quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Saudades do Marista






Faltam dois minutos para as duas da manhã da quarta feira pré carnavalesca de 2009. Estava eu lendo o primeiro romance de Dostoievski, Gente Pobre, onde a personagem Várvara Dobrossiólova narra em formato de cartas, suas tristes recordações da primavera da vida. A leitura fazia-se tensa, carregada de imagens turvadas. Dostoievski faz a gente sentir a dor de uma experiência que não vivenciamos. Ler suas obras é um aprendizado e um exercício de reflexão de nossas ações. Ele sempre nos lembra que esquecemos de alguém na margem que ficou da ponte que nos leva ao super-homem. Após o relato de Várvara sobre a morte de Pokrovskii, adormeci com a luz do quarto acesa, com o livro aberto na cama e com os óculos fazendo função de marcador de texto. O coração angustiado encontrou na escuridão do sono um repouso. Ao mergulhar nessa tal escuridão, acordei nas memórias de minha infância. Período em que tudo é mais fantasioso, pois as impressões do mundo são muito maiores. Estava eu sentado num batente do carredor em frente à capela do Marista e podia ouvir o barulho nítido da algazarra que vinha dos dois lados para onde o corredor servia de ligação. Há algum tempo, desejava falar sobre as memórias do Colégio Marista e se não for sob essa impressão que me toma, não posso crer noutro momento.




Pensar em minha infância é lembrar do Marista e isso tem uma explicação. Até os dez anos de idade, eu estudava pela manhã e à tarde vinha para minha casa aqui no Engenho do Meio. Aqui pelas ruas vizinhas, jogava futebol de barrinha nas ruas de barro, bola de gude e video game Atari, além de tomar o raspa-raspa no fim da tarde. Certo dia, o time da nossa rua jogou com o pessoal da comunidade Sapo Nu (hoje, Vila Redenção) e eu era o goleiro do time e levei um gol que não foi frango, mas defensável. Um amigo mais velho que era como se fosse um capitão do time, robusto, bateu em mim na frente dos colegas. Ele tinha doze anos. Voltei pra casa chorando e meus pais para evitarem conflitos de vizinhança por causa dessas coisas que são até normais, embora sejam malévolas para a criança, resolveram que eu passaria o dia na escola, fazendo esportes e estudando, voltando para casa apenas no final da tarde. Assim, rompi com os colegas da rua. Chegava no Marista de 06:30 da manhã nas terças e quintas para assistir a missa, por vontade própria e, chegava em casa entre seis e sete da noite. Nesse período treinei futebol de salão e basquete, sem destaque algum. Muitos alunos também passavam o dia fazendo atividades no Colégio, que era imenso. Recordo-me das tardes na biblioteca que ficava perto da quadra de basquete, quando eu ficava lendo e anotando as informações sobre os países ao redor do mundo nas enciclopédias da Mirador e Britannica. Também fui representante do DEFE (Departamento de Educação Física e Esportes) pela 5ªE, 6ªF e 8ªD (essa última prometendo pagar picolé pra quem votasse em mim), o que me garantia ocupações diárias como organizar a turma para o grande evento do colégio que eram as Olimpíadas Champagnat. Tudo isso que estou falando carece de maiores explicações. O Padre Marcelino Champagnat foi o fundador dos Maristas no período da Revolução Francesa... Ah, google it! Além do mais, numa das gincanas do colégio não acertei o nome do local onde Champagnat tinha nascido perante a quadra cheia de alunos e pais. Fiquei roxo de vergonha.






O que me motiva a escrever sobre minha infância no Marista é o fato do colégio não existir mais, fisicamente. Na minha cabeça, cada pedaço do colégio existe. Desde os detalhes dos jardins, dos campos de futebol, piscina, salas e carteiras, o toque Für Elise de Beethoven, até a passagem para o telhado, onde gazeava aula. Desde que saí do colégio no final de 1994, tendo terminado a oitava série lá, sempre ouvi falar na decadência do colégio, que seria vendido, que estava para acabar... mas, nunca imaginei que da queda ao coice, o intervalo seria tão curto. Um belo dia, estava eu numa daquelas cadeiras altas do ônibus, que ficam em cima dos pneus traseiros e olhei para o lado e tomei um susto, um tapa que só de lembrar parece que o sinto novamente: o Marista havia sido implodido! E ao invés de sua arquitetura belíssima do início do século XX, havia apenas o vazio, onde podia-se ver da Avenida Conde da Boa Vista, a Rua da Conceição, ao longe. Ainda hoje, quando passo no ônibus que vejo o prédio da portaria abandonado, o azulejo com a foto de Champagnat ali esquecido, meu coração se apequena. A capela do Marista era belíssima! Bem adornada, com pinturas de bom gosto no teto, quadros de valor. Fico imaginando o quão abandonado é o patrimônio de nossa cidade, pois será que nenhuma autoridade pode impedir a derrubada de tão rico acervo?! Mesmo que o colégio falisse, a estrutura poderia ser preservada. Se bem que imaginar aquelas salas cheias de vida sendo hoje uma loja de shopping não seria nada consolador.





O que mais me intriga é o fato de hoje em dia não ter permanecido os laços de amizade dos colegas comigo. Quantos deles eu me recordo o nome completo, a fisionomia e apelidos, mas que hoje, se passarem por mim na rua, sou capaz de não reconhecer. Para cada acontecimento é necessário uma postagem, como o dia que minha turma ia brigando com a 8ªB ou do dia em que fiz um gol no campeonato de futebol da olimpíada que ainda hoje me recordo vivamente do som da bola batendo na grade de ferro que ficava atrás da rede que estava furada. Da vergonha que eu sentia em dançar na abertura das olimpíadas. Dos passeios para Apipucos onde tinha uma árvore que tinha um bebedouro dentro. Do dia dos namorados em que me declarei para uma das meninas mais lindas do colégio que tinha 15 anos e eu tinha 13 e por causa dessa façanha virei o herói da turma e no período em que eu estava conversando com ela, o professor Murilo de Matemática não conseguiu dar as duas últimas aulas. Do desespero para passar em Matemática na sétima e oitava série que quase enlouquecia meus pais que pagavam o colégio derramando sangue. Do meu primeiro amor platônico: Viviane. Do inesquecível diretor Alcides Tedesco, de quem tenho uma imagem santificada. Da coordenadora Neide que aliviava minha barra com os professores, pois durante um mês o professor de matemática me proibiu de assistir as aulas dele. Do corredor polonês para entrar na sala. Do dia que ganhei a eleição pra coordenador de sala por 1 voto de diferença. Dos funcionários. Das aulas de religião com o professor Fábio quando ele botava a gente pra cantar músicas de Lulu Santos. O laboratório de ciências e o inolvidável professor Macário e seus fetos e esqueletos guardados pela sala. Do dia que desmaiei na sexta série e, dizem, depois desse dia deixei de ser um aluno comportado. Como diria o Rei Roberto: "São tantas emoções."




Sou grato dessas memórias me trazerem alegria. Na verdade, tenho medo esquecê-las. Tenho a impressão de ter vivido intensamente, com horas completas. A infância pode ser um período traumatizante e sei que ninguém passa incólume às decepções, aos anseios, desejos e cobranças. Mas, depois de quase duas horas tentando escrever o que sinto, fico com a sensação de não ter falado nada do que queria. São 03:54, o sono começa a enuviar minhas idéias, talvez nada mais venha à mente quando tudo escurecer. Hoje, para mim, o Marista é como um fantasma, um espírito amigo, onde aprendi lições das quais nunca vou me desvencilhar. Quando escolhi fazer o vestibular para História, tinha o sonho de um dia ensinar lá, mas assim como tantos outros que relato por aqui, não será realizado. O importante é estabelecer caminhos. Assim como Kublai Khan ouvia os relatos das Cidades Invisíveis de Marco Polo, sabendo que tudo era uma grande mentira, mas ouvia por devoção ao relato, devoto meu viver às lembranças e sonhos em meu distentio animi.

5 comentários:

Suaninha disse...

"Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança para acontecer de novo e não consegue. Lembrança é quando, mesmo sem autorização, seu pensamento reapresenta
um capítulo." (Mário Prata)

tenho tanto orgulho pela pessoa sensível que vc sempre é!

Namastê...

ei, eu perdi pra vc num foi, por 1 votinho, num foi? kkkkkkk...

Dodô Fonseca disse...

poxa suani, disputamos aquela eleição super tensa!! eu ganhei por 1 votinho e paguei picolé pro povo. político brasileiro aprende cedo! hehehe! bjão!

glauber disse...

rapaz,
agora me bateu ate arrependimento de não ter ido no meu colegio de infancia, q tambem já fechou, mas nao se demoliu. Pena é q fica depois de paulista, mas se tivesse lido esse texto antes, de certo tinha ido longe.

ícaro alerta geral!!! disse...

nossa... estudei no marista do recife e tudo que vc disse eu sinto tambem!!! eu estou organizando com a minha turma uma ida ao colégio, estou lutando pra ter a autoriração.... do atacadão!!! uma vez marista... sempre marista!!!

Um escritor anônimo disse...

Olá, Dodô. Aqui também, dentro de mim, bate um coração marista. Foi assim que acabei aportando no teu blog. Saibas que não estás só. Se teus antigos colegas não te cumprimentam e/ou não te reconhecem, lembre-se que há outros colegas maristas, com quem nunca estivemos, espalhados pelo mundo e pulsando numa mesma frequência. Um grande abraço para você, direto das Minas Gerais.