segunda-feira, 26 de julho de 2010

A Rússia de Dostoiévski *

*Artigo escrito por mim, Odomiro Fonseca, para uma disciplina do mestrado no início de 2009.


Homem do seu tempo, Dostoievski não fugiu do embate político com seus adversários contemporâneos naquilo que mais o importava, o destino que a Rússia designaria no papel de guiar a Humanidade. Enquanto toda a Europa desavergonhadamente subestimava aquela nação saída da barbárie, que carregava orgulhosamente os ideais que os países da Europa ocidental enxotavam como o tsarismo, a ortodoxia, o nacionalismo, o anti-liberalismo, Dostoievski ia se abastecer de todo este arsenal reacionário para disparar em suas obras seu ódio à cultura européia, à religião romana e à modernidade.

Em O Diário de um Escritor, Dostoievski vai relatar, quase jornalisticamente, sua percepção sobre uma Rússia que se expandia contraditoriamente, ora para a sua face ocidental, ora para sua face asiática. No Diário, Dostoievski parece querer esmiuçar toda sua filosofia e psicologia a respeito de sua religiosidade e cravar na terra suas idéias que vacilaram durante a juventude. Tendo sua própria vida como testemunha, Dostoievski vai afirmar que a salvação do homem e o sentido para a própria vida se encontram na crença inabalável na existência do espírito e na fé do evangelho. Assim como aconteceu consigo próprio, o homem deveria passar por uma transformação, passando de pecador a homem salvo pela graça. Essa transformação seria nacional e internacional. A Rússia haveria de se transformar e retomar sua tradição religiosa ortodoxa e servir de espelho convexo para toda a Europa, e posteriormente, todo o mundo.

O Diário de um Escritor foi escrito enquanto Dostoievski colhia fontes para o seu derradeiro romance, Os Irmãos Karamazov, terminado semanas antes de sua morte. Nesse último romance, Dostoievski vai lapidar seus personagens na tentativa de atribuir um sentido para a Rússia e para a humanidade, sendo o jovem Alexei Karamazov, o exemplo a ser seguido, e o starets Zóssima, seu filósofo da nova era. Alexei, esse homem novo, transformado, brando, capaz de amar e de profunda religiosidade, será o personagem que restará desta teodicéia/antropodicéia em que os répteis se devoram mutuamente. Nas páginas do Diário, Dostoievski, mais político do que nunca, vai lançar seu grito de ódio à cultura européia, vai defender a tradição russa iniciada com Pushkin e expressará abertamente sua visão reacionária de abarcar o mundo nos braços da igreja ortodoxa. Vejamos o que diz no discurso em homenagem a Pushkin:

“Qual o significado para nós da reforma de Pedro, O Grande? Constituiu somente em introduzir entre nós os costumes europeus, a ciência e as invenções? Reflitamos um pouco a respeito. Talvez Pedro, O Grande, o empreendesse, a princípio, somente com um fito inteiramente utilitário; mais tarde, porém, obedeceu com toda certeza a misterioso sentimento que o arrastava a preparar à Rússia imenso futuro. O próprio povo russo somente viu nele, a princípio, o progresso material utilitário, mas não tardou em compreender que o esforço que o obrigavam a compreender devia conduzi-lo mais longe e mais alto. Elevemo-nos para logo à concepção da universal unificação humana. De fato: o destino do russo é pan-europeu e universal. Chegar a ser russo verdadeiro signifique tão-somente ser irmão de todos os homens, homem universal, se assim posso me exprimir. A divisão entre eslavófilos e ocidentais nada mais é do que o resultado de gigantesco mal-entendido. O russo verdadeiro interessa-se tanto pelo destino da Europa, pelo destino de toda a grande raça ariana como pelo da Rússia. Quem quiser aprofundar a história da Rússia, desde Pedro, O Grande, verá que isso não é simples sonho meu. Ficará comprovado o nosso desejo, o desejo de todos, de união com todas as raças européias no caráter de nossas relações com elas, no caráter de nossa política de Estado. O que tem feito a Rússia durante dois séculos senão servir mais à Europa do que a si mesma? E tal não se poderia atribuir a ignorância dos nossos políticos. Os povos da Europa ignoram até que ponto os amamos. Todos os russos do futuro verão que mostrar-se verdadeiramente russo se importa em procurar um terreno de conciliação para todas as contradições européias; e a alma russa o proporcionará, a alma russa universalmente unificadora que pode englobar no mesmo amor todos os povos, nossos irmão e pronunciar, afinal, as palavras das quais resultará a união de todos os homens segundo o evangelho de Cristo. Sei perfeitamente que minhas palavras podem parecer eivadas de exagero e fantasia. Seja; mas não me arrependo de tê-las pronunciado. Tinha de pronunciá-las, sobretudo no momento em que honramos o nosso grande gênio russo, o que soube salientar da melhor maneira a idéia que as ditou.”[1]

Quando Dostoievski fala em abarcar “toda a grande raça ariana” não o diz com o significado preconceituoso que viria a rotular o pensamento fascista, até porque o próprio homenageado do discurso, Pushkin, era descendente de africano (Etíope) e não era, portanto, ariano.

A raiz do pensamento do Dostoievski amadurecido está alicerçada profundamente no pensamento religioso e na crença da imortalidade da alma, sem a qual seria simplesmente impossível tolerar a vida e sustentar o amor à Humanidade. Dois dos mais interessantes personagens de Dostoievski: Ippolit, de O Idiota; e Kirilov, de Os Demônios, vão justificar o suicídio, porque “o homem é o senhor do próprio destino.”[2] Dostoievski cria o suicídio lógico, onde o homem se torna Deus e assume o controle do seu futuro. Esses demônios revolucionários seriam os comandantes de uma nova era: “quando a noite caísse sobre a Rússia e a terra chorasse por seus antigos deuses.”:[3]

Em resumo: está claro que sem crenças, o suicídio se torna lógico e até inevitável para o homem que apenas se elevou acima das sensações da besta. Ao contrário, a idéia da imortalidade, prometendo a vida eterna, sujeita o homem mais fortemente à Terra. Nisto parece existir contradição. Se, distinta da vida terrestre, temos outra celeste, para que fazer muito caso desta aqui embaixo? Mas é somente pela fé na imortalidade que o homem se inicia no fim razoável da vida sobre a Terra. Sem a convicção na imortalidade da alma, o vínculo do homem em relação ao planeta diminui, e a perda do sentido supremo da vida conduz incontestavelmente ao suicídio. E se a crença na imortalidade da alma é tão necessária à vida humana é por ser o estado normal da Humanidade, provando que a imortalidade existe. Em uma palavra: esta crença é a própria vida e a primeira fonte de verdade e de consciência geral para a Humanidade.

Eis o objetivo do meu artigo, eis a conclusão a que desejava que cada um chegasse quando o escrevi.”[4]

A metamorfose do homem pecador em homem salvo pelas palavras do Cristo é um conceito muito presente na obra de Dostoievski, onde o Diário de um Escritor e Os Irmãos Karamazov parecem se completar, onde o primeiro é a explicação da obra de arte que vem em seguida. As resignações de Dimitri Karamazov, e de Raskolnikov também, constituem a mudança de uma nação, que substituirá a paixão pelo jogo, pelo álcool e pela libertinagem, por uma nova vida numa terra distante, a Sibéria, onde a terra será lavrada pelas lágrimas arrependidas e consoladas pela fé conquistada e inabalada. O Homem Ridículo também se encontra no Diário e também passa pelo batizado da fé e pela crença repentina, que acontece num momento de alucinação, num sonho ou numa crise epiléptica. Na sociedade russa, e também nas grandes cidades de todo o mundo, o paradoxo do desejo humano pela compreensão de alguma verdade produz os antagonismos sociais, onde aos querem tudo é dado o crime e aos que nada querem, é dado o suicídio.

“E, não obstante, todos os homens, desde o sábio até o último dos malfeitores, todos querem o mesmo, procurando-o por meios diferentes... Mas não posso equivocar-me demasiado, porque vi a Verdade, sei que todos os homens podem ser belos e felizes sem deixarem de viver sobre a Terra. (...)

Amai-vos uns aos outros, nada mais. Não seria preciso fazer mais; todo o mundo é capaz de compreender.

Trata-se de verdade antiga, repetida milhões e milhões de vezes, e que, entretanto, não criou raízes em lugar nenhum. É necessário continuar a repeti-la.”[5]

A fé verdadeira, para Dostoievski, passava distante da Santa Sé romana, onde a figura do papa é retratada como sendo o “satanás de tiara”(ZWEIG, 1935: 142-143), e onde o conto de Ivan Karamazov conhecido como O Grande Inquisidor vai romper definitivamente qualquer ligação de sua fé ortodoxa com a fé romana, quando o inquisidor nonagenário diz ao Cristo:

Nós não estamos contigo, mas com o outro, desde oito séculos. Há exatamente oito séculos nós aceitamos dele, o que Tu rejeitaste com indignação: o último dom que ele Te ofereceu, mostrando-Te todos os reinos da Terra; nós aceitamos dele Roma e a espada de César, nos declaramos reis terrestres.”[6]

Dostoievski ajoelhava-se perante os ícones da Igreja Ortodoxa e murmurava as rezas redigidas em língua eslava arcaica. Assim como Alioscha Karamazov representava o novo homem russo, missionário, o starets Zóssima era o filósofo do Terceiro Reinado, que pregava a libertação da escravidão do amor-próprio através do amor ao próximo. Ambos os personagens viviam no humilde convento da despercebida cidade de Skotoprigonevsk (Staraya Russa), nos confins da velha Rússia, onde as tradições e os personagens típicos afloravam suas individualidades. Deste cenário rural e atrasado deveria emanar para a humanidade uma nova visão de mundo, uma missão:

“Nossa missão - e os russos começam a ter consciência disto – é grande entre as grandes missões. Deve ser universalmente humana. Deve consagrar-se ao serviço da Humanidade, não só da Rússia, não só do mundo eslavo, do paneslavismo, mas ao serviço da Humanidade inteira. Meditem e convirão em que os eslavófilos assim o reconheceram. Daí nos exortarem a que nos mostremos mais francamente russos, mais escrupulosamente russos, mais conscientes de nossa responsabilidade de russos; visto compreenderem que precisamente a missão característica da Rússia consiste na adoção dos interesses intelectuais de toda a humanidade.”

[7]

O conjunto da obra de Dostoievski não é afetado pelo seu furor religioso nem pelas suas concepções políticas reacionárias. Muitos pensadores subseqüentes, como Nietzsche e Freud, entre tantos outros, declararam a importância deste escritor para a literatura universal e para as ciências humanas, inclusive. Suas declarações são importantes relatos de um homem que viveu e sonhou transformar a realidade de seu país através do que acreditara ser o melhor, verdadeiramente, para seu povo. Dostoievski foi o missionário de uma Rússia que não existe mais, de um sonho ridículo. Espero ter conseguido mostrar como o mito religioso, na última década de sua vida, encontra-se perpetrado em sua literatura, sua relação política face à postura que a literatura russa deveria seguir nos embates com os adversários ocidentalistas. Seus personagens, em suas solidões e acessos de cólera, representam mais do que o simples discurso de si, mas ecoam uma voz nacional, um grito solitário que encontra guarita na universalidade da dor, do desespero e da esperança


[1] (DOSTOIEVSKI, 1967: P. 223-224)

[2] (NOGUEIRA, 1974: 37)

[3] (NOGUEIRA, 1974: 39-41)

[4](DOSTOIEVSKI, 1967 P. 165)

[5] (DOSTOIEVSKI, 1967: 193-194)

[6] (NOGUEIRA, 1974: 125)

[7](DOSTOIEVSKI, 1967: P. 103)

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