terça-feira, 29 de setembro de 2009

Passeio Noturno

Passava das 23 horas da segunda-feira, quando meu telefone tocou. Estivera inquieto durante todo o dia, trancado em meu apartamento, não suportava mais meus solilóquios, minhas culpas e reclamações à respeito do infortunado presente. Do outro lado da linha, uma voz que mais parecia uma gravação de um disco de vinil antigo, com aquele chuviscado ao fundo, dizia-me em russo uma simples frase: "Ivan Ilitch morrera!" E por mais dois ou três segundos escutava apenas o ruidoso silêncio da suposta gravação. Desliguei o telefone e recorrendo ao número, surpreeendi-me que a ligação não deixara registro algum. Talvez as excessivas preocupações dos últimos meses, acentuadas com o ascesso de uma possível esquizofrenia, estivessem me produzindo alucinações auditivas. Resolvi que abandonaria meu celular em casa e iria flanar um pouco pela noite mal iluminada. Com os moradores a dormir, trancados em casa, no silêncio da caminhada, respiraria um ar puro, distante da impoluta convivência do meu apartamento.

Atravessei todo o bairro do Engenho do Meio numa caminhada solitária, passara pelo convento do Bom Pastor onde uma agradável sinfonia se fazia ouvir, dirigia-me até as imediações da Avenida Caxangá. Nesse ínterim, percebi poucos transeuntes a arriscar um passeio por aquela já distante hora. O comércio fechado. Um bêbado a vaguear ao longe, um segurança apitando sob uma bicicleta. Resolvera voltar. Ao olhar para o céu percebi que nuvens avolumaram-se, enegrecera-se a noite, uma densa enxurrada se anunciava. Tempo estranho. Em setembro, a última tromba d'água antes do longo e cálido verão. Passava pela tubulação da COMPESA quando a forte chuva me alcançou, nem sequer teve a discrição de cair em pausada garoa. Apressei-me em direção ao convento do Bom Pastor onde na ida, escutara ao longe, uma sinfonia irreconhecível. Ao atravessar a praça do convento, podia avistar o arco de entrada. Um arco que se espairava por alguns metros, diferente da visão habitual, esse arco parecia mais um tunel. Ao me aproximar, pude perceber que o som que vinha do convento era a Marcha Eslava de Tchaikovski, em seus primeiros, sombrios e quase silenciosos acordes. À esse momento, minha roupa estava encharcada e fui me proteger na escuridão do estranho tunel da entrada do convento. Ainda mais excêntrico era imaginar que música tão pomposa fosse ouvida num convento àquela hora da noite, beirando a passagem do dia, numa altura imprópria para o ambiente.

Adentrei-me no tunel escuro. Fiquei próximo da saída, onde as luzes dos postes pudessem ilumiar ao menos minhas pernas. A música me entretia e estava até feliz de escutar a reconhecível sinfonia naquela hora inoportuna. Mas, ao retumbar das notas fortes acompanhadas do estrondo provocado pelos tímpanos e címbalos, percebo um vulto a aproximar-se. Um velho com um chapéu de cangaceiro estava prostrado ao meu lado e à medida que se aproxiamva da claridade advinda dos postes, sua imagem ia se clarificando pra mim. Usava uma roupa antiga, era um legítimo cangaceiro, seus olhos eram extremamente vermelhos, seus dentes amarelos. Sua aparição no exato momento em que o tom da música crescia, causou-me um espanto que meus cabelos só não se puseram de todo em pé porque estava todo molhado da chuva. O coração pulsava na garganta. Escutava-se no momento do encontro apenas a retumbante música e a estrondosa chuva. Cautelosamente, dirigi-me ao homem, balbuciando qualquer coisa que pudesse soar amistosa: "Que chuva, hein!?" O homem limitou-se a concordar com um expressivo balançar vertical de cabeça. Continuei: "Por um segundo, cheguei a acreditar que se tratasse de um fantasma, ora essa." O homem com um sotaque do interior, finalmente disse alguma coisa. "Estou procurando uma estrada de terra que vai pra São Paulo, me disseram que posso encontrá-la em Ponte dos Carvalhos." Expliquei-o que estávamos muito longe de Ponte dos Carvalhos, que fosse melhor ele tomar um ônibus em direção ao Cabo de Santo Agostinho, tão breve os ônibus voltassem a circular. O homem mal prestou atenção ao que eu dizia, cortando-me a fala antes que terminasse, disse-me que vinha andando desde o sertão da Paraíba e que sua última parada fôra em Itamaracá. Pôs-se a contar uma história que escutara quando da passagem pelas proximidades da Ilha da pedra que canta.

Tratava-se da morte de um bebê numa vila de pescadores há muito tempo atrás. Um casal de noivos recém-matrimoniados tivera seu primeiro rebento. Um menino gordo, moreno, seria uma dos melhores pescadores que aquela ilha tivera. A mãe, um tanto fragilizada, de compleição enfraquecida, não conseguia dar conta da fome do recém-nascido. O menino passara a sugar o leite com tanta força que o peito da mãe criara um coagulo, um inchaço. Ela revezava os seios, mas não dava conta da vontade do bebê, que se punha a chorar, irritando de sobremaneira o pai. Após algumas semanas, os peitos da mãe se trasformaram em duas bolas inchadas, onde não podia nem apalpar. O menino continuava a gritar de fome. Sem explicação médica convincente, após uma noite de grandioso esforço para amamentar, a mãe da criança aparecera morta. O pai se esforçava em conseguir leite com os outros moradores da vila, mas a única ama de leite, estava com o peito quase seco. O pescador muito abalado pela perda da esposa e sem saber o que fazer com o filho desesperado de fome, tentava alimentá-lo, em vão, com água de coco, mas nada era suficiente. Na outra semana, o menino morrera. O pai, abalado, lançara-se ao mar e nunca mais fôra visto na comunidade, tendo sua embarcação regressado para ilha sem ninguém dentro. Após esse acontecimento, muitos pescadores de Itamaracá e região, dizem que no meio do silêncio do mar, em suas buscadas, escutam no meio do distante vão marítimo, um choro desesperado de criança com fome. Um choro tão atormentador que aposentou velhos barqueiros, que após escutarem o choro da criança nunca mais se arriscaram a enfrentar a vastidão do oceano em busca de alimento.

Eu escutava o relato do homem que falava vagarosamente e ao retumbar dos acordes da marcha que fazia cenário para sua narrativa, designava-me olhares expressivos, arregalados, cheios de sangue que pareciam encandecentes naqueles olhos ferventes. Quando o homem terminou de contar sua história, a chuva parou abruptamente. Não demorei-me e pedi licença ao homem, já me deslocando para fora do túnel. Disse-lhe rapidamente que fizesse uma boa viagem. Não olhei mais para trás até que estivesse distante uns 100 passos do arco do convento. Quando voltei meu olhar para o local onde a cena se desencadeara não havia sinal de qualquer pessoa, olhei para dentro do túnel e não havia vulto. Tomei o caminho errado de casa, aliás tudo parecia estranho, as construções pareciam antigas. Cheguei a uma larga rua onde não havia asfalto. O silêncio só não era absoluto devido às gotas d'água que caíam espassadamente da copa das árvores. Na escuridão da noite, avistei um farol de um caminhão que produzia um barulho excessivo. Um caminhão antigo, azul, com uma lona amarela na caçamba. Dentro, muitas pessoas. Famílias inteiras, víveres, medo e esperança perpetraram meu espírito durante os dez segundos em que avistei o caminhão chegar e passar. No fundo da caçamba, percebi o olhar de uma mulher que parecia minha mãe em seus retratos de juventude. Tentei acenar, mas o caminhão já se ia longe, espalhando lama pela estrada de barro. Entorpecido pela sequência de visões, corri feito um louco, ainda a música de Tchaikovski parecia me alcançar, me perseguir. Dobrei a última esquina do passado e vi-me novamente na rua de casa, defronte ao portão. Aconcheguei-me em casa, arremessei na rua meu disco de Tchaikovski.

3 comentários:

Rayssa! disse...

Que lindo, dodô! :)

Luciana Cavalcanti disse...

Tu tens outro desses?!? Eu quero um!!! rsrsrsrsrs
Que delírio derilante, hein, brother?!? rssrsrs Viajei contigo!!!
F-A-S-C-I-N-A-N-T-E!!!

- adorei...

Anônimo disse...

pretty cool stuff here thank you!!!!!!!