quarta-feira, 3 de março de 2010

A Tamarineira


Quando trabalhava na zona norte do Recife presenciei, no ônibus, uma cena vulgar que hoje volta à minha memória. Um garoto moreno que aparentava uns oito ou nove anos, virou-se para a mãe, uma senhora corpulenta, vestida humildemente, com uma saia verde que circundava seu corpo abundante, e perguntou-a: "Mamãe, o que é esse parque?". O menino fincou os olhos curiosos na mãe que, sem muito preâmbulo, respondeu: "Isso é um hospital pra doido." Aaaaah! Respondemos todos.

Cada dia que passa, a televisão é um objeto mais inútil. Ao menos para mim! Ainda assisto os jogos do Náutico quando tem, fora esta condição, nada é digno de atenção. Mas hoje, enquanto jantava, minutos atrás de estar aqui perante esta tela reluzente, dei-me o dissabor de assistir o NETV, programa com notícias locais. O assunto do dia foi uma reunião entre o Bispo de Recife e Olinda, num-sei-o-quê tamarindo, e mais quatorze deputados estaduais. Homens cheios de papada, bigodes senhoriais, paletós desalinhados, passando a língua entre os dentes para retirar um pedaço de carne guizada que restou do almoço. Esses senhores respeitabilíssimos foram ouvir e assistir a apresentação do projeto de uma empresa carioca que vai desativar o Hospital Ulysses Pernambucano para doentes com problemas mentais e construir o quê... um shopping!! U-huuu!!! Mais McDonald´s, mais lojas de games, cinema, lazer para toda a família. Recife, com os incentivos do PAC e a atuação do capital privado está deixando de ser a cidade dos caranguejos, da fedentina, dos mau educados que jogam lixo pela janela dos coletivos, e se tornando uma metrópole de respeito internacional, quiçá!

Sempre tive vontade de me mudar de Recife. Apesar de ter vários motivos para gostar da cidade (e os tenho!), uma característica genuína da manguecéia é o calor e a umidade. Todos os dias do ano, o calor é estável e impávido. O calor me irrita, fico completamente suado cinco minutos após tomar um banho. Recife é uma cidade que possui trechos que estão abaixo do nível do mar, além de possuir as áreas de beira-mar completamente tomada de prédios altos, o que faz com que o vento suba e passe por cima da cidade, onde os moradores do subúrbio ficam como grãos de arroz que sobram na base de um prato fundo. As áreas de vegetação preservada são escassas, os parques são poucos e a especulação mobiliária com suas "armas verdes" sempre vencem a resistência moral dos nossos legisladores. Agora, o Parque da Tamarineira e o Hospital Ulysses Pernambucano darão lugar à égide maioral da cultura moderna, o deus-shopping!

Infelizmente, não posso falar muito pelos doentes que eram tratados no hospital, pois nunca tive a oportunidade de entrar no recinto. Mas, ao que me consta, era o local menos desumano (como assim "desumano"? O que há de mais perverso e doentio é o mais humano) para o tratamento de doentes mentais. Recordo-me que os médicos e diretores do Hospital realizam shows de rock, amostras de arte, para reintegrar esses homens desafortunados à sociedade. Sem contar que o Hospital fica numa das mais importantes e movimentadas avenidas da cidade, a Conselheiro Rosa e Silva. Os "normais" estão sempre em contato com os "doentes", fazendo-nos lembrar de sua condição, da linha tênue que separa o racional do bestial. Mas agora, vamos substitui-los! Vamos colocar a sujeira pra baixo do tapete, arranjar um local distante, de preferência cheio de concreto, pois nós o amamos. Esconder o hospital psiquiátrico. Substituir a doença involuntária pela neurose das maquiagens, calças acochadas, bundinhas empinadas. Eu adoro! A chacoalhar! A chacoalhar! A chacoalhar! Cabrum!!

Um comentário:

JOSÉ RAFAEL MONTEIRO PESSOA disse...

A realidade da Tamarineira, tanto hospital quanto o futuro (futuro???????), é bem mais densa do que podemos imaginar meu amigo. Mas, muito barulho nunca é por nada.