sábado, 18 de abril de 2009

O Assalto

A metrópole é a alma e o corpo da modernidade. Na grande cidade encontramos as rodovias que são como veias e artérias da incessante corrente de desespero que se transmutam em compromissos inadiáveis que, por sua vez, constituem o objetivo e a essência do adiposo e infartante corpo urbanístico. Ai do descuidado! Ai daquele que por estar absorto num pensamento transcedental caia num descuido ao atravessar uma dessas rodovias! A vida, nesses casos, muito raramente oferecerá uma segunda chance. Como se não bastasse a paranóia do trânsito de automóveis, o arroxo financeiro pelo qual a imensa maioria das pessoas passa (alguém quer patrocinar esse blog?), o desgaste das relações humanas, ainda temos que nos policiar nos momentos em que estamos, aparentemente, seguros.

Dia desses resolvi visitar um amigo no bairro de Boa Viagem, zona sul do Recife e, deixando-me levar pela amistosa conversa, dei-me conta que já passava das 22 horas e que já seria uma boa hora para retornar à minha residência. Tomei acento no ônibus número 440 que faz a linha CDU-Caxangá-Boa Viagem. Um ônibus bem iluminado, com muitas cadeiras disponíveis, de tal forma que tive a oportunidade de escolher sentar-me numa janela do lado esquerdo, ou seja, do lado do motorista. Atrás da minha cadeira encontrava-se um sujeito de mais ou menos 40 anos, mal vestido, com uma rôta camisa de botão, alguns dentes ausentes e visivelmente ébrio, a cantarolar uma música de Wando. Ainda havia dentro do ônibus algumas jovens senhoras que deveriam estar largando do trabalho no shopping, estudantes e homens vestidos decentemente. Ao chegar na parada da delegacia de Boa Viagem, uma boa leva de cidadãos sobem no ônibus, de tal maneira que os locais ficaram quase todos ocupados. Um homem corpulento sentara-se ao meu lado. Bastante espaçoso, deixou uma perna para a frente da cadeira e a outra colocou no corredor do ônibus. O coletivo seguiu caminho normalmente até o bairro da Imbiribeira, nas imediações do viaduto Tancredo Neves, quando dois jovens muito parecidos entre si adentraram no ônibus.

Pelo título da postagem vocês já devem entender do que se trata e adivinham que esses rapazolas eram os protagonistas de mais um capítulo de degradação da vivência nesta aldeia tecnocrata. O primeiro dos rapazes, um sujeito magro, com rosto cavado pelas olheiras, pele morena clara, com orelhas bem abertas (para não dizer de abano) e o cabelo escondido por um boné branco que tinha escrito a palavra QuickSilver, rendeu o cobrador e muito rapidamente escondia nos bolsos a bolada conseguida. O segundo rapaz estava sem boné, tinha a pele mais escurecida, o cabelo encaracolado ainda tinha resquícios de uma coloração recente, talvez tenha tingido o cabelo de vermelho. Usava uma camisa vermelha e uma bermuda de estilo surfista. Quando entendi do que se tratava, fiquei nervoso e ainda cogitei uma maneira de descer do ônibus antes do ataque fatal que, inevitavelmente, chegaria até mim. Entretanto, o senhor corpulento impediu qualquer possibilidade de arriscar uma saída do ônibus. O segundo rapaz anunciou o assalto, muito trêmulo, com o revólver muito distante do tronco, chegava a passar perto do rosto dos passageiros aquela máquina negra de matar. Começou a dizer que estava perdido (nós tínhamos perdido) e que ninguém reagisse ou iria levar chumbo quente na carne. A tristeza invadiu-me profundamente. Tinha ido pagar minha parcela do ingresso do show do Iron Maiden, algo em torno de 30 reais e ainda tinha 65 reais na carteira que me serviriam de uso para um bom tempo, tendo em vista que esse período de mestrado sem bolsa não me possibilita quase nenhum recurso financeiro. Mas, enfim, como já havia anunciado o meliante, todos nós tínhamos perdido.

O assaltante pediu para que todos nós entregássemos as carteiras e não deu qualquer sinal de que devolveria os documentos. As pessoas começaram a entregas as bolsas, relógios, celulares e tudo que pudesse ter algum valor de troca. Entreguei minha carteira logo após o senhor corpulento. O segundo assaltante seguiu para a parte de trás do ônibus enquanto o primeiro já havia descido. Enquanto este se dirigia para a rabeira do coletivo, o senhor corpulento atracou-se rapidamente com o meliante, numa cena rapidíssima dominou o segundo assaltante e o motorista, abriu a prota traseira e só escutei o barulho do corpo do senhor corpulento caindo na calçada por cima do segundo assaltante. O primeiro deve ter fugido nesse momento. Outros dois jovens que estavam no ônibus desceram pela porta traseira e foram ajudar o senhor corpulento. De repente, começamos a ouvir barulhos secos de tiros. Quatro, cinco, seis tiros. As pessoas dentro do coletivo gritavam aterrorizadas para que o motorista fosse embora. O medo de que alguma bala escapasse de sua trajetória primeira e se afeiçoasse de alguém no ônibus paralizava-me. Comecei a me contorcer na cadeira a imaginar em que parte do corpo o desnorteado projétil atingiria-me. Ficava esperando o beliscão. Protegia a cabeça com as mãos. O motorista avançou aproximadamente cinquenta metros e parou a pedido dos amigos dos dois jovens que foram ajudar o senhor corpulento. As pessoas começaram a gritar que o assaltante estaria atirando contra o ônibus. Por aproximadamente dois minutos o terror tomou conta dos passageiros.

De repente o barulho cessara e os mais curiosos desceram para ver o que tinha acontecido. Os ladrões tinham fugido e o senhor corpulento falava ao celular chamando reforço policial. O homem não quis entrar em detalhes sobre o acontecido e quando a viatura chegou conversava em tom de mistério com os policiais. Na minha cabeça, ele deveria ser um deles. Não quis saber os detalhes sobre a vida do senhor corpulento, pois me encontrava em estado de choque. Meus braços se contorciam como se quisessem entrar para dentro do corpo. Algumas mulheres pediam ao motorista que continuasse a viagem. Os materiais roubados foram restituídos aos passageiros. Mais à frente um Palio verde encontrava-se parado e uma mulher tinha sido atingida no ombro, enquanto estava sentada no banco do passageiro na hora do tiroteio. Estava passando no local errado, na hora errada. Ainda teve a sorte de ser atingida na parte posterior do ombro direito e estava em pé e dando relato aos policiais antes de se dirigir ao hospital, conduzida pelo marido (?) no próprio Palio.

Depois de alguns minutos de altíssima tensão, o ônibus seguiu sua viagem sem o senhor corpulento e com as pessoas mesclando um sentimento de terror e alívio. Uma senhora foi atendida pelos outros passageiros, pois parecia estar com a pressão alta. O bêbado que estava atrás da minha cadeira cantando uma música de Wando, chorava, pedindo para chegar logo em casa. Não vou negar que seu desespero era engraçado e no meio daquela tensão toda, eu dava gargalhadas espasmadas, contidas, do medo em que o bêbado se encontrava, pois era hilária sua situação e sua demonstração de terror, seu choro mal articulado pelas palavras errantes, seu odor de cachaça. Todos no ônibus desejavam voltar para suas casas e relatarem para seus parentes os momentos de aflição vividos dentro daquele ônibus numa noite de terça-feira. Talvez encontrar algum conforto entre queridos ou rememorar sua condição humana. Valorizar a desprestigiada vida. Assim a cidade segue seu caminho: os carros continuam raspando nos pedestres e ciclistas; os horários são feitos para serem cumpridos; projetos e mais projetos são viabilizados para que o fermento social continue sua progressão aritmética; os índices da economia continuam a oscilar; e eu continuo a caminhar pelas ruas da cidade na espera de encontrar algum sentido nesse nervosismo paranóico-suicídico. Desde que fomos expulsos do Éden, vivemos a sonhar com um lugar perfeito onde haja sossego e harmonia. Essa flor azul que se esconde em nossa memória coletiva. Abraço a todos e cuidado com os destinos da vida!

5 comentários:

diogo luna disse...

que ônibus hein...? e que cidade! e em que tempos tensos vivemos...!
as coisas parecem acontecer para serem descritas por você, dodô! quanta coisa já não te aconteceu de extraordinário? recordo de muitas... de também de muitas descrições! delícia de ler, apesar do peso que te encurvou, na cadeira do ônibus, agarrado à cabeça...

Jefferson Góes disse...

Meu irmãozinho, que sufoco!! Que bom que você está aqui pra contar a história!! Fico feliz que já passou pra você.

Que merda que isso acontece cada vez mais.

Hugo disse...

É fogo mesmo, e por mais absurdo que seja o conto já não questionamos se verdade ou mentira, é a modernidade meu amigo,....valeu Dodô, como sempre muito bacana o texto.

Juliana Palmeira disse...

e ainda falam do meu Rio de Janeiro... tsc tsc tsc

Visualizador disse...

Porra.

Excelentissimo texto!
Que trajédia hein! mas muito bem contada.