quarta-feira, 19 de maio de 2010

O Mestre de Petersburgo

São 04:25 da manhã. Acabo de terminar o romance O Mestre de Petersburgo de J. M. Coetzee. Li o romance em dois dias. Normalmente, não gosto que seja assim, prefiro saborear a leitura, vagarosamente. Olhando pela janela do ônibus, esqueço os transeuntes e me ponho a pensar nos passos que o personagem dará à noite, nas imagens que minha mente cria. Mas, desta vez, não pode ser assim. Tenho pouco tempo. Confesso que não ter tempo é proveitoso. A necessidade de agir, devorar, colher o maior número de informações, é a condição do momento. A dissertação bate na porta. Mas, não estou aqui pra falar de mim. Quero falar dele, o diabólico Dostoiévski.

Calma, os ossos do homem não estão a se debater por minha causa. Na verdade, Coetzee mostra um Dostoiévski que poucos críticos tiveram coragem de expor. Um homem que apenas dizia “sim”, que se deixava mergulhar na corrente do pecado, que não se opunha aos riscos e traições. A maioria dos críticos fala de Dostoiévski (Coetzee escreveu um romance!) como um excelso de luz, o psicólogo da literatura, defensor dos ideais ortodoxos, padroeiro da moral russa, na pior das hipóteses, um cristão atormentado. E ele realmente o-é, em certo sentido. Mas, por trás do escritor há o homem carnal. Esse homem erótico, incapaz de refrear o pecado, que freqüenta o submundo e possui os desejos mais adúlteros e ímpios. Dostoiévski abandonou a primeira mulher, moribunda, para viajar pela Europa com uma atriz sensual, freqüentava roletas e champanhes. Em sua juventude, participava de grupos clandestinos de socialistas utópicos que rebelavam, em discursos ufanistas, conta o Tsar. Extorquia sua segunda mulher, Ana Snitkina, para jogar. Ao ponto da bondosa mulher, empenhar o anel de casamento para que ele perdesse tudo de novo na roleta. Oh, fatalista!

Ao narrar a chegada de Dostoiévski em Petersburgo para velar o corpo de seu filho adotivo, “morto num suicídio”, Pável Isaev, Coetzee vai mergulhar na psicologia (criatura e criador) de Dostoiévski de maneira cruel, fantástica e realista. Quem era mesmo que dizia: “Eu acredito num realismo que tangencia o fantástico.”? Dostoiévski desembarca em Petersburgo com o nome falso do pai de Pavel Isaev. Nessa época, o escritor foragido em Dresden, estava devendo à metade da capital imperial. No seu enlutamento, atrai as pessoas para junto de si, como uma aranha, conduzindo-as para o seu nicho, o abismo das contradições. “Sou parte dessa força que eternamente aspira o bem, mas que constantemente produz o mal.” Não, Odomiro, Goethe diz o contrário! Dostoiévski não é o santo que aprendemos no catecismo. E nunca poderia ser! Joseph Frank, o biógrafo mais famoso, chega a supor no seu primeiro volume que as extorsões de dinheiro que fazia ao seu pai, à época da Escola de Engenharia Militar, eram fruto de noitadas em recintos onde havia prostituição e jogatina.

O ápice da idéia de Coetzee é o encontro entre o escritor e o anarquista Netcháiev, seu futuro Stavroguin. O diálogo entre esses camaleões que se escondem nos subúrbios de Petersburgo, com objetivos tão diferentes, é a cereja do bolo: “um réptil devora o outro”, dizia Ivan Karamazov. Assim, naturalmente, Dostoiéski se deixa levar pelo fulgor nada inocente de Netcháiev. Quem é o Mestre de Petersburgo? Netcháiev estimula o Judas no maduro escritor, mas ele tem o Cristo fortemente cravado em seu coração e não vai trocar de papéis como uma criança indefesa. Cristo e Dostoiévski: o desejo do escritor. Marias Madalenas, pobres trabalhadores insolentes e traidores. Algo em comum? Esse mergulho no submundo é a sua força, o atrito entre vetores discrepantes é a sua principal fonte, o alimento de sua existência. Atiça Deus para que saia de seu silêncio. Nisso se parece com Ivan Karamazov!

Só queria recomendar esse livro, O Mestre de Petersburgo, que é de um desnudamento arrebatador. Dizem que o sono organiza as idéias. O dia amanhece atrás de mim. É hora de me deitar. Deixarei tudo bagunçado, como num diário que ninguém mais vai ler. O tempo das coisas organizadas, revisadas, é para a posteriori. Por enquanto, o caos, bem dostoievskiano.

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