quinta-feira, 22 de abril de 2010

Há 161 anos...

O dia 22 de abril, data da última reunião na casa de Petrachévski, foi um dia de chuva torrencial; às seis horas da tarde, Dostoiévski passou pela casa do Dr. Ianóvski para se secar da chuva e tomar uma xícara de chá. O médico presumiu que Dostoiévski estivesse a caminho da casa de Petrachévski, e nada do que lhe disse o amigo levou-o a modificar essa impressão. Dostoiévski até pediu um dinheiro emprestado para o táxi por causa da longa distância que separava a casa de Ianóvski da de Petrachévski. Ou Ianóvski foi traído pela memória nesse caso, ou Dostoiévski deliberadamente escondeu-lhe seu destino, pois o fato é que ele passou a noite na casa de Grigoriev, talvez discutindo com este e outros os planos para o funcionamento da prensa manual.

Às quatro horas da madrugada, Dostoiévski voltou para casa e foi dormir; mas pouco depois foi acordado por leve som metálico em seu quarto. Abrindo os olhos, meio adormecido, viu de pé, à sua frente, o chefe da polícia do seu distrito, ostentando um par de exuberantes costeletas, e um tenente-coronel vestido com uniforme azul-claro da polícia secreta, cuja espada, pendente do seu cinturão, batia-lhe contra as botas, produzindo o suave ruído metálico que acordou o escritor. O policial solicitou gentilmente a Dostoiévski que se levantasse e se vestisse e, enquanto ele o fazia, seu quarto foi revistado e seus papéis lacrados. Uma moeda de 15 copeques bastante gasta em cima da mesa atraiu a atenção; e quando Dostoiévski perguntou brincando se era falsa, isso foi solenemente adicionado às provas. Um sargento recebeu ordens para revistar a prateleira em cima da lareira, e subiu na mesa para alcançá-la. Mas caiu estrondosamente no chão quando o friso da prateleira cedeu e, com isso, a busca foi dada por encerrada. Por último, Dostoiévski foi conduzido até uma carruagem que estava à espera, acompanhado pelo chefe de polícia, pelo tenente-coronel, por sua senhoria apavorada e pelo criado desta, Ivan, também assustado, mas que olhava tudo com uma expressão de estupefata solenidade, muito apropriada à ocasião. Quando Dostoiévski saiu do quarto e entrou na carruagem, deixou para trás a vida relativamente normal que vinha levando até então - exceto pelo seu breve aprendizado como conspirador clandestino - para ingressar num extraordinário mundo novo.

Esse mundo novo ia pôr à prova até o limite sua capacidade de resistência emocional e espiritual e ampliar incomensuravelmente os horizontes de sua experiência moral e psicológica. O que ele conhecera antes apenas pela leitura das mais exageradas fantasias metafísicas ou sociais dos românticos iria converter-se agora na essência e matéria de sua existência. Iria conhecer o tenebroso desespero da solidão total do cárcere; sentiria a opressiva angústia do perseguido; passaria pela aterradora agonia do condenado à morte que se apega desesperadamente aos últimos instantes preciosos de vida; mergulharia nas camadas mais baixas da sociedade, onde viveria lado a lado com os párias e os criminosos e ouviria a conversa dos sádicos e dos assassinos, para os quais a própria noção de moral era uma farsa; e também passaria por momentos de sublime harmonia interior, momentos de fusão com o princípio divino que governa o universo, naquela "aura" de êxtase que precede os ataques epilépticos. Quando regressar à sociedade e começar a redescobrir-se como escritor, o horizonte das suas criações estará então delimitado por ste novo mundo e suas esmagadoras revelações. E tudo isso permitirá a Dostoiévski produzir obras de uma extensão imaginativa incomparavelmente mais profunda e sutil do que poderia ter feito na década de 1840, quando os estereótipos românticos eram seu único meio de aproximação desse mundo.

2 comentários:

Dodô Fonseca disse...

Trecho retirado do primeiro volume da biografia de Dostoiévski, escrita pelo americano Joseph Frank, nas páginas 374 e 375.

Dodô Fonseca disse...

Não sei porquê, mas Frank me lembra Borges nessa passagem.