo Choque, o máximo que poderá acontecer é se ausentar de assistir a partida e levar umas duas pauladas na perna. O que para quem sai de casa pra fazer arruaça já é uma circunstância natural. O Brasil tenta enfrentar o problema da violência no futebol, adotando o sistema europeu de segurança, mas vejamos, estamos anos-luz de distância em relação ao trabalho realizado na Inglaterra, por exemplo. Os Hooligangs causaram problemas no futebol britânico entre as décadas de 1960 e 1990, devido à impunidade da justiça. À partir do momento em que os agressores foram parar atrás das grades, o futebol se tornou um ambiente familiar, onde hoje, nem alambrados são usados para separar a torcida do gramado.




A justiça no Brasil pra maquiar a incompetência no julgamento dos casos e na aplicação das penas socio-educativas, tenta criar soluções impopulares e grotescas para coibir a baderna instalada no esporte mais popular do mundo. Eu frequento estádios de futebol desde os 14 anos e nunca me envolvi em briga, talvez um bate-boca, mas nunca às vias de fato, pois me esforço pra ser uma pessoa pacata, embora nem sempre seja fácil. Quando o time do meu coração, o Náutico, joga contra os arquirivais, Sport e Santa Cruz, quase sempre gosto de reunir meus amigos aqui em casa, a gente come um tira-gosto, bebe uma cervejinha ou whiskey e faz aquela "resenha" antes da partida, até para relaxar os nervos. Não duvidem, meus amigos, o futebol deixa as pessoas nervosas, sim. Parafraseando Nélson Rodrigues, dentre as coisas menos importantes da vida, o futebol é a mais importante. E perder uma final de campeonato para um rival é de entristecer e adoecer os mais fanáticos. A cerveja faz parte do ritual do futebol. Sei que muitos dirão que ela poderá acirrar os sentimentos durante a partida, mas só criticará esse hábito, aquele que nunca ficou fritando ao sol numa arquibancada e tendo na companhia da louríssima sua única refrescância.




A lei seca em relação ao trânsito é louvável, embora eu ache que a tolerância zero seja um exagero, em outros países, o nível de álcool é mais flexível. Porém, trazer essa lei para o estádio de futebol é um tiro no pé, é um atestado de incompetência para punir os verdadeiros culpados pela selvageria nos estádios, que em sua maioria são adolescentes que contam com a absolvição da lei e a impunidade geral depois que são pegos em flagrantes. Dia desses foi levantada a possibilidade de proibir o futebol para menores de 18 anos. Meu Deus, por que não proibimos a felicidade? Paremos de vender depiladores! Deixemos as mulheres com pernas de caranguejo e viremos crentes, cordeiros da safadeza geral. Como sempre digo, não quero ser o dono da verdade, mas esse é o lugar onde posso expôr minhas idéias livremente (assim acredito) e espero engrossar o côro dos descontentes com tantas proibições. Mexeu no álcool do povo, é revolução certa. Isso me faz lembrar um causo interessante: era ano de 1865 (não tenho certeza da data, podia ter sido 1855) e Karl Marx vivendo em situação de extrema pobreza no subúrbio de Londres raramente saia de casa para conviver com a urbe. Um belo dia, ao sair à rua deu de cara com uma multidão de mais de cem mil pessoas na rua, reclamando contra o governo. O velho poeta da utopia achara que os ingleses tinham se convertido ao socialismo e que a Revolução estaria em fase de ação. Marx se entusiasmara como há muitos anos não o fazia ao ver a multidão inflamada. Mas, a desilusão logo tomou conta do seu espírito quando descobrira que toda aquela multidão tinha saído à rua para reclamar do parlamento o veto do mesmo à bebida alcóolica. Na segunda-feira, a bebida voltou a ser vendida normalmente e todos se aquietaram. Marx desolado, escreveu esse fato em seu diário. Durante o século XVIII a maior fonte de renda do governo russo foi a nacionalização da venda de álcool, onde o governo vendia vodka para os traktires repassar ao povo. Se tirar o remédio do povo, o bicho pega, ou cerveja ou a bíblia, o rio precisa correr pro mar. Saudações etílicas!

domingo, 1 de março de 2009

Lavar as Mãos

Noite chuvosa de domingo, as águas de março fechando o verão, resolvi que passaria o fim de semana em casa, assistindo filmes e estudando russo pela internet (gente, o site www.livemocha.com é fantástico!). Durante muito tempo relutei ante a possibilidade de assistir a Paixão de Cristo dirigida por Mel Gibson, por ouvir falar que a mesma assemelhava-se mais a um filme de terror do que a uma obra sacra. Porém, nessa fim de semana pós carnaval resolvi pegar o citado filme, juntamente com Amarcord de Fellini, Boa Noite e Boa Sorte de George Clooney e São Francisco de Assis de Michael Curtiz. Todos os filmes foram muito bons (Amarcord, eu revi) e deixaram boas impressões no meu espírito. Aquela sensação de quem termina o filme e tem vontade de escrever, desabafar, pensar. Várias vezes tentei alugar a Paixão, mas temia encarar o sofrimento de Jesus. Devo confirmar os comentários dos que me advertiram, justificando que o filme é sim carregado de brutalidade. A questão é acreditar que tais fatos ocorreram tal como demonstrado na película. Há algum tempo desejava falar da relação entre cinema e história e para tal, imaginava usar o filme Qvo Vadis? e a série Roma, esta última produzida pela BBC, para fazer um estudo sobre a influência da Teoria da História na maneira de se fazer e narrar o cinema.

Os filmes épicos das décadas de 1950 e 1960 buscavam mostrar os grandes acontecimentos narrados pela Macro História: a vida dos grandes reis e imperadores, as batalhas memoráveis, as epopéias clássicas dos heróis. Assim, o magnífico filme Qvo Vadis?, adaptação do livro do escritor polonês Henryk Sienkiewicz, traz o gérmen do cristianismo através do governo de Nero. Spartacus, Ben-Hur, Julio Cesar... parecem se atrelar aos grandes feitos e narrativas clássicas. A série Roma, organizada pela BBC e HBO, ao meu ver, tenta aproximar o cinema das novas correntes da Teoria da História, como a Nova História, na medida em que tenta narrar os fatos através de dois personagens do baixo escalão do exército romano e seu cotidiano no pobre bairro do Aventino. Acredito que vários estudos sobre essa relação entre História e Cinema devam ter sido escritos pelas universidades afora e estou apenas a observar uma questão que me chamou a atenção, sem a pretensão de estabelecer uma verdade.

Enquanto assistia ao bom filme de Mel Gibson da Paixão de Cristo um assunto me chamou a atenção: a questão Pôncio Pilatos. Quem acompanha meu blog teve a oportunidade de reconhecer uma infância religiosa em mim, seja na escola ou nas conversas com meu avô, Emílio Martins de Lima, que estudava a Bíblia com afinco e sempre conversava conosco, seus netos, sobre os episódios bíblicos. Entre essas passagens, a situação de Pilatos sempre me chamava a atenção. Desde criança, não reconhecia nesse personagem, o peso pela morte de Jesus. Quando rezava o Credo, a frase: "padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado..." ficava martelando em meu espírito. Nunca em minha vida, tive vontade de cursar Direito, tampouco de ser juiz, embora o salário seja tentador. A missão de decidir o futuro de um criminoso é das mais difíceis, levando-se em consideração a variedade imensa de possibilidades em que pode estar escondido um caso. Além do mais, o pobre Pilatos se quisesse salvar Jesus da condenação, teria que ir de encontro à vontade popular. E vendo as coisas do "nosso" ponto de vista democrático, a condenação seria o mais prudente. No livro Mestre e Margarida de Mikhail Bulgakov (já postei sobre esse livro) a questão Pilatos é retomada, onde o autor (o Mestre) escreve como fôra o dia de Pilatos durante a condenação de Jesus, com uma riqueza de detalhes fascinante: seu aborrecimento em trabalhar naquele fim de mundo que era a Judéia, sua incerteza quanto à culpabilidade do condenado e seu arrependimento tardio e estatelado. Um juiz que tem que sentenciar vários casos por dia consegue ser honesto com todos os acusados?


Ao meu ver, Pilatos agiu da maneira mais prudente e confortável: entregou ao povo o destino do homem que os incomodava. E o povo fez sua justiça. Pilatos não tinha noção do peso de sua decisão, ou melhor, da sua falta de decisão. Lavar as mãos e declarar-se inocente perante o sangue do acusado transfere a culpa da condenação para o povo judeu. Aliás, muito se falou que a visão do filme acirraria o ódio dos cristãos pelos judeus. Ao meu ver, ninguém tem que pagar por um caso que ocorreu há dois mil anos, assim como Israel não tem direito sobre o território palestino. Em Mestre e Margarida, Pilatos está aprisionado pela lembrança dos que o condenam por ter lavado as mãos e a obra do Mestre foi feita para libertá-lo do furor da posteridade. Por que conservamos negativa a imagem de Pilatos, se o próprio Cristo o absolveu? Infelizmente, a mensagem de Cristo sobe com Ele pro paraíso, pois sua justiça não foi feita para os homens. Dois mil anos se passaram e os julgamentos são feitos a torto e a Direito, por ímpios comprados por trinta moedas de ouro mensais. Ante a desordem, arregaço as mangas e lavo as mãos. Como dizia um certo cabeludo: "Todos estão surdos."


P.S.: Me desculpem os que esperam respostas, mas não as tenho. Não quero que esse blog tenha finalidade acadêmica ou jornalística, ele é apenas um relato de um viajante que há dias engolido pelo deserto, já não se importa em se orientar pelas estrelas.