quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

A Vida de Leno

No início desse ano de 2008, entre janeiro e maio, eu trabalhei num projeto do Governo do Estado que visava recuperar jovens desacreditados de comunidades carentes e direcioná-los para o mercado de trabalho. O nome do projeto é Centro da Juventude. Lá eu trabalhava de instrutor de cidadania e na maioria das vezes não tinhamos uma sequência de atividades propostas pela direção e nós, instrutores, que ficávamos na sala de aula tínhamos que usar de nossa habilidade argumentativa para tornar o período de aulas interessantes.

Eu trabalhava em Santo Amaro, um dos bairros mais violentos do Recife, no coração da cidade, perto da Boa Vista, do Recife Antigo, caminho pra Olinda... um lugar privilegiado geograficamente. Entre meus alunos havia todo tipo de personalidade, moças agressivas, outras tranquilas e carentes, que nos surpreendiam em nossa sonolência matinal com um pulo de bom dia com os braços agarrados no pescoço. Entre os rapazes, muitos com potencial para as artes, interessados em levar um vida honesta, dentro de nossa visão cordeira de cidadão pacato. Outros com passagens pela polícia e que buscavam um novo caminho, bem mais árduo. Ainda haviam os que estavam na ativa, que assaltavam e matavam. O mais interessante foi que depois de dois meses de relação com os alunos, em que eu buscava trazer o tema da aula, cidadania, para a realidade deles, levando músicas de Racionais MC´s pra debater na sala de aula, questionando os benefícios que o idolatrado programa de Cardinot trazia para a comunidade deles, ou ainda fazendo-os cantar uma música desconhecida. Lembro-me que uma música de Capiba fez o maior sucesso entre eles:"Eu bem sabia que esse amor um dia também tinha seu fim, essa vida é mesmo assim. Não penses que estou triste nem que vou chorar, eu vou cair no frevo que é de amargar!" Além da música "primavera nos dentes" de Secos e Molhados, onde cada frase da música servia de um longo comentário e debate na sala.

Entre os alunos que não se desvencilhavam do mundo do crime (e tinham muitos!) estava Leno, um rapaz de 19 anos que pertencia a uma gang que ficava no campo do 11 em Sant´amaro. No primeiro dia de aula na turma dele, me indispus com ele que estava sentado no "braço" da cadeira e não parava de me desafiar, soltando piadinhas e tentando atrapalhar de todas as formas. Me exaltei e passei minha primeira lição de moral nele e na turma. Eu não sabia que Leno era o "terror" de Santo Amaro. Ao invés disso me afastar dele, aconteceu o contrário, o jovem sempre vinha conversar comigo no horário do intervalo, contando como funcionava a boca lá no beco ou então narrando detalhes dos assaltos e assassinatos que cometera. Ele era alto, pele clara e tinha o cabelo oxigenado em forma de porco-espinho. Os dias se passaram e as narrativas da guerra interna em Santo Amaro chegavam aos meus ouvidos com maior frequência. Os tiroteios envolvendo a DI (Demônios da Ilha, de Santa Terezinha) e o pessoal do Campo do 11 culminaram com a morte de um dos chefes do 11. Alguém da Ilha de Santa Terezinha teria que morrer para compensar. O clima na escola era tenso. Os jovens que moravam na Ilha de Santa Terezinha, que normalmente cortavam caminho por dentro de Santo Amaro, tinham que arrodear pela Av. Agamenon Magalhães para poderem ir ao Centro. Isso custava uma meia hora a mais de caminhada. Um aluno da tarde resolveu cortar o caminho, confiando na sua inocência e indiferença à guerra. Foi assassinado brutalmente, teve o corpo riscado por faca e a cabeça cortada. O Centro ficou em estado de choque, não se falava em outra coisa nas rodas de conversa. Tinham matado Deyvinho, um aluno da tarde.

Três dias após o fato narrado anteriormente, sem que eu puxasse assunto nem nada, eis que Leno se senta o meu lado, com olhar assustado e como se tivesse desabafando começou a contar como fora o assassinato de Deyvinho nos mínimos detalhes. Contou mais, que fora ele e mais três comparsas que cometeram o crime. Aos 19 anos, aquele era seu décimo primeiro assassinato. O que me espantava era a frieza que ele teve para falar com Deyvinho, ofereceu um baseado a ele, fumou e, depois que o mesmo virou as costas começaram a disparar contra o jovem que ainda tentou correr pelo beco, mas tombou sem vida poucos metros à frente. Ao final da conversa pedi a Leno que saísse daquela vida, pois não tinha muito futuro, apelei à memória de sua mãe, que ele estaria dando-a um grande desgosto e toda essa série de argumentos caretas. Voltei pra casa rememorando a narrativa de Leno e decidi que não comentaria aquilo com ninguém, pois estaria pondo minha própria vida em risco e como diria Raul Seixas: "Eu não sou besta pra tirar onda de herói...".

Meu estágio acabara em maio e nunca mais tive contato com ninguém que trabalhava ou estudava no Centro da Juventude. Até ontem de madrugada. Depois de uma noite de muito forró e diversão (que contraste com o tema da narrativa) encontrei o músico Raphael que era instrutor lá também e que me contou que Leno fora assassinado por ter matado um policial em Santo Amaro. Sua morte foi tão triste como a de suas presas. Um policial disfarçado chegou por trás do nosso herói enquanto o mesmo conversava distraídamente e deu um tiro em suas nádegas. Logo outros apareceram e começaram a andar com o braço na cintura de Leno pelas ruas de Santo Amaro. O sangue jorrava pelas pernas e ele uivava de dor até que uma nova etapa de agressões se iniciasse. Morreu depois de apanhar brutalmente.

Ao final de toda esse relatório policial vocês devem estar ansiosos pela minha opinião a respeito da situação de Leno e de tantos outros que se encontram na mesma situação. Mas, não cabe a mim julgar, sou um observador das coisas do mundo e não tenho espírito justiceiro, até que haja uma ofensa grave particular. Resolvi narrar esse caso real porque os personagens envolvidos estão mortos e o assassinato teve repercussão em todos os jornais policiais e só estou a expôr um acontecimento público. O que fica disso tudo é o abismo existente para essas pessoas que convivem em comunidades como Santo Amaro, onde a violência, a falta de estrutura familiar, o desemprego e de condições dignas de moradia e saneamento são as únicas certezas perceptíveis. Acredito que a solução para comunidades como essa só obterão resultado a longo prazo e histórias reais como essa que contei ainda ocorrerão por muitos anos. Gostaria de terminar essa postagem deixando uma música que citei de Secos e Molhados, onde muitos jovens se identificaram e foi um dos momentos mais proveitosos de minha estadia naquele estágio.

Titulo da Música: Primavera Nos Dentes
Artista: Secos e Molhados
Letra:
QUEM TEM CONSCIÊNCIA PARA TER CORAGEM
QUEM TEM A FORÇA DE SABER QUE EXISTE
E NO CENTRO DA PRÓPRIA ENGRENAGEM
INVENTA A CONTRA-MOLA QUE RESISTE.

QUEM NÃO VACILA MESMO DERROTADO
QUEM JÁ PERDIDO NUNCA DESESPERA
E ENVOLTO EM TEMPESTADE DECEPADO
ENTRE OS DENTES SEGURA A PRIMAVERA.

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