segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Notas Sobre o Natal - Lourival Holanda

Amigos do Blog, deixar-vos-ei com um texto que saiu no Jornal do Commercio este fim de semana escrito pelo Prof. Lourival Holanda, do departamento de Letras da UFPE. Lourival dispensa maiores apresentações. Antes de mais nada, devo dizer que o texto recebeu a devida autorização do mestre para que estivesse aqui no Blog.



Notas sobre o Natal

Estamos sob a pressão do presente, do imediato. No entanto, há pouco tempo, ainda o período que precedia o Natal chamava-se Advento (o que deve vir) : preparava-se uma espera. A velocidade vertiginosa das mudanças, varreu a expectação; ficou só o espetáculo do Natal. O Cristo, convidado em função qual se fazia a festa, fica esquecido no barulho das preparações. Um aniversário com a casa cheia, os convivas invadindo todos os espaços, expondo modas endomingadas – que ninguém compromete com abraços ou amassos muito fortes; os contatos são de convenção; os beijos, os apertos de mão, desses sociais que apenas afloram a superfície do outro.

No entanto, Natal terminava com a Epifania – quando algo se manifesta, uma presença perturba o ritmo do mundo e o acorda da letargia com que o cotidiano ameaça o verdor da vida. O movimento frenético do ano leva cada qual a se proteger; e findamos mais individuais e cansados no final do ano. E vem a festa, como compensação. Mas, quem, de fato encontramos? Quem é ainda para nós um encontro epifánico – em encontrão, a partir do qual renasce em nós a vida, quem? Um encontro assim padece de longa espera; travessia de deserto, com os Reis Magos míticos e elucidadores. (Aliás, o Natal já foi festejados no dia 6 de Janeiro, na festa da Epifania).

Não digo há que um excesso de luz na feeria das festas, das praças que a Prefeitura enfeita para o Natal. O público se sente mais convidado ainda, nesse tempo de luz. E, no entanto, cada um carece também de certa penumbra, no espaço interior, que facilite o encontro consigo mesmo. Essa, talvez seja uma dimensão em desaparecimento, no mundo contemporâneo – e não é menos importante que o desaparecimento do mico-leão-dourado. Porque era uma das dimensões que nos definiam. Do Homo Sapiens ao Homo Quaerens: aquele que busca, aquele que deseja algo para além de si mesmo; o que deseja o futuro. Mas o futuro perdeu a credibilidade. Basta ver esse Natal com o frio desencantamento de Copenhagen; ali, o lugar de um medo – traduzido em indiferença – abortou o compromisso real com o futuro. É simbólico demais que isso se passe no Natal. Sinal dos tempos, desses tristes tempos – quando já não pensamos com o olho nas gerações futuras, porque as negociatas fazem pender para o lucro imediato os interesses reais.

Na raiz do Natal sempre houve um desejo de renovação. (Antes, essa renovação ia além da do guarda-roupa...). Há quem diga Natal vindo da novidade, na quebra do cotidiano com o anúncio do novo – a novella, desde a Idade Média. Outra origem possível: o natalis dies – a palavra teria ido se transformando e reduzindo até a forma atual: Natal. Com menos ou mais fantasia etimológica, há quem veja a origem na palavra do gaulês Noio Hel – novo sol. Sempre esse apoio na renovação efetiva.

Mas nossas renovações se fazem como as do asfalto: sobre o chão comido das rodagens semi-abandonadas, o zelo político passa uma camada fina de piche; isso basta a contentar o olho do passante apressado. Natal é assim também. Uma espiritualidade festiva, de circunstância. E esconda-se a dureza do dia-a-dia, a violência, o desprezo. Ponha-se a cordialidade à mesa. (Debaixo da mesa, sob o tapete, nossos pequenos rancores se destilam em silêncio; nossas covardias esperam; agora é uma hora de festa, hora anestesiante). Natal era tempo de reconciliação. Com o mundo e consigo mesmo. Mas essa reconciliação só se dá no silêncio, na penumbra. Não temos tempo.

As três religiões ditas do Livro (Judaismo, Islamismo, Cristianismo) sempre celebraram o momento inaugural de um silêncio. Carregaram a marca de um deserto – com o que há de fecundo nessa espera. O poeta Carlos Pena, filho amoroso dessa Recife mais madrasta que mãe de seus melhores poetas, em dado momento anuncia sinal desse silêncio:

-- Sino, claro sino,

tocas para quem?

-- Para o Deus menino

que de longe vem.

-- Pois se o encontrares

traze-o ao meu amor.

-- E o que lhe ofereces,

velho pecador?

-- Minha fé cansada,

meu vinho, meu pão,

meu silêncio limpo,

minha solidão.

O Natal, como coroamento do ano, era um momento de encruzilhada, decisivo, redefinidor. Lugar de reconciliação de si. Reconciliação com as razões de vida – norteadoras. Mas, hoje, é como se rodopiássemos entorno do mesmo círculo; dança de dervixes descrentes. Cumprimos um ritmo empurrados pelo calendário como um movimento cego. E chamamos festa à balbúrdia conjunta.

Importa menos a origem de Papai Noel, se seu mito agregou alegria ao longo de tantas infâncias. São Nicolau, de origem turca, se difundiu, correu mundo, atravessou os trópicos. Como o Orkut: à medida que avança seu efeito, perde-se seu “começo” – quem lembra daquele rapaz que criou a rede que tomou seu nome ... e despersonalizou o dono? Agora famoso e anônimo? Ele, Orkut, esteve em São Paulo. Porque lembro isso? Primeiro, porque há uma coincidência engraçada: ambos são turcos; segundo, o Cristo do Natal, sobretudo nesses tempos nossos, de pessoa, passou a instituição, de instituição a mito, e no mito desfez-se da força de presença real.

Natal é hoje uma emoção epidérmica. Apenas. A beleza das praças iluminadas talvez nos comova ainda. Mas, o que nos comove difere daquilo que nos move. Se o Natal fosse, de fato, renovação de um amor mobilizante, isso seria mesmo epifânico. Encontro alguém que me faz recarregar as reservas de afeto: eis um natal. O que há de cristão nisso? Tudo o que nos retira da sensação mediana do viver, ah, já vale. Tudo o que é busca da alegria tônica do viver, vale ser celebrado. Uma forma de o natal ser lembrado. Se o Natal, de fato, for ainda a renovação do melhor em nós, ah, então nem tudo está perdido.

Se houver um espírito de Natal, confundido com a concessão fácil de rede e rebanho, esse espírito não deveria dispensar a atenção. Às vezes na noite, em boîte ou missa de meia noite, uma presença passa – como uma aurora boreal, surpreendente e natural. Mas nossa desatenção perde, no entanto, o que seria um novo norteio de vida. Um natal, todo possível, virtual, ali. Aquela seria uma hora-natal. Hora de renascimento da alegria num encontro. Como poderia ser ímpio que Deus tomasse a forma de um amor, se o Amor tomou a de um Deus? Todo o que faz nascer em nós amor é divino. Mas, pena: no mais das vezes, o excesso de solicitações aborta em nós a plenitude de um encontro real. O que fica, num Natal esvaziado de seu sentido profundo é essa insatisfação que nenhuma festa supre. E quando já nem mais o desejo do poeta Bandeira basta, Pasárgada vai ser revisitada pelo poeta contemporâneo – Hagner Hyngner – como desejo de outra coisa, outro lugar. Talvez na secreta esperança de que, lá, ao menos, algo de novo nasça – e plenifique e cumpra a espera. Ouçamos o poeta:

Vou-me embora pra... só Deus sabe onde.

Aqui não tenho amigo nem rei , Nem a mulher que quero

Na cama que me deitei

Vou-me embora pra... só Deus sabe onde

Vou-me embora pra... só Deus sabe onde

Aqui eu não sou feliz , onde eu moro a existência é uma falácia

de todos os modos inconsequentes que qualquer garçonete, rainha ou demente

Pode ser até parente dos filhos que já tive

O que eu queria era um carro ao invés de uma bicicleta

queria uma rede, ao invés de tanto trabalho

mas, só me sobrou o mar

E depois de tanto cansaço sento na mesa de um bar mando chamar Irene pra me contar umas histórias

Que no tempo de menino Neide não teve tempo de contar.

O poeta atual, ainda que muito moço, parece envelhecer de desesperança, mas salta adiante levado pela espera. Não saber aonde vai, não saber o que vai encontrar, tudo isso é um risco. Mas o novo só se dá sob essa condição. A conformação é o mofo social; a poesia, seu antídoto. Por isso, ele prossegue:

Tem prostitutas bonitas

Ah, como tem... Pra gente se endividar

É assim que ando, triste, que triste assim não tem jeito

E de noite me dá vontade de matar -

Aqui não tenho amigo nem rei -

Aí sim, terei a mulher que quero

pra cama que me deitei

Vou-me embora pra... só Deus sabe onde

Peraí... E tem Deus?

O poeta pergunta se há Deus – mas, e se Deus mesmo já começar a se desenhar nessa forma interrogante?

Um comentário:

Alisson da Hora disse...

Se não me engano, as Ortodoxas ainda comemoram as festas do Advento e a Epifania.