segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O Bom Velhinho

Passava das 20 horas da noite de natal e eu estava na praça do Derby, voltando pra casa, para a ceia familiar. No último natal, tinha vários motivos para liberar minhas emoções, pois o ano tinha sido um desastre financeiro, mas em compensação, consegui atingir o objetivo de passar no mestrado em dezembro, o que me deixara num estado de euforia prolongado. Após ter me divertido durante todo o dia numa festinha no bairro da Boa Vista, chegara a hora de retornar para o seio familiar, compartilhar do carinho cronometrado dos parentes, banquetear e encher a cara em nome do nascimento de Cristo.

Passara o dia inteiro bebendo cerveja, minha visão estava um tanto enturvada, fuscada, olhava com um misto de desdém e curiosidade para os passageiros que aguardavam o ônibus, ansiosos por chegarem às suas residências natalinas. Guardas chegavam e saíam do quartel do Derby, o comércio fechava, restaurantes com seus tristes funcionários recebiam famílias interias. Mas, uma visão me chamou a atenção mais do que qualquer outra. Do outro lado da praça, um homem, ou um mendigo, sim existe distinção, caminhava pela praça seguido de crianças e adolescentes eufóricos. O homem tinha uma barba longa e grisalha, estava mal vestido e carregava na mão direita um latão que era seguido de longe pela gurizada. Comecei a espiar aquela cena com a mesma curisiosidade que nos colocamos a olhar uma cadela a ser cortejada por oito, dez cachorros atrás do cio. Aonde o velho ia, os meninos o seguiam.

De repente, o velho encostou-se no umbral da praça e os meninos o cercaram. O velho lançou um grito incompreensível, provavelmente a exigir um mínimo de organização dos meninos. Houve empurra-empurra e xingamentos, até que eles conseguissem formar uma bagunçada fila. O velho abriu a lata e pôs a derramar o pegajoso líquido nas garrafinhas dos meninos. Os primeiros beneficiados corriam, satisfeitos pelo atendido desejo. Em menos de dez minutos, todos os meninos tinham suas garrafinhas de cola devidamente servidas. O velho também preparou a sua e seguiu seu destino pelas ruas. Grupos de meninos saíram em conjunto a vaguear pelas ruas do centro do Recife, satisfeitos por terem encontrado seu papai noel.

Tomei meu ônibus, cheguei em casa. Chester, frutas cristalizadas, boas bebidas, superstições, Roberto Carlos. Assim, o nascimento de Jesus era lembrado na minha casa, na vizinhança e na maioria das casas da cidade. Antes da ceia, uma oração, agradecimentos, pedidos. Mas, o que pouca gente atenta, é que se Jesus estivesse em algum lugar do Recife naquela noite de alienação, provavelmente estivesse erguendo sua pitchulinha para o bom velhinho que aliviara a dor de uma miserável existência, brindando o pegajoso vinho com seus discípulos sem lar na manjedoura pública.

2 comentários:

Alisson da Hora disse...

Passei, li a bela crônica, adorei! A gente precisa ser mais atento às escritas uns dos outros... por que que a gente nunca diz: "ei, pô, eu tenho um blog!" ?

abraços!

antonio henrique disse...

Dodô, muito boa mesmo a crônica, se olharmos um pouco para o lado nesse nosso Grande Recife, encontramos estórias tão presentes como essa que relatasse.

Abraços e há quanto tempo cara =)