segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Queda

“Olhe, sabe por que crucificaram o outro, aquele em quem neste momento talvez o senhor pense? Bem, havia muitas razões para isso. Há sempre razões para matar um homem. Inversamente, é impossível justificar que viva. É por isso que o crime encontra sempre advogados, e a inocência, apenas às vezes. Mas, além das razões que muito bem nos explicaram durante dois mil anos, havia uma grande para esta horrível agonia, e não sei por que a escondem tão cuidadosamente. A verdadeira razão é que ele próprio sabia que não era completamente inocente. Se não carregava o peso do erro de que o acusavam, tinha cometido outros, ainda que ignorasse quais fossem. Ignoraria mesmo, aliás? Ele representava a origem, afinal, deve ter ouvido falar de um certo massacre dos inocentes. As crianças da Judéia massacradas, enquanto seus pais o levavam para um lugar seguro; por que teriam sido mortas, senão por sua causa? Ele não o desejara, é certo. Esses soldados sangrentos, aquelas crianças cortadas ao meio causavam-lhe horror. Mas, sendo como era, tenho certeza de que não conseguia esquecê-los. E essa tristeza que se adivinha em todos os seus atos não seria a melancolia incurável de quem ouvia ao longo das noites a voz de Raquel, gemendo sobre os seus filhos e recusando qualquer consolo? O lamento ecoava na noite, Raquel chamava os filhos mortos por sua causa e ele estava vivo!

Sabendo o que sabia, conhecendo tudo sobre o homem – Ah, quem pensaria que o crime não é tanto fazer morrer, mas não se deixar morrer! – confrontado dia e noite com o seu crime inocente, tornava-se muito difícil manter o equilíbrio e continuar. Mais valia terminar, não se defender, morrer, para não mais estar sozinho na vida e para ir-se embora para onde talvez pudesse ser amparado. Não foi amparado, disso se queixou e, para cúmulo, censuraram-no. Sim, foi o terceiro evangelista, creio, que começou a suprimir sua queixa. ‘Por que me abandonaste?’ era um grito subversivo, não acha? Então, tesouras! Note-se, aliás, que se Lucas nada houvesse cortado, a coisa mal teria sido notada; não teria ocupado tanto espaço, em todo caso. Mas o censor é a propaganda do que proscreve. Também a ordem do mundo é ambígua.

O certo é que o próprio censurado não pôde continuar. E eu sei, meu caro, do que falo. Houve um tempo em que eu ignorava a cada minuto como poderia chegar ao seguinte. Sim, pode-se fazer a guerra neste mundo, macaquear o amor, torturar o semelhante, freqüentar as colunas dos jornais ou, simplesmente, falar mal do vizinho enquanto se tricota. Mas, em certos casos, continuar, apenas continuar, eis o que é sobre-humano. E ele não era sobre-humano, pode acreditar. Gritou a sua agonia, e eis por que o amo, meu amigo, ele que morreu sem saber.

A desgraça é que nos deixou sós, para continuarmos, aconteça o que acontecer, mesmo quando nos aninhamos no desconforto, sabendo o que ele sabia, mas incapazes de fazer o que ele fez e de morrer como ele. Tentamos, naturalmente, socorrer-nos um pouco com sua morte. Afinal, era uma idéia genial dizer: ‘Não sois brilhantes, bem, é um fato. Ora, não entremos em pormenores. Terminemos com isto de uma vez, na cruz!’ Mas muitos alçam-se, agora, à cruz, somente para serem vistos por nós de mais longe, ainda que para isso seja preciso espezinhar um pouco o que lá se encontra há tanto tempo. Demasiados decidiram deixar de lado a generosidade para praticar a caridade. Oh, a injustiça, a injustiça que lhe fizeram e que me aperta o coração!

É isso, volto à minha vocação, vou advogar. Desculpe-me, compreenda que tenho as minhas razões. Olhe, a poucos quarteirões daqui há um museu com o nome de Nosso Senhor do Sótão. Naquela época, tinham colocado as catacumbas nos sótãos. Era de se esperar, aqui os subterrâneos são inundados. Mas, sossegue, hoje o Senhor deles não está mais no sótão, nem no porão. No íntimo de seus corações, eles o empoleiraram num Tribunal e o agridem, sobretudo julgam, julgam em seu nome. Ele dizia docemente à pecadora: ‘Eu também, eu também não te condeno!’, o que nada impede, eles condenam, não absolvem ninguém. Em nome do Senhor, esta é a tua pena. Senhor? Ele não pedia tanto, meu amigo. Ele queria que o amassem, nada mais. É bem verdade que há pessoas, mesmo entre os cristãos, que o amam. Mas são muito poucos. Ele havia previsto isso, aliás, tinha senso de humor. Pedro, como sabe, o covarde, Pedro, portanto, o renega: ‘Não conheço este homem... Não sei o que queres dizer...’ etc. Realmente, ele exagerava! E fez um jogo de palavras: ‘Sobre esta pedra edificarei minha Igreja.’ Não se podia levar mais longe a ironia, não acha? Mas não, eles ainda triunfam! ‘Como vocês vêem, Ele tinha dito!’ Ele tinha dito, de fato, ele conhecia bem a questão. E, a seguir, partiu para sempre, deixando-os julgar e condenar, com o perdão nos lábios e a sentença no coração.

Porque não se pode dizer que não há mais piedade, não, protesto com veemência, não cessamos de falar nela. Simplesmente, já não se absolve ninguém. Sobre a inocência morta, pululam os juízes, os juízes de todas as raças, os de Cristo e os do Anticristo, que são, aliás, os mesmos, reconciliados no desconforto. Isto porque não devemos atacar apenas os cristãos. Os outros também estão comprometidos. Sabe em que se transformou, nesta cidade, uma das casas que abrigou Descartes? Em asilo de alienados. Sim, é o delírio geral e a perseguição. Nós também, naturalmente, somos forçados a nos envolver. O senhor teve ocasião de notar que eu não poupo nada e, do seu lado, sei que pensa o mesmo. A partir daí, uma vez que somos todos juízes, somos todos culpados uns perante os outros, todos cristãos à nossa maneira vil, crucificados um por um, e sempre sem saber. Poderíamos sê-lo pelo menos, se eu, Clamence, não tivesse encontrado a saída, a única solução, a verdade, enfim...”

Albert Camus, A Queda.

Um comentário:

Dodô Fonseca disse...

Camus, Albert. A Queda; tradução de Valerie Rumjanek. - 10ªEdição - Rio de Janeiro: Record, 1997. Pp. 85-88.