domingo, 14 de dezembro de 2008

Barro-Macaxeira (BR-101)


Noite de domingo. Meu apartamento. Bob Dylan tocando a meia altura. Acabei de assistir o filme Sócrates de Roberto Rossellini. Essa junção de fatores me impulsionam para o teclado do computador. Mas, o tema da minha escrita não haverá de surgir enquanto escrevo essas primeiras linhas, pois desde o dia de ontem eu já sabia que minha próxima postagem seria sobre o cotidiano na linha 207 que faz a integração entre os terminais do Barro e da Macaxeira, no trecho da BR-101 que passa pela zona oeste do Recife. Esse ônibus que dispõe de uma variedade de acontecimentos incríveis e que espero ser justo em minha narrativa.

Durante dois anos da minha vida, eu trabalhei no Programa Parceria nos Morros da Prefeitura da Cidade do Recife, cuja sede da minha estação ficava no bairro da Guabiraba. Então, eu acordava umas 6 da manhã para às 7 estar no ponto de ônibus para pegar o Barro/Macaxeira prá quando chegasse na integração ainda pegar outro que saísse da Macaxeira para a Guabiraba. Ou seja, eram quatro ônibus por dia, só pra trabalhar. Portanto, posso dizer que sou um bom conhecedor da realidade desse ônibus. Ele faz um trajeto que incorpara diversos bairros pobres da zona oeste da cidade, servindo de elo entre a zona oeste e a zona norte da nossa cidade. Recolhendo a multidão que desembarca no metrô, vinda de diversos bairros da periferia, para se espalhar pelo resto da cidade. Diversas vezes eu estava na parada de ônibus, já atrasado, e o danado vinha super lotado de uma maneira que o motorista, quando muito, se limitava a bater os punhos fechados avisando que não cabe nem uma mosca lá dentro.

Até que ele passasse pela Avenida Caxangá era impossível atravessar a borboleta, que dirá sentar-se, e quando conseguia se acomodar em pé entre as pessoas, surgia do coração do ônibus (da sanfona do ônibus) um coro de vozes que variava de um senhor protestante, moreno e careca, que abria sua bíblia e se esbravejava para ser ouvido até a legião de doentes pedindo dinheiro para comprar remédio ou comida. Posso garantir que nunca ouve uma única viagem em que alguém não tenha ficado naquela metade do ônibus a pedir a atenção dos viajantes. O "pastor" das manhãs se emocionava ao narrar passagens da bíblia. Confesso que algumas passagens bíblicas aprendi ouvindo sua narração, ao mesmo tempo em que me esforçava em parecer imperceptível, porque se ele notasse que eu ouvia-o com atenção, não arredaria do meu pé. Assim ele gritava loucamente falando que Mizak, Sadrak e Abdnego estavam no cativeiro da Babilônia e foram salvos pelo verbo divino. Outro dia, ele pregava sobre o Apocalipse e cantava e orava, gemia. Outros crentes acompanhavam e diziam "aleluia", outros ficavam indiferentes, por vezes algum gaiato soltava uma piadinha ou gritinho para enervar o "pastor". Além do pastor, muita gente ia vender chocolates com laranja, balas de jujuba, pipoca, picolé "da fruta", canetas, tesourinhas, alfinetes, linhas para costurar, produtos fitoterápicos. Nossa, como não se lembrar daquela vendedora dos produtos "Raízes da Natureza" que começava seu discurso com um efusivo "Bom Dia" que ninguém respondia e ela, ironicamente, dizia "obrigado pelo bom dia de cada um" e começava a narrar os preços dos produtos que prometiam limpar a pele de todas as doenças e micoses.

Um caso à parte são os doentes e seu relatos dramáticos. Gente sem braço, costurada em todo lugar, carregando as receitas dos médicos, com crianças nos braços, com todo tipo de doença que se pode imaginar. Ao sair do Barro/Macaxeira você se sente pesado, culpado de existir e estar com a pele limpa. Essas pessoas não tem o respaldo do Estado e acabam tendo que apelar para a população pobre que se desloca nas linhas da integração. Ontem, quando peguei esse ônibus, um velhinho com elefantíase subiu no ônibus, a perna extremamente inchada, fiquei imaginando como deveria ser desconfortável qualquer movimento de caminhada para ele. E a população comovida, limpa seus cofres com suas míseras moedas e vão aliviando a dor dos pedintes e alimentando esse estado de dependência em que pessoas de todas as idades e por diversos motivos se utilizam do Barro/Macaxeira para sobreviver. Além dos doentes, pessoas que vêm da CEASA com caixas e sacolas cheias de alimentos que se espremem entre as pessoas: caixotes de batatas, melancias, laranjas e tudo o que se pode imaginar, até víveres. O Barro/Macaxeira expõe a face mais carente de nossa cidade, numa verdadeira guerra entre os passageiros que viajam agotados vindos da construção civil, da recepção de algum laboratório, empregadas domésticas, estudantes... numa guerra por espaço com os que querem tomar suas moedas em troca de bugigangas ou através do apelo de suas moléstias. O Barro/Macaxeira me lembra aquelas imagens antigas daqueles filmes que se passavam no interior de El Salvador, onde ônibus velhos carregavam a população com galinhas voando no sacolejo das estradas esburacadas. Entretanto, enquanto a imagem dos filmes são engraçadas, dentro desse nosso ônibus tudo é muito mais desesperador. Que postagem triste para se abrir uma semana, mas essa é a realidade de muita gente que vive na mesma cidade que eu, e porque não, também é a minha realidade, na medida em que só pude relatar isso pela minha própria experiência de quem fica calado observando os acontecimentos, me expremendo entre os concidadãos. Com certeza, esqueci de relatar muitas coisas singulares que vi nesse trajeto, mas isso fica para uma próxima, quem sabe. Um asseado abraço a todos.

Um comentário:

Anônimo disse...

É BOM PRA ROÇAR NAS GOSTOSAS !!!