quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O Dia do Professor

Quem inventou de colocar o dia dos professores no dia 15 de outubro, exatamente na metade do mês, quando o homenageado já não dispõe de quase nenhum recurso financeiro para formosear-se com seus confrades nesta data comemorativa? Talvez por isso as escolas dispensem nossos heróis da jornada de trabalho, escamoteando em forma de feriado a triste realidade desta data. Mas, mesmo assim, houve quem ligasse naquele sábado à noite para convidar nosso professor para uma noitada no Recife Antigo. Ex-colegas de faculdade, professores que também trabalhavam no serviço público acompanhados de suas esposas ou namoradas, formavam uma grande mesa que se destacava na Rua Tomazina. Nosso herói, um professor com seus 27 anos, recém promovido ao cargo na província de Pernambuco, um homem bem afeiçoado, de boa compleição física, homem de histórias, resolvera a contragosto encontrar os amigos que há alguma data não congreçava. Como o salário havia entrado na conta no final do mês de setembro, na metade de outubro, nosso herói teve que raspar o cofre para se arriscar na noite recifense.

O professor saiu com 15 reais na carteira, decidido a não beber, pois o dinheiro seria insuficiente, além do mais, seu cartão de passagem tinha quebrado na semana que findava e ele ainda haveria que pagar a passagem de ida e volta, de maneira que, resolutamente, só poderia gastar 11 reais naquela noite. Durante um longo período debateu-se, intrigou-se, se realmente valeria à pena sair de casa naquela situação. Porém, vencido pelo tédio, decidiu que arriscaria um passeio pelo centro da cidade. E lá estava na Rua Tomazina, meio desconfiado, a observar o movimento das moças bonitas e dos vendedores de loló.

Em pouco tempo, todos estavam se confraternizando, brindando ao Papa, contando piadas sobre judeus, e questionando o porquê do nosso herói não participar da pândega. Ele sem querer dizer o verdadeiro motivo, inventava uma desculpa qualquer e cinco minutos depois enchiam um copo para ele. Nosso herói sabia que se tomasse o primeiro copo, participaria da conta que daria no mínimo 20 reais por pessoa. Resolveu que daria um passeio pelas ruas do centro, disse que voltava já. Chegou no primeiro bar e pediu um quartinho de Pitú e um limão cortadinho. Estava louco de vontade de beber! Tomou a primeira lapada e deu uma chupada forte no limão que o fez arrepiar. Heya! Dá-lhe outra! 3 reais. Voltou à Rua Tomazina e já se sentia com outra disposição. Tirou uma moeda de 1 real e pôs no bolso, dizendo para si mesmo: “essa daqui é pra voltar pra casa.” No domingo, a tarifa do ônibus é pela metade, ou seja, 95 centavos. Ficava na mesa conversando, cada vez mais acaloradamente. Passou a pedir o quartinho de Pitú no bar em que os amigos se reuniam mesmo, lá o quartinho era um pouco mais caro, 2 reais e ainda teria os 10% do garçom. Mas, tudo haveria de se arranjar. Logo puxou assunto com uma professora meio dentuça que ele conhecia de vista da nova escola em que começara a trabalhar havia dois meses. Não era muito interessante, mas àquela altura da madrugada...

O pior que a professora ficou dando linha e puxando o anzol. Nosso herói se abusou e trocou até de lugar. Mulher complicada, deve ser cheia de problemas. Faltavam 5 minutos para as três da manhã quando, em comum acordo, todos resolveram pagar a conta. Nosso herói pagou 8 reais pelas cachaças que tomou e ainda possuía 2 reais. O bacurau das três já estava perdido. Nosso herói ainda podia tomar uma latinha de cerveja enquanto aguardava o último bacurau que sai às quatro da manhã do Cais de Santa Rita. Partiu para a Rua da Moeda. Tentou conversar com algumas pessoas, mas àquela hora seu aspecto deveria estar deplorável, sem contar o bafo de cachaça. Então, recostou-se no muro de uma casa abandonada e tomou sua cerveja, concluindo que os planos que fizera em casa e que o motivavam a não sair, se concretizaram. Ou seja, voltaria bêbado, não encontraria nenhuma garota interessante, não arranjara uma carona, a noite tinha sido uma merda e gastara os únicos 15 reais que dispunha.

A despeito de todas as maldições que confabulava consigo, resolvera de última instância, olhar a vida por outro viés. Tentara olhar o presente por um lado menos negativo e que ao menos possuía um emprego fixo, onde nunca seria demitido. Nessas meditações percebera que faltavam 15 minutos para as quatro horas. Resolveu se dirigir para o Cais. Atravessou a Ponte Giratória cantando uma música do U2 chamada Sunday Bloody Sunday, em homenagem ao novo dia.

Ao chegar no Cais, entre dezenas de ônibus, avistou logo o bacurau da Várzea e adentrou. O motorista tirando um cochilo na boléia, o cobrador do lado de fora comprando um picolé. Nosso herói ficou um tempo do lado de fora também, observando a gritaragem dos vendedores de café, pipoca, picolé, refrigerante. O Cais de Santa Rita, definitivamente, nunca dorme. O mau cheiro, a escuridão, os passageiros bêbados assim como ele, o cobrador subiu. Nosso herói seguiu-o e retirou a moeda de Um real que desde o começo da história guardara, garantindo seu retorno ao lar, entregando-a ao cobrador e esperando o troco de cinco centavos. O cobrador questionou: “cadê o resto?” Nosso herói, então, argüiu: “Ora, hoje não é domingo?! É meia passagem!” O cobrador que, provavelmente, deveria passar por aquela situação em diversas madrugadas de sábado para domingo, adquiriu uma feição insolente e disse que a meia-passagem só valeria à partir das cinco horas da manhã. O nosso herói ficou aperreado e correu para o porta-moedas da carteira. Tinha uma soma de um real e setenta centavos. Ainda faltava 15 centavos para completar a passagem! Nosso herói então, perguntou se poderia passar faltando 15 centavos, mas o cobrador disse que de maneira alguma. O ônibus começava a ficar cheio e a controvérsia entre cobrador e passageiro começava a chamar a atenção de todos dentro do veículo. Então, o nosso herói sugeriu ao cobrador que ele ficasse com o dinheiro e que ele ficaria ali, quietinho, na frente e desceria sem fazer alarde e que, ainda assim, o cobrador ganharia um trocadinho por fora. Mas, o cobrador decidido a manter sua moral inabalável perante os passageiros do ônibus, levantou-se, sua panóplia de orgulho resplandecera ainda mais, encaminhou-se para os degraus e ordenou ao passageiro que descesse imediatamente ou chamaria a polícia. Nosso herói estava prestes a chorar e argumentava: “Seu cobrador, o senhor vai me deixar aqui no Cais essa hora da madrugada? O próximo ônibus só vai passar daqui à uma hora e meia. Vou ficar aqui sozinho nessa escuridão por causa de 15 centavos?” O cobrador, cada vez mais orgulhoso de seu escrúpulo, dizia: “Bora boy, se tu num descer agora eu vou chamar a polícia!” A situação era irreversível, o orgulho do cobrador estava ferido e ele estava disposto a cumprir a lei à risca. Afinal, é a lei que move a vida dos cidadãos, ela é o dogma irrefutável da urbe e coitado de quem escapa à sua tirania!

Nosso herói já estava conformado com sua derrota quando um homem que acompanhava toda a desavença resolveu se levantar e entregar três moedas cor de bronze no valor de cinco centavos cada, finalizando assim o tão sonhado objetivo do cobrador, o número mágico, a razão transcendental de sua força de trabalho, o seu orgulho proletário, o Um real e oitenta e cinco centavos!! Ao estar de posse do dinheiro necessário, o nosso herói deixou de ser um homem submisso e toda a sua então humildade revertera-se numa cólera de fazer sublinhar as palavras de Hesíodo em suas análises sobre a fúria sentimental. O motorista tocou o ônibus e o cobrador sentou-se em seu lugar para receber as moedas e antes mesmo de se acomodar na cadeira, nosso herói lançou-lhe as moedas com toda a força no rosto, resvalando contra o peito e a janela que ficava ao fundo. Nosso herói, completamente enfurecido, bradava para todo o ônibus, a tremer de ódio: “Chama a polícia agora, seu filho de uma puta! Vai contar essa merda pra ver se tá certo! Tu nunca deixarás de ser um cobrador de bacurau, porque não mereces crescer na vida. Seu merda!” Todos no ônibus arregalavam os olhos diante da medonha cena que se desenrolava. Nosso herói repetia que o motorista parasse na polícia. "Parem! Parem! Vá dizer que eu não paguei!" Assim o transtornado gritava. O nosso herói indagou o cobrador: “Você sabe que eu sou? Eu sou um professor! E se me faltava 15 centavos para pagar uma passagem de ônibus é porque essa merda de país não valoriza a educação e um idiota como você não consegue abstrair o lucro que teu patrão tá ganhando nas tuas costas. Vai dizer pro teu patrão que tu ganhasse 15 centavos para a empresa e aguarda a recompensa que ele te dará!” O cobrador limitara-se a resmungar: “Tu és um liso.” O professor e o cobrador ainda trocaram farpas por alguns minutos até chegarem na primeira parada da Conde da Boa Vista, quando novos passageiros subiram e a turba se acalmou.

Ao chegar em casa, nosso herói muito abatido, sentira remorso de alguns palavrões proferidos. Todos haviam perdido. Gastara os últimos quinze reais que tinha até a chegada do próximo salário que viria em duas semanas e decidira que nunca mais sairia de casa enquanto não pudesse pagar o dinheiro do táxi.

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