domingo, 1 de março de 2009

Lavar as Mãos

Noite chuvosa de domingo, as águas de março fechando o verão, resolvi que passaria o fim de semana em casa, assistindo filmes e estudando russo pela internet (gente, o site www.livemocha.com é fantástico!). Durante muito tempo relutei ante a possibilidade de assistir a Paixão de Cristo dirigida por Mel Gibson, por ouvir falar que a mesma assemelhava-se mais a um filme de terror do que a uma obra sacra. Porém, nessa fim de semana pós carnaval resolvi pegar o citado filme, juntamente com Amarcord de Fellini, Boa Noite e Boa Sorte de George Clooney e São Francisco de Assis de Michael Curtiz. Todos os filmes foram muito bons (Amarcord, eu revi) e deixaram boas impressões no meu espírito. Aquela sensação de quem termina o filme e tem vontade de escrever, desabafar, pensar. Várias vezes tentei alugar a Paixão, mas temia encarar o sofrimento de Jesus. Devo confirmar os comentários dos que me advertiram, justificando que o filme é sim carregado de brutalidade. A questão é acreditar que tais fatos ocorreram tal como demonstrado na película. Há algum tempo desejava falar da relação entre cinema e história e para tal, imaginava usar o filme Qvo Vadis? e a série Roma, esta última produzida pela BBC, para fazer um estudo sobre a influência da Teoria da História na maneira de se fazer e narrar o cinema.

Os filmes épicos das décadas de 1950 e 1960 buscavam mostrar os grandes acontecimentos narrados pela Macro História: a vida dos grandes reis e imperadores, as batalhas memoráveis, as epopéias clássicas dos heróis. Assim, o magnífico filme Qvo Vadis?, adaptação do livro do escritor polonês Henryk Sienkiewicz, traz o gérmen do cristianismo através do governo de Nero. Spartacus, Ben-Hur, Julio Cesar... parecem se atrelar aos grandes feitos e narrativas clássicas. A série Roma, organizada pela BBC e HBO, ao meu ver, tenta aproximar o cinema das novas correntes da Teoria da História, como a Nova História, na medida em que tenta narrar os fatos através de dois personagens do baixo escalão do exército romano e seu cotidiano no pobre bairro do Aventino. Acredito que vários estudos sobre essa relação entre História e Cinema devam ter sido escritos pelas universidades afora e estou apenas a observar uma questão que me chamou a atenção, sem a pretensão de estabelecer uma verdade.

Enquanto assistia ao bom filme de Mel Gibson da Paixão de Cristo um assunto me chamou a atenção: a questão Pôncio Pilatos. Quem acompanha meu blog teve a oportunidade de reconhecer uma infância religiosa em mim, seja na escola ou nas conversas com meu avô, Emílio Martins de Lima, que estudava a Bíblia com afinco e sempre conversava conosco, seus netos, sobre os episódios bíblicos. Entre essas passagens, a situação de Pilatos sempre me chamava a atenção. Desde criança, não reconhecia nesse personagem, o peso pela morte de Jesus. Quando rezava o Credo, a frase: "padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado..." ficava martelando em meu espírito. Nunca em minha vida, tive vontade de cursar Direito, tampouco de ser juiz, embora o salário seja tentador. A missão de decidir o futuro de um criminoso é das mais difíceis, levando-se em consideração a variedade imensa de possibilidades em que pode estar escondido um caso. Além do mais, o pobre Pilatos se quisesse salvar Jesus da condenação, teria que ir de encontro à vontade popular. E vendo as coisas do "nosso" ponto de vista democrático, a condenação seria o mais prudente. No livro Mestre e Margarida de Mikhail Bulgakov (já postei sobre esse livro) a questão Pilatos é retomada, onde o autor (o Mestre) escreve como fôra o dia de Pilatos durante a condenação de Jesus, com uma riqueza de detalhes fascinante: seu aborrecimento em trabalhar naquele fim de mundo que era a Judéia, sua incerteza quanto à culpabilidade do condenado e seu arrependimento tardio e estatelado. Um juiz que tem que sentenciar vários casos por dia consegue ser honesto com todos os acusados?


Ao meu ver, Pilatos agiu da maneira mais prudente e confortável: entregou ao povo o destino do homem que os incomodava. E o povo fez sua justiça. Pilatos não tinha noção do peso de sua decisão, ou melhor, da sua falta de decisão. Lavar as mãos e declarar-se inocente perante o sangue do acusado transfere a culpa da condenação para o povo judeu. Aliás, muito se falou que a visão do filme acirraria o ódio dos cristãos pelos judeus. Ao meu ver, ninguém tem que pagar por um caso que ocorreu há dois mil anos, assim como Israel não tem direito sobre o território palestino. Em Mestre e Margarida, Pilatos está aprisionado pela lembrança dos que o condenam por ter lavado as mãos e a obra do Mestre foi feita para libertá-lo do furor da posteridade. Por que conservamos negativa a imagem de Pilatos, se o próprio Cristo o absolveu? Infelizmente, a mensagem de Cristo sobe com Ele pro paraíso, pois sua justiça não foi feita para os homens. Dois mil anos se passaram e os julgamentos são feitos a torto e a Direito, por ímpios comprados por trinta moedas de ouro mensais. Ante a desordem, arregaço as mangas e lavo as mãos. Como dizia um certo cabeludo: "Todos estão surdos."


P.S.: Me desculpem os que esperam respostas, mas não as tenho. Não quero que esse blog tenha finalidade acadêmica ou jornalística, ele é apenas um relato de um viajante que há dias engolido pelo deserto, já não se importa em se orientar pelas estrelas.

2 comentários:

Sr. Anísio disse...

sim, tanta preocupação com um caso já resolvido a 2000 anos, e sem falar quantos outros cristos foram condenados da mesma forma, e hoje quantos não são????
se surdos, tambem mudos: como aqueles peixinhos de anfion. uma vez surdos nada de diferente é apreendido, assim repetir as mesmas palavras é de uma vez mudez!

Hugo disse...

Eita, Dodô sempre irônico com os casos que envolvem os conhecimentos históricos. A crônica está boa. Cinema e história então, assunto sempre bacana e repleto de não me toques, mais ainda com relação a Cristo uma das maiores fábulas do mundo judaico cristão. E a parte de Pilatos então, um grande pilantra, político é foda, sempre lava as mãos quando o bicho pega e o povo que decida. Kakakakaka. abraços grande