segunda-feira, 22 de março de 2010

Um Cochilo Acordado ou Romantismo Tardio

Existe uma cadeira de balanço no meu quarto. Ela é cor de vinho tinto. Fica próxima a janela que quase sempre está fechada. Ao redor, dois ou três livros. Minha cama do lado oposto a janela. Uma geladeira branca na frente. Quase nada me desvia a atenção. O chão às vezes fica sujo, empoeirado. Eu gosto. A música que vem da sala está em baixo volume. Um acorde de violino acompanhado do piano. Nick Cave e Warren Ellis. Deixo-me pender para trás e observo o teto. Penso que poderia estar num lugar longínquo nesse momento. Talvez em Ashgabat. Tenho às mãos um conto de Górki. “Ah! Viver sem que nada mude à volta da gente, que tormento amargo! Se uma tal monotonia não chega a matar a alma humana, que vida dolorosa ela lhe reserva." Novamente penso no vasto mundo. Decido que preciso fazer uma viagem.

Ponho-me a organizar uma empreitada turística. Caneta e papel. Dinheiro emprestado ao banco. Vou vender o fusca 78. Talvez retire o dinheiro das passagens e sobre alguma coisa. Não, só vou vendê-lo quando estiver com a data da viagem marcada. Tudo bem, ele me renderá quase três mil reais. Acredito que com dez mil reais posso passar dois meses em algum lugar como estudante. Sem luxo. Destino? Acho que deve ser São Petersburgo. Sim, não resta dúvidas. Estou pesquisando sobre esta cidade e já me sinto íntimo dela. Lá estou eu. Numa peliça espessa, exposto aos maus tratos do vento cortante de novembro. A observar dois homens no canal de Fontanka. Talvez seja apenas o Goliádkin. Mas, estando cá em Petersburgo, por que não visitar a antiga Courlândia. As noites brancas em Múrmansk. Descer para Novgorod. Se estou em Novgorod, atravesso o Lago Ilmen e vou para Staraia Russa, onde Dostoiévski se inspirou para escrever a saga dos Karamazov. Ah, e quantas aldeiazinhas estarão pelo caminho, jardins de cerejeira, bosques infinitos. Na porteira de uma grande propriedade eu vejo Catarina Tcherbatskaia passeando com seu pequeno rebento. Não me atrevo a interromper seu passo. Sou como o fantasma do Hermitage, apenas observo e teço comentários. Breves. Não quero tomar vosso tempo com divagações. Mas, estando já em Dorovoie, faltam cem quilômetros pra Moscou! Sim, preciso visitar todos esses lugares. Terei dois meses para tal e pouco dinheiro. A viagem para a Rússia é fundamental. Dois meses me fariam avançar imensamente em meus estudos da língua.

Levanto a cabeça. Olho ao redor, um camundongo na jaula. Percebo que é inútil. Abandono as contas. Acho os sonhos ridículos. Lembro-me da frase de Górki. A Rússia que me cativa não existe há cem anos. Anna Akhmátova passou a vida travando esse duelo moral com sua identidade nacional. A poetisa recebe visitas em Tsarskoie Seló. Não sou eu um daqueles jovens estudantes? A velha escritora se aproxima, sua franja na testa, seus olhos semicerrados. Um beijo de despedida, único, inesquecível. Alguma coisa nasce do silêncio. Abro a janela, a rua está calada como acontece em todas as noites de segunda. Sento-me na cadeira de balanço cor de vinho tinto. A cabeça está cansada. Um emaranhado de imagens. Adormeço. Não desejo sonhar. Mas, como controlar esse desejo involuntário? No sonho, nem nós mesmos somos capazes de nos encontrar. De alguma forma, tudo está mudado.

Um comentário:

Luciana Cavalcanti disse...

Sempre palavras bem-vindas! Românticas ou não...! Belo texto, Dodô!

xeros! TiaLú