domingo, 22 de agosto de 2010

O Amargo Remédio do Governo

“Realmente, em nenhum momento a compaixão se apossa tanto de nós como quando vemos a beleza tocada pelo hálito putrefato da devassidão.”

Nikolai Gógol

O que posso falar sobre música erudita para vocês, amigos leitores do blog? Muito pouca coisa, certamente. Nunca estudei teoria musical, tampouco possuo talento para envergar um violino, um clarinete, ou o mais popular dos instrumentos, o violão. A natureza não me beneficiou com seus dotes artísticos. Tenho a mão dura dos brutamontes e a impaciência dos ansiosos. Isso também vale para a escrita. Quantas vezes não desejei desenvolver um pensamento com maior destreza e desenvoltura e me vejo encarcerado pelos paredões da norma culta. A grande arte, seja qual for, é para corações e mentes sensíveis, no sentido mais amplo que esta palavra carrega.

O que tenho a dizer pode machucar os corações esquerdistas, os que se acham solidários e beneficentes, os que sonham com utopias socialistas e delírios democráticos. Não, não vou defender a elitização da sociedade. Que a sociedade ofereça mais e mais privilégios de equiparação social e lute contra a pobreza degenerante dos que sentem fome e não possuem o básico. Hei de defender essa idéia sã e justa. Ou não, talvez eu minta. Minta para agradar o leitor que me visita, meus amigos cheios de cartilhas partidárias. Não defendo nada que escape as minhas forças, nem nada que exija de mim a coletividade. Aprendi a dançar, mesmo que canhestramente, conforme a música.

Nesse agradável mês de agosto, aqui pela planície litorânea do Recife, desembarcou o Festival Chopin-Schumann dedicado aos 200 anos de nascimento desses dois compositores do século do Romantismo. Uma oportunidade para reunir grandiosos músicos do nosso país em devoção à arte maior da música. E tudo foi tão bem arquitetado! Escolheram dois excelentes teatros para as apresentações: o antigo e majestoso Santa Isabel e o aconchegante e acústico Teatro da UFPE. Os ingressos eram gratuitos, graças à contribuição de grandes empresas fomentadoras de maravilhosos eventos como este, além do apoio do Governo.

Apoiar a cultura, seja regional ou não, tem sido uma das tarefas mais festejadas pelos cidadãos no período eleitoral. O sempre necessário pão e circo. Acredito que até o ego de uma cidade pode ficar mais enaltecido quando os moradores observam, cotidianamente, o circular das mais variadas formas de arte. E o recifense, depois da geração manguebeat até a “nação multicultural” de hoje, é o maior exemplo. Depois dos cariocas, não conheço outro povo que se orgulhe mais de sua cultura popular. Mas, isso é outro assunto. Voltemos ao Festival Chopin-Schumann. No dia 12 de Agosto dirigi-me até o Teatro da UFPE na intenção de acompanhar o solo da pianista Andréia da Costa Carvalho. Cheguei uma hora antes e pude retirar o ingresso e acompanhar a chegada do público. Pois bem, de repente, quinze ônibus cheios de adolescentes, alunos das escolas públicas do Recife, começaram a chegar. Ao estacionar, já se ouvia a algazarra que faziam dentro do coletivo fretado pela Prefeitura. Vinham cantando músicas de brega e funk. Pensei comigo: “Eles devem ter selecionado os alunos mais interessados.”

Antes mesmo da pianista adentrar a algazarra era completa. O apresentador, José Mário Austregésilo, pedia silêncio para a juventude que respondia com gracejos, aproveitando-se do ocultismo da penumbra. Nem mesmo a pianista iniciara seu trabalho, ouvia-se “fiu-fiu”, “Tereza, rapariga!” e outras baixezas que só são permitidas em estádio de futebol. Levantei-me com um ódio profundo e voltei pra casa. Era pra ser uma noite de divertimento e devoção à música e terminou numa profunda dor de cabeça e reflexão sobre a promoção desse tipo de evento. Não se trata de preconceito contra alunos de escolas públicas. Se fossem alunos dos mais “respeitados” colégios do Recife, fariam o mesmo, ou parecido. O que me irrita é essa necessidade de casa cheia, de inserir a população na arte da música erudita como se fosse um remédio que se toma goela abaixo e fosse limpar a mazela social em que estão inseridos. Ora, não duvido que para alguns poucos alunos, aquele momento tenha sido sublime, mas para a grande maioria só deve ter feito aumentar o abismo interno em que se sentem em relação à classe culta. Mesmo gracejando, eles tinham consciência do quanto estavam incomodando, do desprezo da maioria da platéia por suas atitudes. Será que os organizadores desses eventos não percebem a agressão que estão cometendo para com o público, a artista que estudou a vida toda para atingir aquele grau de perfectibilidade, e o espírito dos compositores homenageados?! Ou estão cada vez mais interessados nas gordas verbas do Estado que exige apenas a participação popular? A grande arte não foi feita para a maioria e, não estou separando por classes sociais, mas por grau de sensibilidade. Faço côro ao filósofo Nietzsche quando põe na boca de Zaratustra que “a vida é um manancial de alegrias, mas onde quer que o populacho vá beber, todas as fontes se encontram envenenadas.”

terça-feira, 17 de agosto de 2010

O Dedo no Cu da História

Vou relatar uma história que aconteceu em outubro de 2005, na cidade de Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Aquele que se predispõe a contar uma história assina um acordo com o leitor, partindo do princípio que o segundo haverá de acreditar na veracidade dos fatos por ele narrados. Ainda bem, que para dar o veredicto sobre minha história, dois mil historiadores são testemunhas. Até me sinto num dos contos de Borges ou Kafka: “dois mil historiadores testemunharam o fato!” Que evento maravilhoso poderia dispor de tão nobre e reconhecida platéia! Ah, mas o dia em questão, ou melhor, a noite, foi da abertura de um encontro de estudantes, o ENEH, Encontro Nacional dos Estudantes de História.

Quem já foi a um encontro de estudantes sabe como o negócio funciona. Um monte de jovens aglomerados, dormindo em barracas, chapando de hora em hora, fazendo ou desejando o sexo e dando vazão aos mais voluptuosos desejos. Assim, cada dia desta semana, vale mais do que um mês inteiro no cotidiano de um cidadão comum. Era o primeiro dia do ENEH de Aracaju. A delegação de Pernambuco resolveu colocar as barracas no fundão do acampamento, cercados pelos cariocas da UFF e da UFRJ. Lá no final, embaixo de uma marquise, fizemos uma favelinha muito disputada. Eu, com minha barraca quebrada, O Monstro dormindo numa rede a semana toda e O Baga num papelão. Imaginem, que visão!

Chegara a noite de abertura do Encontro. Haveria um show de música popular no centro de Aracaju, num lugar parecido com um mercado aberto de rua. Mas, calma. Chegaremos na festa. É preciso se deslocar primeiro. Durante todo o dia estivemos entretidos em nos bacantearmos. Beber, fazer escambo com os cariocas, ficar doido de verdade. À época, sempre que viajava, levava uma cachacinha pra vender, chamada Meladinha, uma mistura de cana de cabeça com canela, anis estrelado e melaço. Essa cachacinha era meu sustento durante o encontro. Levei o suficiente pra vender e pra beber. Nos deslocamos para o centro da cidade, só Deus sabe como. No meio do caminho, ainda uma 20 horas, talvez. Algum engraçadinho teve a idéia de adentrarmos num cabaré, cujas portas sempre convidativas se escancaravam no caminho do mercado. Paramos, assistimos uns shows. Moças mui talentosas. Mas, ninguém tinha dinheiro. Ficamos um tempo e o olhar ansioso das profissionais nos enxotava silenciosamente. Voltamos ao centro de Aracaju. Sim, porque apesar do cabaré ficar no centro da cidade, todos eles se parecem entre si. Voltamos para a rua, para o centro, e cada um se perdeu na sua intenção. Sai com a bolsa nas costas, cheia de garrafinhas de meladinha. Eu nem oferecia, a clientela se apressava em perguntar: “Você é de onde? O que é isso que você ta bebendo?” E qualquer conversa mole resolve a peleja.

Daqui a pouco, estou eu a convescotear com uma bela moça de Curitiba. Ela provou a cachaça e ficou chamando todo mundo da sua delegação pra experimentar. Ali mesmo, já tinha feito meu serviço. Fiquei ali, conversando com a moça, de esverdeado olhar, aquele sotaque diferente que inebria mutuamente o encontro. Na confusão dos meus olhos, via aquela senhorita como o desenrolar perfeito da minha noite. A gente ali conversando, olho no olho. Um forrozinho pé-de-serra tocando no palco. Todo mundo naquele clima de se conhecer e interagir. Sorrisos fartos distribuídos para todos os lados.

De repente, um grupo de pessoas forma um círculo no meio do “salão” e com doçura, observam um homem que aparentava seus 40 e poucos anos a dançar como uma bailarina no meio da multidão. Era um homem magro, com a camisa de botão aberta. Certamente, um morador do centro de Aracaju. Estava ali, rodando como uma bailarina, sendo saudado pela multidão de jovens embebedados de felicidade. O homem se empolga, começa por tirar a camisa de botão, depois o cinto da calça jeans, até que ficasse completamente nu. Aquele cidadão, do jeito que veio ao mundo, com o sorriso estampado abaixo do bigode, rodando como uma bailarina, despertou a atenção de todos. Todos aplaudiam-no. Ninguém queria mais prestar atenção à música. Apenas admirar aquele sujeito que fazia performances para a multidão. De repente, o homem rodando que nem uma bailarina, abaixa uma das mãos e enfia no seu ânus. A multidão foi ao delírio! Risadas e gritaragem irrompiam por todos os lados. Quem ainda não tinha visto a cena, corria para não perder o show. Enciumada, a cantora da banda de forró, ao constatar que ninguém dançava mais, pediu ao policiamento que retirassem aquele sujeito inconveniente da praça, pois estava atrapalhando o andamento do seu forrobodó.

Até então, apenas dois policias faziam a segurança da tranqüila e festiva praça. Os jovens policiais, encostados na viatura, provavelmente a observar o movimento de vistosas moças num cardápio variadíssimo, apressaram-se em deter o homem que fazia sua performance com o dedo no oiti-coró. Arrastaram-no da multidão e conduziam-no para a viatura. A platéia que se avolumava em torno do homem, começou a vaiar a atitude dos jovens policiais. Vocês sabem como são os historiadores, né? Entre o variado ramo dos estudantes, esses possuem a fama de serem os mais arredios. De tanto ouvirem falar em revoluções, sempre alimentam o sonho de encarar as forças repressoras e blá, blá, blá. A multidão começou a gritar, cantar: “ão, ão, ão, abaixo a repressão!” Os dois policiais ficaram atônitos com aquela massa que se deslocava em direção a eles, a gritar, cada vez mais alto. Seus globos oculares saltavam da face, de medo, eram jovens. Um estudante da UFF se aproximou pra conversar com um dos policiais e pedir que soltasse aquele pobre homem. Quando conseguiu chegar perto do miliciano, levou uma coronhada na testa que espirrou sangue por toda sua camisa. O policial ficou ainda mais atabalhoado. Os colegas de universidade do rapaz, acrescidos da multidão, até então, pacífica, arrodearam a viatura e começaram a atirar garrafas, cadeiras, pedras. Os policias colocaram os rapazes dentro do carro e enquanto um corre para o rádio, o outro protege-se atrás da porta e mira sua pistola contra a multidão.

Em poucos minutos começam a chegar várias viaturas nervosas. Entravam na rua dando cavalo de pau. Os homens desciam dos carros e já atiravam pra cima. Um policial desceu do carro e atirou-se ao primeiro jovem que estava à sua frente, deitou-o no chão, mirou a pistola frente o seu rosto. Nessa hora, eu já tinha me perdido da curitibana de olhos verdes, preferi não observar, apenas escutei o barulho seco do disparo. O policial, há poucos centímetros do rosto do rapaz caído, atirou-lhe perto da cabeça, o projétil disparou contra o chão. Quem pode imaginar o quanto durou esse momento pra esse aspirante a historiador? Mais e mais viaturas chegavam, o batalhão de choque foi acionado. A rua se transformou numa praça de guerra. Os policiais fizeram uma barreira e ninguém conseguia sair de dentro do mercado. Acuados, os estudantes só podiam gritar palavras de ordem, do tipo: “Puta que o pariu, essa polícia é a vergonha do Brasil.” Nesse momento, pelas minhas contas nada confiáveis, estimo que uns quinhentos policias, todos armados até os dentes, faziam um corredor polonês contra a multidão. Colocavam mais gente dentro das viaturas. E quanto mais a multidão gritava contra eles, mais o ódio lhes insuflava a face. Depois de um tempo, uma fileira de batedores de choque partiu contra a multidão, batendo em quem estivesse pela frente, sem distinguir qualquer pessoa ou gênero. Eu mesmo levei duas cacetadas, uma na coxa esquerda e outra na cabeça que me fez ver o mundo rodar definitivamente. Para minha sorte, um cara da universidade de São João del Rey me tirou da linha do policial, senão iria apanhar até Deus sabe quando! Fiquei caído no chão uns 15 segundos enquanto não conseguia distinguir o céu do inferno.

Após aplicarem uma sova nos estudantes, os policiais prepararam um corredor e obrigaram todos a se dirigirem para os ônibus que levaria a multidão de duas mil pessoas, talvez, de volta para a universidade. Ao chegarmos na UFSE, cada um tinha uma versão pra contar, uma zoada geral que se perpetrou até o dia raiar. Eu também tenho minha versão pra contar. Mas, o que mais me espanta, são os motivos que geram os grandes tumultos. Muita gente perde a vida por se estressar com situações banais: uma vaga no estacionamento, um discussão por causa de futebol e, naquela noite, todo esse imbróglio por mim narrado só se deu porque um cidadão resolveu enfiar o dedo no cu!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Queda

“Olhe, sabe por que crucificaram o outro, aquele em quem neste momento talvez o senhor pense? Bem, havia muitas razões para isso. Há sempre razões para matar um homem. Inversamente, é impossível justificar que viva. É por isso que o crime encontra sempre advogados, e a inocência, apenas às vezes. Mas, além das razões que muito bem nos explicaram durante dois mil anos, havia uma grande para esta horrível agonia, e não sei por que a escondem tão cuidadosamente. A verdadeira razão é que ele próprio sabia que não era completamente inocente. Se não carregava o peso do erro de que o acusavam, tinha cometido outros, ainda que ignorasse quais fossem. Ignoraria mesmo, aliás? Ele representava a origem, afinal, deve ter ouvido falar de um certo massacre dos inocentes. As crianças da Judéia massacradas, enquanto seus pais o levavam para um lugar seguro; por que teriam sido mortas, senão por sua causa? Ele não o desejara, é certo. Esses soldados sangrentos, aquelas crianças cortadas ao meio causavam-lhe horror. Mas, sendo como era, tenho certeza de que não conseguia esquecê-los. E essa tristeza que se adivinha em todos os seus atos não seria a melancolia incurável de quem ouvia ao longo das noites a voz de Raquel, gemendo sobre os seus filhos e recusando qualquer consolo? O lamento ecoava na noite, Raquel chamava os filhos mortos por sua causa e ele estava vivo!

Sabendo o que sabia, conhecendo tudo sobre o homem – Ah, quem pensaria que o crime não é tanto fazer morrer, mas não se deixar morrer! – confrontado dia e noite com o seu crime inocente, tornava-se muito difícil manter o equilíbrio e continuar. Mais valia terminar, não se defender, morrer, para não mais estar sozinho na vida e para ir-se embora para onde talvez pudesse ser amparado. Não foi amparado, disso se queixou e, para cúmulo, censuraram-no. Sim, foi o terceiro evangelista, creio, que começou a suprimir sua queixa. ‘Por que me abandonaste?’ era um grito subversivo, não acha? Então, tesouras! Note-se, aliás, que se Lucas nada houvesse cortado, a coisa mal teria sido notada; não teria ocupado tanto espaço, em todo caso. Mas o censor é a propaganda do que proscreve. Também a ordem do mundo é ambígua.

O certo é que o próprio censurado não pôde continuar. E eu sei, meu caro, do que falo. Houve um tempo em que eu ignorava a cada minuto como poderia chegar ao seguinte. Sim, pode-se fazer a guerra neste mundo, macaquear o amor, torturar o semelhante, freqüentar as colunas dos jornais ou, simplesmente, falar mal do vizinho enquanto se tricota. Mas, em certos casos, continuar, apenas continuar, eis o que é sobre-humano. E ele não era sobre-humano, pode acreditar. Gritou a sua agonia, e eis por que o amo, meu amigo, ele que morreu sem saber.

A desgraça é que nos deixou sós, para continuarmos, aconteça o que acontecer, mesmo quando nos aninhamos no desconforto, sabendo o que ele sabia, mas incapazes de fazer o que ele fez e de morrer como ele. Tentamos, naturalmente, socorrer-nos um pouco com sua morte. Afinal, era uma idéia genial dizer: ‘Não sois brilhantes, bem, é um fato. Ora, não entremos em pormenores. Terminemos com isto de uma vez, na cruz!’ Mas muitos alçam-se, agora, à cruz, somente para serem vistos por nós de mais longe, ainda que para isso seja preciso espezinhar um pouco o que lá se encontra há tanto tempo. Demasiados decidiram deixar de lado a generosidade para praticar a caridade. Oh, a injustiça, a injustiça que lhe fizeram e que me aperta o coração!

É isso, volto à minha vocação, vou advogar. Desculpe-me, compreenda que tenho as minhas razões. Olhe, a poucos quarteirões daqui há um museu com o nome de Nosso Senhor do Sótão. Naquela época, tinham colocado as catacumbas nos sótãos. Era de se esperar, aqui os subterrâneos são inundados. Mas, sossegue, hoje o Senhor deles não está mais no sótão, nem no porão. No íntimo de seus corações, eles o empoleiraram num Tribunal e o agridem, sobretudo julgam, julgam em seu nome. Ele dizia docemente à pecadora: ‘Eu também, eu também não te condeno!’, o que nada impede, eles condenam, não absolvem ninguém. Em nome do Senhor, esta é a tua pena. Senhor? Ele não pedia tanto, meu amigo. Ele queria que o amassem, nada mais. É bem verdade que há pessoas, mesmo entre os cristãos, que o amam. Mas são muito poucos. Ele havia previsto isso, aliás, tinha senso de humor. Pedro, como sabe, o covarde, Pedro, portanto, o renega: ‘Não conheço este homem... Não sei o que queres dizer...’ etc. Realmente, ele exagerava! E fez um jogo de palavras: ‘Sobre esta pedra edificarei minha Igreja.’ Não se podia levar mais longe a ironia, não acha? Mas não, eles ainda triunfam! ‘Como vocês vêem, Ele tinha dito!’ Ele tinha dito, de fato, ele conhecia bem a questão. E, a seguir, partiu para sempre, deixando-os julgar e condenar, com o perdão nos lábios e a sentença no coração.

Porque não se pode dizer que não há mais piedade, não, protesto com veemência, não cessamos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta, pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no desconforto. Isto porque não devemos atacar apenas os cristãos. Os outros também estão comprometidos. Sabe em que se transformou, nesta cidade, uma das casas que abrigou Descartes? Em asilo de alienados. Sim, é o delírio geral e a perseguição. Nós também, naturalmente, somos forçados a nos envolver. O senhor teve ocasião de notar que eu não poupo nada e, do seu lado, sei que pensa o mesmo. A partir daí, uma vez que somos todos juízes, somos todos culpados uns perante os outros, todos cristãos à nossa maneira vil, crucificados um por um, e sempre sem saber. Poderíamos sê-lo pelo menos, se eu, Clamence, não tivesse encontrado a saída, a única solução, a verdade, enfim...”

Albert Camus, A Queda.

domingo, 15 de agosto de 2010

Sobre uma Palestra com Boris Schnaiderman em São Paulo


Em Dezembro de 2009, tive a oportunidade de participar de um seminário sobre a obra e pensamento do escritor russo Dostoiévski. Naquela ocasião, entre tão brilhantes palestrantes, pude conhecer o professor Boris Schnaiderman, o grande pioneiro nos estudos sobre literatura russa no Brasil. Antes dele, Otto Maria Carpeaux e Hamilton Nogueira, entre outros, haviam escrito brilhantes ensaios à respeito do escritor russo. Mas, Schnaiderman institucionalizou o estudo da língua e cultura russa no Brasil, quando capitaneou o Departamento de Língua e Cultura Russa na Universidade de São Paulo nos anos 1960. De lá pra cá, o aumento no interesse pelo pensamento de um povo tão longínquo do nosso, tem atraído dezenas de pesquisadores que se dividem na missão de criticar, traduzir e ensaiar as obras de diferentes escritores russos.

As quatro noites em que se debateu a obra de Dostoiévski em São Paulo, a platéia estava repleta de estudantes e admiradores da obra do escritor. Na primeira noite, cercado pelos competentíssimos pesquisadores: Bruno Gomide, Manuel Costa Pinto e Igor Volguin; Boris Schnaiderman pontuou sua palestra no embate entre razão e fé. Sua voz lenta e baixa, fez-se ecoar pela sala, numa demonstração de respeito por parte da platéia à sua contribuição cultural que resultou em várias traduções, livros e artigos. Sua fala foi concisa, em quinze minutos havia terminado seu colóquio, sendo reverenciado pelos presentes. Hoje, estive relendo meu caderno de anotações da viagem e encontrei algumas anotações que fiz enquanto o professor Boris palestrava.

A discussão sobre a religiosidade de Dostoiévski é intensa. É certo que ele propagava as idéias do cristianismo ortodoxo. Podemos encontrar indícios de sua pregação religiosa no seu último romance, Os Irmãos Karamazov, bem como em inúmeras crônicas escritas e compiladas nas páginas do Diário de um Escritor. Mas, até que ponto Dostoiévski acreditava no que escrevia? Para Joseph Frank, muitas vezes, Dostoiévski acreditava que a religião era fundamental para o povo, essa massa manobrável e sujeita a crenças muito mais perniciosas, como o socialismo, por exemplo. Schnaiderman então começou a palestra perguntando: “Que tipo de cristão ele era?” Ele responde usando uma expressão do pensador espanhol, Miguel Unamuno, em que dizia que Dostoiévski era um “cristão agônico”, ou seja, aquele que luta consigo mesmo e com os demais. Schnaiderman ainda afirmou que religião é discussão e que a tormenta e a dúvida fazem parte do processo de estruturação do pensamento.

Que Dostoiévski duvidou em sua fé é uma certeza ratificada por quase todos os críticos. Ivan e Alexei Karamazov representam duas fronteiras no pensamento do escritor russo, as fronteiras da negação e da certeza, respectivamente. Quando Dostoiévski compõe esses dois personagens está expulsando dois demônios que o atormentavam de longa data. E esse enxotamento dos demônios tinha que ser feito no derradeiro romance, pois o escritor tinha consciência que seu tempo de vida estava minguando, embora alimentasse o desejo de um desfecho no imaginário A Vida de um grande Pecador. Ivan, o racionalista ateu, e Alioscha, o agradável noviço, representam esse choque entre dois mundos: a tormenta e incerteza da razão e o conforto e a placidez da fé.

Schnaiderman citou uma carta escrita por Dostoiévski em fevereiro de 1854, quando ainda se encontrava na Sibéria em que dizia que “gostaria mais de ficar com Cristo do que com a Verdade.” Essa oposição entre Cristo e a Verdade é a aflição que carregará consigo até o fim de sua obra. Também é a mola propulsora de sua criação. Stefan Zweig dizia que Dostoiévski pregava uma fé que ele próprio não acreditava: “Prega a mentira que traz a felicidade, a fé do carvoeiro. (...) Para preservar os homens do tormento de Deus.” É esse tormento que enlouquece e mata Ivan e essa mentira que torna Alioscha um agradável rapaz, um exemplo do homem do futuro. A religiosidade de Dostoiévski, sublinhada por vários críticos e biógrafos, foi aprendida na prisão de Omsk. Seu catecismo foi popular, entre as criaturas mais torpes e bestiais, nos confins de uma Rússia distante.

Pontuando sua análise na questão da crença de Dostoiévski e na oposição entre o Cristo e a Verdade, Boris Schnaiderman propiciou aos ouvintes uma discussão fundamental da obra do escritor russo, tocando na chaga ideológica de seu pensamento, agarrando-se na pilastra primordial que separa a crítica religiosa e racionalista da obra de Dostoiévski.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Pro Curar

“Digno do céu me sentia quando os terrenos apetites dominava. Mas, quando não o conseguia, um inefável prazer de mim se apoderava.” Provérbio alemão do século XVIII.

A noite de domingo é um dos momentos mais sublimes da semana. Nem de longe é a mais feliz. Ao contrário, muitas vezes está impregnada de tal melancolia que preenche todo o ar de um saudosismo inconcebível. Assim, tenho percebido nas retrospectivas dos cotidianos semanais, os solavancos de minha alma, a única pela qual posso responder.

Quando o fim de semana se aproxima, de alguma maneira o espírito se assanha, parece estar à procura de um desejo perdido. É a vontade pela vontade, sem nenhuma razão plausível. O linguajar torna-se arredio, esquivo, rebelde. E, no meu caso, raríssimas são as vezes em que consigo dizer “não” ao canto das sereias. Nesses dias, é o palavrão cuspido com vontade no estádio de futebol, o galanteio barato, a selvagem bebedeira, a imundície das ruas noturnas do centro, a busca pela saciedade do prazer mais vil ou o simples contemplar das vicissitudes alheias.

Mas, dias de erupção são minorias durante a semana. Em geral, de domingo a quinta, empenho-me em levar uma vida próxima da decência, se assim posso me exprimir. É o treino dedicado de artes marciais, o estudo compenetrado no místico e turbulento universo da literatura russa, a busca pelas paisagens de fronteira. E nunca posso me queixar da solidão nesse apartamento, estou sempre às voltas com meus amigos escritores, cineastas e músicos.

Bem, muitos de vocês devem se perguntar: o que danado este homem está querendo dizer com essas palavras? Que sua semana oscila?! Oh, esse não é um privilégio exclusivo seu, meu amigo! Acorde! Não percebes o desenfreado movimento humano ao teu redor?!

Na verdade, se recorro ao desabafo, é que estou farto, empanturrado de coisas dentro de mim, clamando por se livrarem da minha companhia, mas que eu não as liberto. Não, não vou falar do desapego da vida cotidiana, das relações pós-modernas de afetividade. Eu já desisti dessa choradeira. Mas, da minha dissertação mesmo! Ao lado desse computador, mais de cinqüenta páginas de citações, divididas em capítulos. Vários esqueletos esperando pelo preenchimento de suas formas. Há uma semana tento começar a escrever. Escuto o conselho dos amigos: “Escreva, mesmo que fique ruim, depois você conserta.” Tá, vou tentar. Mas, fica sempre muito ruim. Acostumei-me a tal ponto em fichar os textos que não consigo desenvolver o pensamento. É frase e ponto.

“O surgimento da cidade na História aparece junto com a necessidade de proteção. Uma defesa contra as forças da natureza, contra grupos de inimigos, uma resposta à necessidade de sobrevivência. Para viver em conjunto, o homem antigo teve que criar regras de convivência e de organização militar. Dentro de uma escala macro, a cidade era sua casa...”

Assim, sem conseguir fazer direito, estou diante da necessidade primordial de produzir, perseguido pelo tempo que sempre é mais veloz que nossa vontade, aprisionado pelo sentimento de fraqueza perante o desejo, resta-me continuar a tentar, procurar. Ainda são 23:27.

domingo, 1 de agosto de 2010

Carta de Proudhon a Marx


Marx lera o livro de Proudhon, O que é Propriedade?, e ficara entusiasmado com a vitalidade das palavras do socialista utópico. Resolvera convidá-lo para participar de uma reunião que visava juntar pensadores socialistas de todos os recantos. Proudhon recebe o convite e envia uma resposta para Marx. Diz o francês na carta:

"Colaboremos, sim, na tentativa de descobrir as leis da sociedade, a maneira como elas atuam, o melhor método de investigá-las; mas, pelo amor de Deus, depois de demolirmos todos os dogmatismos a priori, evitemos a todo custo a tentativa de instalar outro tipo de doutrina no povo; não caiamos na contradição de seu compatriota, Martinho Lutero, que, após derrubar a teologia católica, imediatamente dedicou-se à empresa de estabelecer uma teologia protestante, com um grande arsenal de excomunhões e anátemas. Há três séculos que a Alemanha vem se ocupando exclusivamente da tarefa como essa à humanidade. Aplaudo com entusiasmo sua idéia de trazer à luz toda a variedade de opiniões; façamos uma polêmica boa e sincera, mostremos ao mundo um exemplo de tolerância esclarecida e clarividente; mas não nos coloquemos, simplesmente por estarmos à testa de um movimento, na posição de líderes de uma nova intolerância; não nos arvoremos em apóstolos de uma nova religião - ainda que seja esta a religião da lógica, da própria razão. Saibamos receber, saibamos estimular todos os protestos; condenemos todas as exclusões, todos os misticismos; jamais consideremos uma questão encerrada, e, mesmo após esgotarmos nossos últimos argumentos, comecemos de novo, se necessário, com eloqüência e ironia. Com esta condição, terei muito prazer em participar de sua associação - caso contrário, não."

Essa carta se encontra no livro de Edmund Wilson, Rumo a Estação Finlândia, e infelizmente não tenho a data precisa, mas foi próximo da Revolução de 1848. Após esta resposta, Marx passou a atacar tudo o que Proudhon escrevia e revisou os elogios que fizera anteriormente.