O inverno de 2006 foi realmente inesquecível para mim e para os moradores das áreas de risco da cidade do Recife. Já imaginaram o que é dormir estando sujeito a ter sua casa arrastada por uma enxurrada de lama, lixo e esgoto? Pois é assim que meio milhão de pessoas vivem nos morros da nossa cidade maurícia. Esse é um dos tantos problemas com os quais a população das áreas de morro precisa conviver, excluiremos do nosso relato as complicações com violência, educação, desemprego, saneamento básico. Num dia muito atribulado de abril de 2006, após três dias de chuvas torrenciais que fizeram rios e córregos de nossa cidade transbordarem, o telefone da Defesa Civil tocou, eu e meu parceiro Fidel, ficamos responsáveis por avaliar a situação de uma maternidade abandonada no bairro de Dois Unidos. Os moradores pediam, por telefone, uma solução para as infiltrções, pois o teto estava estalando e poderia desabar, inclusive. Pegamos o Fiat Uno da Prefeitura e partimos do bairro da Guabiraba até o bairro de Dois Unidos, ambos na zona norte do Recife.
Era um dia cinzento, por todo o lado havia barro nas ruas, moradores zonzando pelas avenidas. Na subida do Alto do Refúgio, uma contenção antiga da Prefeitura havia se rompido, obrigando todos os automóveis e moradores a se espremerem em apenas uma faixa. A chuva continuava, persistente, torrencial. As janelas fechadas deixavam o vidro embassado e o clima pesado. Não sabíamos ao certo onde ficava essa "maternidade". Perguntamos e chegamos numa avenida movimentada, cujo nome não me recordo, às margens do transbordante, raivoso e barulhento, Rio Morno. Esse rio, nasce como um pequeno córrego, vindo das matas de Sítio dos Macacos, passa quase imperceptível pelo bairro da Guabiraba e, ao que ouvi falar, vai se juntar ao Rio Beberibe. Mas, quando o inverno é forte e chove em abundância por vários dias, esse tímido rio assume uma raivosa aparência. Expulsa de suas veias o lixo jogado pelos moradores, seu refluxo faz transbordar toda a merda social de volta num ato de vingança contínuo.
Chegamos na maternidade. O ambiente desolador. Quantas famílias viviam alí? De quê viviam? Na minha prancheta, deveria tomar todas as informações e dar um encaminhamento para os superiores da Prefeitura decidirem o que fazer. Essas amarrações da burocracia me fazem lembrar o Castelo de Kafka, onde o agrimensor não consegue chegar aos superiores. Pois bem, eu era a ramificação menor do Programa. Relatava como os moradores estavam vivendo e minha papelada ia para um superior, para depois passar a outro superior que decidiria o que fazer com os moradores após consultar o outro superior... imaginem como as relações de poder não se constituem em ambientes como esse?! O que eu poderia colocar nas cinco linhas em que o cadastro pedia que eu relatasse a situação dos moradores que viviam naquela maternidade abandonada? Não me recordo o que escrevi nas cinco linhas, mas algo como: "Retirar esses moradores o mais rápido possível para algum abrigo." Vou explicar melhor o que encontrei.
Essa maternidade é mais uma das imensas obras-fantasma que nossos governos fazem, levantam paredes e não concluem. Antes da metade da obra, a verba acaba. É, né. Há quem acredite. Com o excesso de chuvas, ela estava toda inundada, de maneira que em momento algum estivemos com menos de um palmo d´água chapiscando nossas pisadas. Não havia luz elétrica, apenas fiações elétricas que, como patas de aranha gigante, pareciam desgarrarem-se do teto. Por toda a parte havia infiltrações e a água pingava de montes no chão, nas camas improvisadas, nos poucos leitos abandonados. Gente descalça, sem camisa, uma criança com os olhos expressivos de febre deitada numa cama toda ensopada. Senhoras velhas se perguntando por quê não morreram ainda, paredes manchadas. Um cenário perfeito para um filme de terror. Era manhã, uma estranha luminosidade provocada pelas nuvens que cobriam o sol, deixava o aspecto da maternidade lúgubre, sombrio. Um homem mais articulado fazia perguntas e pedia respostas. Eu limitava-me a dizer que passaria o caso para os superiores e que eles entrariam em contato. Mostrei ao homem o que tinha escrito na prancheta e fui embora, pois ainda havia outros casos de deslizamento de barreiras pra avaliar, lonas plásticas a entregar.
Hoje, lembrei-me dessa maternidade e da experiência daquela manhã. Voltava para casa um tanto desolado, ressacado, e prontamente lembrei-me daquelas pessoas que vivem num estado deprimente. Com certeza, naquela maternidade abandonada, na beira de um rio, havia ratos e outros animais que podem trazer contágio ao homem. A água parada, chapiscando aos nossos pés, o olhar daquela criança pedindo que a tirasse daquele lugar, queimando de febre numa cama molhada... Ainda hoje, não sei que fim levaram aqueles moradores, que resolução os superiores tomaram. Aquele tinha sido mais um caso entre os dez, doze, que tínhamos que avaliar por dia naquela operação de inverno. Meu Deus, o que esperar de um mundo que cultiva ambientes como esse?!
Um comentário:
É companheiro Dodô com certeza tivemos muitas experiências desoladoras como esta em nossas missões pelos morros do Recife. O pior é saber que a maioria dessas pessoas continuam vivendo nessas condições precárias sem nenhuma pespectiva de vida apenas esperando a morte "um dia" chegar. Abração, Fidel Cavalcanti (Bidel).
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