terça-feira, 13 de julho de 2010

Uzyna Uzona

Existe dia comum? Eu acho que existe. São aqueles dias em que tudo é planejado: o horário do trabalho, as horas de estudo, o economizar da existência e tantas centenas de possibilidades. Mas, entre os dias comuns, existem dias que fogem um pouco da normalidade: o pneu do carro que fura indo pro trabalho, uma poesia que te joga pra fora da concentração antiga, uma horinha de happy-hour no cotidiano e mais outras tantas probabilidades. Há ainda aquele dia extraordinário, em que tudo fugiu ao controle: um foda-se ao trabalho, o entorpecimento completo pela arte ou o envenenamento dos deuses modernos. Quem foi assistir os quatro dias de encenação das Dionisíacas no matadouro de Peixinhos, certamente não dirá que qualquer uma daquelas noites foi um dia normal em sua vida.

O Teatro Oficina Uzyna Uzona, capitaneado por Zé Celso Martinez, baixou na cidade de Olinda, no Nascedouro (antigo Matadouro Municipal) de Peixinhos e embriagou o público com seu teatro surrealista, erótico e histórico (definições minhas, não sei se os críticos de teatro classificam desta forma...). Sim, histórico! Nos três dias em que freqüentei o espetáculo (não fui na quarta), tive a oportunidade de mergulhar na história do teatro brasileiro na peça sobre Cacilda Becker. A linguagem do teatro não é a mesma do historiador. É uma linguagem destinada à máxima expansão (ao menos no teatro de Zé Celso). A peça de Cacilda havia me chocado, nunca tinha visto nada parecido, nem na duração da peça que foi acabar às duas horas da madrugada, tendo começado às sete da noite. A atriz-principal comandando uma energia de movimentos tresloucados, corpos que se jogam sobre os abismos de nossas idéias. Voltei pra casa cansado, mas certo que no outro dia não haveria de ficar em casa por hipótese alguma. Era o dia das Bacantes de Eurípedes. Um texto de quase três mil anos. O tempo, por si só, já não é fascinante? Levei vinho e outros propulsores de consciência para assistir o espetáculo. Um misto de medo e desejo. Os atores, vez por outra, arrancam pessoas da platéia e inserem no ritual.

“Ele não sabe que o seu dia é hoje. Ele não sabe que o seu dia é hoje. Ele não sabe que o seu dia é hoje. Ele não sabe que o seu dia é hoje...” Repetindo esta frase, ao som de uma percursão alucinante, os atores armaram a cena para o ritual de sangramento do touro. Eu vi. Eu vi três touros sangrarem até a morte. E eles lutaram pela sobrevivência! Na batalha contra os homens e suas armadilhas, a natureza rendeu-se e o sangue fora derramado para o oferecimento aos deuses mais profanos. E quem disse que não estávamos num matadouro público?! As paredes pesadas, azulejos antigos, sangue, choque, nudez e morte. O matadouro de Peixinhos nunca mais será o mesmo. A comunidade compareceu, entre moleques baderneiros que estavam pra ver os corpos nus, haviam os que nunca mais seriam os mesmos. Dona Rosa, uma senhora de cabelos brancos e corpo de beleza bizarra, passou a integrar o espetáculo desde o momento em que sua nudez foi revelada, gerando uma euforia em todos os moradores de Peixinhos. Talvez, secretamente, desejassem aquela nudez para si. Despir-se de toda a censura corporal, num gesto de liberdade acima de tudo.

Peço desculpa por não saber o nome das atrizes. Mas, o corpo em sua liberdade revela mais que o erotismo animal. Em vida, poderei ver corpos femininos tão fascinantes como os de Cacilda e da Pombagira teuto-japonesa? Um sentimento de singeleza e agressividade. Se punham a tremer ardorosamente, para depois revelarem um tímido sorriso quando fora de cena se encontravam... Eu peço que vivam! E que sejam eternos os vossos corpos! A carne foi celebrada. E justo num matadouro!

Diálogos perdidos, visão enegrecida, embriaguez, frases assimiladas, beleza, feiúra, torpeza, sublimidade. Desde sábado queria encontrar algo pra dizer. Pensei em deixar a poeira sentar. Gostaria de ser frio como uma lâmina cabralina. Mas, cá estou, a sentir falta do soco de liberdade, da porrada surrealista. A noite solitária num bairro de subúrbio, silenciosa. A ausência da orgia. Deparo-me com as minhas obrigações mais cacetes, como dizia Graciliano. Bye bye, Brazil! O circo quando passa, arrasta as almas sonhadoras. Nessa noite, desejo sair pelo Brasil atrás desta companhia infernal. Abraçar-me com Pombagira num gozo diabólico e nunca mais voltar à vida.

5 comentários:

aroma, disse...

muito bom o texto!
eu detesto os espetaculos deste ze celso
mas o teu texto ate q deu vontade de ir ver
mas ir ver esta tua interpretação

:D

Eloiza Gurgel disse...

A sua experiência do teatro orgiástico de Zé Celso foi relatada lindamente!
Escrevi sobre o Teatro Oficina em http://memoriasemlugar.blogspot.com
Te convido a dar uma olhada.

HVB disse...

"Não sou tão hippie assim..."
(frase categórica do Botinho ao ser indagado de sua possível ida ao espetáculo.)

Dodô Fonseca disse...

Eloiza, gostei do seu blog e do seu comentário sobre o teatro. Monstro, num é coisa pra hippie não. Tu tás ligado! hehehe! Abraços.

marquinhos disse...

Grande Dodóvski!

ao ler teu texto fui atravessado por um turbilhão de sensações. e a segunda vontade é de expressá-las, depois de querer o abraço e a carne da pombagira - lembro do momento ápice em que cacilda grita: "eu sou a puta que pariu". e, puta que pariu!, que espeáculo tão vivo!
com a vontade de expressar tudo isso que me atravessou, sou remetido a pensar sobre a grandeza e a importância da escrita, da arte de escrever mesmo, de externalizar o que se passa dentro, dedans, inside... o âmago, a amargura e a melancolia são os grandes propulsores da poesia, há quem diga. e também o penso. ademais, a admiração e a estupefação também criam palavras escritas. geralmente as noites de prazer guardam suas palavras e não nos deixam quase nada escrito, apenas "vivido" - quem tá pleno não escreve, uma vez que a escrita é uma busca, né?! então, não sei se o teatro oficina te faz (me faz) escrever por melancolia por ele ter passado, ido, ou se escrevemos pela estupefação... acho que uma mescla de tudo.
a vontade é de resumir tudo em um apenas: "quanta vida! quero viver daquilo!"... na verdade acho que tô vivendo daquilo ainda.. e parece que vou continuar. aquela energia tá sendo renovada em mim a cada descoberta.

esse espaço é meu templo, nosso templo: as palavras (que existem para traduzir o que vem antes, de dentro).
um abraço amigo,
marquinhos.
(www.eucronopios.blogspot.com)