domingo, 20 de dezembro de 2009

Constantin Liêvin

Constantin Liêvin

Autor: Odomiro B. Fonseca Filho

O romance Anna Karenina narra a história de uma mulher que venceu os preconceitos sociais para viver um amor. O que constituía um escândalo, tendo em vista o abandono de seu esposo, um homem da alta nobreza petersburguesa. O romance vai detalhando os meandros dessa nobreza russa citadina: os bailes, os costumes, os chás da tarde, a fofoca dos grandes salões, as preocupações e namoricos que se desenrolam com a trama. Mas, um personagem parece se afastar de todas essas relações “fúteis” (assim Liêvin julgava a vida citadina). Constantin Liêvin era defensor de uma nobreza tradicional russa, de raiz agrária, latifundiária, que exercia um papel moral na formação do povo russo.

Liêvin viaja para Moscou na tentativa de se casar com Kitty, uma moça da alta nobreza, de beleza e educação refinadas. É nesse momento que ocorre a grande epifania de Liêvin. Ao ser rejeitado na primeira proposta pela moça, resolve voltar para a aldeia, triste com o excessivo barulho da cidade, as opiniões furtivas: “deixou de querer ser outro que não ele próprio e apenas desejou ser melhor do que fora até ali.” (TOLSTOI, 1971; 95) Então, Liêvin vai se dedicar ao bom aproveitamento da sua propriedade, para honrar a tradição de sua família e vai construir uma série de discursos morais em que os pomechtchiki (latifundiário nobre) deveriam se incluir.

Na Poética do Espaço, Gastón Bachelard vai estabelecer uma série de análises sobre a relação do homem com a casa, enquanto espaço físico e os seus significados semânticos. Bachelard vai dizer que a casa é o local do ser que se defende, onde cria raízes e identidades. “O espaço habitado transcende o espaço geométrico.” (BACHELARD, 2008; 62) O cosmos transforma o homem em representante de sua localidade, é o homem do rio, das colinas, da ilha, da cidade. A casa remodela o homem. A volta para casa de Liêvin após um período de infortúnio na cidade, vai aumentar sua relação de intimidade com a casa da família, com a propriedade herdada. A solidão que faz pensar, que nos lembra Octavio Paz na Dialética da Solidão. O homem solitário é aquele que pensa, inclusive no sentido de pesar, a sociedade, que fornece um novo olhar sobre o que está fora do lugar. Assim, Liêvin passará a observar os desacertos em sua propriedade, nas relações com os vizinhos e desta força criativa que é a solidão, virá a execução de suas obras que vão coincidir com a chegada do verão.

A casa é um espaço de simplicidade e, como diz Bachelard, esse conforto da simplicidade gera a sensação de segurança. Reparemos na descrição de Tolstoi sobre a casa de Liêvin e sua relação com a tradição familiar:

“A casa era grande e antiga e, ainda que Liêvin vivesse só, ocupava-a inteiramente e aquecia- de ponta a ponta. Sabia que aquela vida era absurda, contrária aos seus novos planos e inclusive que não estava certa, mas aquela casa representava todo um mundo para ele; o mundo onde tinham vivido e morrido seus pais. Ali haviam levado uma existência que se lhe afigurava ideal e era com isso mesmo que ele sonhava: voltar a viver com a mulher essa mesma vida ideal.” (TOLSTOI, 1971; 97)

Para Liêvin, o casamento constituía-se como a ato mais nobre da existência. Portanto, a rejeição de Kitty causou um abalo extremo em seu planejamento de vida. A partir de então, o tempo em sua casa será todo direcionado para a chegada do verão e, consigo todo o trabalho que traz em seu bojo. A presença do trabalho no campo é bem realista e se comunica com as novas técnicas empregadas no século XIX. Durante o inverno, Liêvin vai se dedicar aos estudos de economia rural, visando atingir uma boa produtividade quando da chegada do verão, após o derretimento da neve espessa. Enquanto o verão não chegava ia estabelecendo relações mais próximas com os mujiques, passa a freqüentar a realidade deles, vai fazer longas caminhadas pela propriedade e entrará em contato com a realidade do campo que aparecerá de forma diversa aos seus olhos.

Na primavera, com o derretimento do gelo, é chegado o tempo de ceifar o mato. Um trabalho inglório para um pomechtchik que possuía tantos mujiques pra fazê-lo. Mas, Liêvin faz questão de se misturar aos camponeses e ser um deles. Para Liêvin, a aldeia era o local onde se vivia, se gozava, se sofria e se trabalhava. (idem; 227) Sua relação com os mujiques ganhou ares de irmandade. Vejamos:

“E cada vez se repetiam mais amiúde aqueles momentos em que lhe era possível não pensar no que estava a fazer. A gadanha ceifava por si. Momentos felizes esses. E mais feliz ainda aqueles em que, ao aproximar-se do rio até onde chegavam os regos, o velho limpava a gadanha com a erva úmida, passava a folha de aço na água fresca do rio e, enchendo o cantil, oferecia-o a Liêvin e dizia-lhe, com um momo trocista: _ Quer beber um trago do meu kvas[1]? É bom, não é?

E, efetivamente, Liêvin nunca bebera nada que se parecesse com aquela água morna onde flutuavam ervas e que sabia a ferro oxidado.” (idem; 240-241)

Essa aproximação de Liêvin junto aos camponeses vai de encontro ao que as relações capitalistas sugerem, onde a figura do patrão adquire ares de superioridade super-humanos. Ainda mais numa Rússia que fazia questão de ressaltar as diferenças entre as quatorze classes sociais existentes em meados do século XIX. Raymond Williams vai desanuviar esse cenário:

“Não só a terra mas também as pessoas eram consideradas propriedade; a maioria dos homens via-se reduzida à condição de bestas de carga, presos pelos tributos, pelo trabalho forçado, ou então ‘comprados e vendidos como animais’; ‘protegidos’ pela lei e pelos costumes apenas no sentido em que os animais e os rios são protegidos, para gerar mais trabalho, mais alimentos, mais sangue; uma economia voltada, em todas as suas relações de trabalho, para uma dominação física e econômica de caráter totalizante.” (WILLIAMS, 1989; 59)

Liêvin consegue romper com essa tendência à medida que se aproxima do cotidiano dos camponeses e, passa a enxergar outra perspectiva de vida, mais simples, em oposição ao freneticismo da grande cidade. Ao final do dia de trabalho, ao invés de regressar pra grande e confortável residência, Liêvin quis ficar com os camponeses e compartilhar de suas experiências:

“_Patrão, quer provar da minha tiurka[2]? . Perguntou ele, pondo-se diante da tigela.

A tiurka estava tão boa que Liêvin desistiu de ir a casa comer. Comeu com o velho, e enquanto comia aquele repasto frugal deixou que o velho lhe contasse coisas da sua vida, que muito o interessavam, falando-lhe, por sua vez, de alguns de seus projetos, que esperava despertassem a curiosidade do bom mujique. Sentia-se mais perto dele do que do irmão e sem querer sorria de afeto por aquele homem.” (TOLSTOI, 1971; 242)

Encontramos um certo bucolismo em Liêvin, na medida em que este sai da cidade e se refugia no campo. Uma idealização da natureza, do camponês. Mas, ao segundo olhar, vemos que sua relação não se dá de forma inocente. Seus estudos de economia rural visavam melhorar a produção da fazenda. Liêvin não esconde as dificuldades e vícios da vida do campo. Ele mescla uma perspectiva pré-capitalista herdada da tradição familiar com as novas técnicas de produção apreendidas nos estudos de economia rural. Sobre a visão pré-capitalista convém-nos remeter a Schiller e sua Poética da Autenticidade, quando este dizia que os pré-capitalistas tinham uma visão mais autêntica da natureza, porque era intuitiva, não alienada. (GARRARD, 2006; 70)

Raymond Williams vai traçar um perfil do proprietário de terras e de sua responsabilidade com os que o rodeiam, desde a família e os camponeses, até a natureza: “O homem não é dono da terra e não está autorizado a fazer com ela o que bem quiser. Ao contrário, deve tratá-la como um administrador responsável para o seu próprio bem e para o bem de outras espécies que também tem direito à vida.” (idem; 71)

Liêvin vai levantar diversas críticas aos outros proprietários de terras russos, relembrando suas obrigações enquanto administradores e até rememorando suas obrigações cívicas para com a posição social que ocupam. Nesse caso, ele também vai revelar um preconceito imbricado da sociedade russa do século XIX, quanto à posição social ocupada por cada membro:

“Podes tratar-me de retrógrado ou de qualquer outro nome tão ridículo como esse; mas não posso deixar de deplorar o empobrecimento geral desta nobreza, à qual, apesar da fusão das classes, eu me sinto feliz de pertencer. Ainda se se tratasse de uma conseqüência das nossas prodigalidades, estava certo: levar uma vida larga é privilégio dos nobres e só eles o sabem fazer. Não me dá engulhos ver os camponeses comprarem as nossas terras. Como o proprietário não faz nada, o camponês, que trabalha, toma o lugar dos ociosos. Está na ordem natural das coisas, e acho que deve ser assim. Mas, o que me vexa é verificar que a nossa nobreza se está deixando despojar por... como é que hei de dizer?... sim, é isso mesmo, por inocência! Aqui é um lavrador polaco que compra pela metade do preço, a uma dama que vive em Nice, uma propriedade magnífica. Acolá é um negociante que arrenda por 1 rublo a diessiátina que vale dez. Hoje és tu que, sem mais nem menos, dás de presente a esse malandro trezentos mil rublos.” (TOLSTOI, 1971; 165)

Em seus discursos, Liêvin demonstrava um interesse comum e uma preocupação nacional pelo desuso da terra, pelo abandono da economia rural em detrimento dos novos fomentos da cidade. De certa maneira, sua revolta é compreensível. A economia agrícola foi o sustento da Rússia até a virada para o século XX. Liêvin estava disposto a iniciar, à partir de sua epifania, uma revolução que se alastraria pelos confins da nação-continente:

“Vale a pena o esforço. Não é interesse pessoal meu, trata-se do bem comum. A economia agrícola e sobretudo a situação do povo devem mudar por completo. Em vez de miséria haverá riqueza e bem-estar geral; em vez de hostilidade, união e interesse comum. Numa palavra: será uma revolução sem sangue, mas uma revolução magna, uma revolução que, irradiando do nosso distrito, se espalhará pela província, por toda a Rússia, pelo mundo inteiro. Uma idéia justa não pode ser estéril. Por um objetivo tão grandioso valem a pena todos os esforços. Ora, que o autor desta revolução seja este pateta do Constantin Liêvin, habituado a ir ao baile de gravata preta e a quem a Princesa Tcherbatskaia negou a mão, isso não tem importância absolutamente nenhuma. Estou convencido de que Franklin, quando se dava a examinar-se a si próprio, também não confiava em si e não se julgava melhor do que eu me julgo.” (idem; 322)

Liêvin como um típico russo dos meados do século XIX, era um homem confundido pela tradição pré-capitalista e os fenômenos da modernidade que afloravam. A revolta de Liêvin contra o mau uso da terra por parte dos pomechtchiki nos faz lembrar Thomas Morus na Utopia, quando este vai criticar o desuso da terra por parte dos zangões latifundiários. O discurso de Liêvin fica num meio do caminho os ideais de comunidade (gemeinschaft) e sociedade (gesselschaft). Onde a primeira carregaria os ideais do período pré-capitalista, a Kultur, a aldeia; enquanto a segunda representaria a cidade e a Zivilisation.



[1] Kvas é uma bebida fermentada muito popular russa, apreciada pelos mujiques.

[2] Pão e cebola misturados com bebida fermentada.

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