quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O Quirguiz



Esse foi meu último dia no Tartaristão. Partindo da casa de Masha para a estação de trem, o tempo já era curto, mas Masha teve a ideia de que eu deveria comprar uma matriosha numa lojinha de souvenirs, pois em Kazan seria mais barato que em São Petersburgo. Estava um dia quente, uns 14 graus positivos, fazia sol e não tinha muitas nuvens no azul-claro tártaro. Compramos a matriosha e entrei no vagão da terceira classe (plazkard) com o trem já apitando a partida. Para minha sorte, o trem não estava lotado, das seis vagas da cabine, apenas três pessoas ocupavam: eu, um lutador de sambo (luta greco-romana) e um homem moreno, com a pele do rosto queimada do frio, olhos levemente puxados, era um quirguiz.

Cumprimentei meus companheiros de viagem, afinal passaríamos 25 horas e meia, juntos, no trecho entre Kazan e Peter. O trem partiu às dez da manhã e eu não comprara cigarros, minha carteira de Marlboro Light só tinha mais duas unidades. Perguntei se algum dos companheiros tinha isqueiro. O lutador de sambo não fumava e o quirguiz tinha fósforos, e foi me fazer companhia no último compartimento do trem, donde se pode ver a estrada ficando pra trás. Enquanto fumávamos, mostrei minha preocupação que após aquele cigarro, só teria o último. O quirguiz me mostrou uma carteira de cigarros muito barato, cheinha. Dentro de uma hora passei a me utilizar da sua carteira que, por cortesia, ele deixava em cima da sua mesa e me oferecia o tempo todo. O lutador de sambo pouco se comunicava, estava muito calado e pelas marcas no rosto, deveria ter lutado em Kazan dias atrás. Talvez tivera perdido a luta, estava com o rosto todo cortado. Não ousei perguntar muitas coisas, ele apenas disse que era de Tver e estava voltando pra casa, na cidade que fica no caminho entre Moscou e Petersburgo.

Novamente, fui fumar com o quirguiz e passamos a conversar longamente. Ele ficava muito feliz em conversar comigo, dizia que era a primeira vez que via um brasileiro. Era a primeira vez que eu conversava com alguém do Quirguistão também. Durante os três meses em que fiquei no Tartaristão, tive a oportunidade de conhecer muitas pessoas da Ásia Central: azeris, turcomenos, tadjiques e uzbeques, mas nenhum quirguiz. O Quirguistão é o mais pobre desses países pobres da Ásia Central. Ainda pagando o tributo de uma recente guerra civil, o país vive no caos, sendo habitado, em sua maioria, por mulheres, velhos e crianças, pois os homens adultos vão tentar a sorte noutros países, especialmente no vizinho Uzbequistão, um pouco mais organizado. Assim também acontecia com meu amigo, cujo nome diferente agora não me lembro, mas que deixou impressões fortes no meu espírito.

Como eu não tinha me preparado para a viagem, chegara em cima da hora, não tinha trazido lanches e, de início, tive que comprar o chá no próprio trem, por 12 rublos. Ao me ver pagar pelo chá, o quirguiz disse: não precisa, eu tenho bastante chá e pão preto, além de uns biscoitinhos doces. Eu prometi que tão breve o trem fizesse uma parada mais longa compraria tudo: chá, lanche e cigarro. Fomos fumar seu cigarro, pois o meu acabara. Era péssimo, tinha gosto de pólvora e era mais “quente” que o normal. O quirguiz me contou sua história: estava há três anos longe de casa, onde deixara esposa e três filhos numa aldeia e fora tentar a sorte em Bukhara, cidade uzbeque. Lá trabalhava como pedreiro, até que apareceu a chance de trabalhar como peão numa fábrica em Nizhnekamsk, perto de Naberezhnye Chelny, onde eu morei. A fábrica ia de mal a pior e já fazia três meses que ele não recebia salário. Com o pouco dinheiro que recebia na Rússia, sustentava a família no Quirguistão. Gastava muito dinheiro com ligações telefônicas pra falar com os filhos e esposa. Eu escutava seu relato emocionado. Mas, a emoção desses homens das montanhas da Ásia Central são diferentes das nossas. Eles nem pensam em chorar, embora seus corações fiquem trêmulos de saudade. Desde cedo aprendem a ser fortes. Agora, estava indo para São Petersburgo, onde um amigo prometera-lhe um novo emprego na construção civil. Ele me perguntou se eu sentia falta da minha família, no Brasil. Disse-lhe que sim, mas que os via todos os dias pelo Skype, sem pagar um copeque por isso. Ele arregalou os olhos! Expliquei-lhe que havia um programa de computador que permitia conversar com as pessoas, vendo as imagens, inclusive. Ele se interessou demais pelo assunto, anotou os nomes e disse que tão breve recebesse o salário, compraria um computador e enviaria para a família. Mas, depois ele se entristeceu novamente, pois na aldeia quirguiz ainda não tinha internet.

Ficamos conversando longamente, falei-lhe do Brasil, de como nosso país é bonito, mas pobre também. Ele me falava das montanhas e desertos de sua terra. Quando o trem parou numa cidade da Tchuváshia, comprei cigarros, dei um Marlboro pra o meu amigo e comprei comida para uns três dias de viagem. Logo o lutador de sambo entrou na conversa também, ele achava engraçado um brasileiro e um quirguiz conversando no mesmo vagão que ele, em russo, cheios de erros gramaticais. O lutador de sambo mostrou foto da namorada, falou da sua cidade, a famosa Tver, terra natal de Bakúnin e onde Dostoiévski viveu por seis meses, na volta da Sibéria. Às quatro da manhã, o lutador desceu em Tver, estava escuro ainda, eu via as luzes manchadas da cidade grande. Voltei a dormir. Quando acordei estava claro e o quirguiz estava na janela olhando a paisagem cheia de pântanos, lagos e rios. Era a certeza que estávamos chegando perto do destino, a capital de Pedro, o Grande. Quando o trem chegou ao destino final, tive vontade de abraça-lo, mas sabia que isso não seria correto para a cultura dele, apertei sua mão com força e desejei-lhe muita sorte na vida, saúde para si e sua família. As imagens do seu rosto, das nossas conversas, estão vivas em mim, e continuarei levando nas memórias daqueles meses inesquecíveis. Outro dia, caminhando perto da Praça Sennaya, na Avenida Staro Petergovskyi, observei um grupo de pessoas jogando futebol numa quadra, aproximei-me, disse que era brasileiro e gostaria de saber como poderia entrar pra jogar. Um quirguiz falou comigo, não era o mesmo do trem, mas disse: “ora, um brasileiro, você vai jogar no meu time na próxima partida!”