sábado, 16 de maio de 2009

Sítio dos Macacos



Durante dois anos da minha vida de jovem adulto, pude dedicar-me ao trabalho nas áreas de morro da cidade do Recife. Era Técnico Social do Parceria nos Morros, um programa ligado à Defesa Civil, onde servíamos de elo entre a Prefeitura e os moradores na tentativa de solucionar os problemas de deslizamentos de barreiras e de acessibilidade nas áreas de morro. Nesse período em que trabalhei lá, muitas experiências adquiri, trabalhando oito horas por dia dentro dos morros da Zona Norte, e nas épocas de inverno, até nos fins de semana. Nessa manhã de sábado nublada, estando todo o Nordeste assombrado com a intensidade das chuvas, lembrei-me de um dia de Maio de 2006, quando tive que prestar auxílio à equipe da CODECIR e fazer o mapeamento das necessidades dos moradores naquele dia de tempestade na localidade de Sítio dos Macacos.


Com absoluta certeza, a grande maioria dos leitores do blog não faz a menor idéia de onde fica Sítio dos Macacos, portanto, tentarei ajudá-los nessa missão de localizar essa comunidade carente. Trabalhei por dois anos no Parceria nos Morros e sua estação situava-se no bairro da Guabiraba, zona norte do Recife. Esse bairro, cheio de morros e córregos, se espreme entre a BR-101, no sentido Recife-João Pessoa e o denso bairro de Nova Descoberta. Sítio dos Macacos fica na outra margem da BR-101, quem vem de João Pessoa para o Recife, logo após passar pelo CT do Náutico e a indústria São Mateus, verá do seu lado direito uma placa de motel amarela, seguindo esta estrada por mais quatro quilômetros, aproximadamente, estaremos no Sítio dos Macacos. A estrada é péssima, de barro, não existe iluminação elétrica, apenas o resquício de mata atlântica e os sons da floresta.



Um certo dia, uma quinta-feira, me lembro bem. Estava caindo um verdadeiro dilúvio no Recife e a CODECIR (Defesa Civil do Recife) escalou uma equipe para analisar os casos mais graves, onde a prefeitura deveria ser chamada para intervir colocando lonas plásticas, rampando os barrancos, transferindo as famílias para os abrigos e outras atitudes emergenciais do tipo. A kombi em que estávamos, guiada pelo Sr. Mizael, seguia lentamente, ziguezagueando pela péssima estrada em direção ao Sítio dos Macacos. Eu, muito cansado, pois já estávamos há dez dias nesse trabalho incessante nos morros, até nos fins de semana, fui advertido pelo Sr. Mizael, dizendo que lá eu iria encontrar uma das comunidades mais pobres que já tinha visto em vida. A chuva caia furiosamente, formava pequenas correntezas pelo caminho e aquele aspecto de floresta, dava um certo ar de que estávamos a mergulhar numa verdadeira guerrilha tropical.



Aos trancos e barrancos, chegamos em Sítio dos Macacos, uma comunidade formada, basicamente, por uma única rua, que apesar de tê-la escrito no relatório tantas vezes, não me recordo nesse momento. Saí com a capa de chuva amarela, prancheta molhada nas mãos, óculos embassado, a água com mais de um palmo de altura dificultava nossa caminhada, apesar das botas apropriadas. Saí visitando as casas, era nove horas da manhã quando entrei na primeira residência onde um homem ainda embriagado, magro, sem camisa, me atendeu. O homem se queixou que naquela comunidade tudo faltava. Levou-me no quintal de sua casa e percebi que todos os dejetos da casa eram lançados num pequeno córrego fétido que passava atrás da rua. Com aquela cheia, certamente, haveria de trazer as sujeiras para as casas. Enojei-me da situação. Mas, não havia o que fazer, a kombi só voltaria para estação no fim da tarde e teríamos que encarar aquela realidade constrangedora. Nossa sorte era que passaríamos pouco tempo por lá, imaginem quem vive naquela localidade e tem que conviver com toda a sorte de dissabores, desde a nuvem de mosquitos até ausência quase completa de civilidade. Visitei várias casas durante o dia todo, sempre acompanhado de uma técnica em engenharia, que avaliava o risco de acidente naquelas barreiras.


Entre as residências visitadas, duas me chamaram a atenção: uma casa gerenciada por uma menina de 10 anos e a Barraca de Biu Tempero. A casa da menina de 10 anos foi a situação mais dramática que já encontrei em toda a minha vida. O caso mais traumático de pobreza. Gostaria que minhas palavras aqui descritas fossem apenas ficção e que eu pudesse inventar o nome dos participantes apenas para entreter vocês, leitores do blog, mas trata-se de um caso verdadeiro. Pedi licença para entrar numa casa de taipa (barro e madeira) e quem me recebeu foi essa menina de 10 anos, cujo nome não me recordo. Ela tinha o cabelo todo assanhado, era branca, assim como seus cinco irmãos. Perguntei pela mãe e a menina disse que a mesma tinha saído e não tinha hora pra voltar. Não me atrevi a perguntar a profissão da mãe. A menina disse no relatório apenas que a mãe era desempregada e que não tinha pai. A casa não tinha muitos móveis, recordo-me de um sofá rasgado, com cheiro de mofo acentuado, por causa da chuva. Fiz a entrevista em pé. Algumas panelas velhas. As crianças olhavam para mim curiosas. A mais velha assumia o papel de chefe, falava seriamente, carregando aquele olhar triste e forte das crianças que passam por grandes tribulações na vida. Algumas pessoas conservam a ingenuidade da infância até a fase adulta, mas outras, ainda crianças, tornam-se maduras precocemente. A menina de 10 anos colocou a irmã caçula sentada no chão, era uma criança de braço, devia ter uns 10 meses, estava com o corpo todo ferido e marcado por perfurações de mosquito. Sua bundinha branca sentada naquele chão frio e molhado. Pedi à menina que tirasse a bebê do chão, pois assim ela pegaria uma gripe e que colocasse alguma roupinha nela. Depois da entrevista feita, escrevi embaixo do relatório que aquela família precisava de algum amparo institucional, pois aquelas seis crianças estavam em estado de miséria profunda. Sobreviviam de 65 reais mensais advindos do Bolsa Família. Ao me despedir da menina de 10 anos, dei dez reais pra ela e mais dois tickets no valor de quatro reais, cada. Era tudo o que carregava na carteira. Fiquei sem o dinheiro do almoço. Depois que me despedi da menina e alcancei a rua, chorei sozinho. Nesse dia, Seu Mizael dividiu o almoço dele comigo. Ainda hoje, tenho contato com ele e o tenho como amigo. Discutíamos assuntos referentes à Biblia quase todos os dias, pois o mesmo é evangélico.



No período da tarde, uma outra residência despertou minha atenção. Na verdade, um estabelecimento comercial: a barraca de Biu Tempero. O nome da barraca era escrito numa plaquinha de madeira muito pequena pintada com tinta vermelha. No local, na parte da frente, fica uma barraquinha comum que vende: cigarro, picolé, bombons, fuba e etc. Tudo muito humilde, nada muito sortido, com espaços vazios nas prateleiras. Do lado da barraquinha, tinha um pequeno portão de grade que levava ao bar, com umas três ou quatro mesas de ferro, uma mesinha pequena de sinuca, uma caixa de som velha que estava desligada e atrás do recinto um chiqueiro com uns quatro porcos bem gordos e rosados. Os escrementos dos porcos eram levados pela chuva e trazidos para o salão do bar. Apenas um consumidor se encontrava no local. Um sujeito magro, sem camisa, talvez fosse o mesmo do começo da narrativa. Alí, os homens se parecem muito entre si, fisicamente, assim como os macacos. Ainda no recinto, a todo momento, uma mulher semi-nua transitava, com um shortinho preto colado e lançando olhares insinuantes que me fizeram concluir que aquele local tinha três ambientes: barraca, bar e prostíbulo.


O relógio marcava 16:30 e todos os técnicos da prefeitura, cansados, se aglomeravam ao redor da kombi, que ainda atolou no caminho de volta. Nesse dia só voltei pra casa à noite, entristecido, o corpo fatigado. No outro dia, pela manhã, estaríamos em outra comunidade enfrentando variadas realidades. Quando olho pra trás e vejo que trabalhei dois anos na Guabiraba, lecionei dois anos para alunos dos Coelhos e do Coque, lecionei em Santo Amaro... fico pensando que talvez minha quota de contribuição social esteja realizada e que posso, inclusive, vender minha mão de obra para alguma empresa que me pague bem. Porém, quando escolhi ser professor, já deveria saber o quão espinhoso seria o caminho e espero ter saúde física e mental para prosseguir nessa jornada. Mas, amigos meus, nesse final de postagem, muito pouco importa falar de minhas aspirações sociais, o que interessa é saber se os governos que gastam rios de dinheiro em publicidade fizeram alguma coisa pelos moradores do Sítio dos Macacos e de outras localidades perdidas nesse cesto de caranguejos que é a cidade do Recife. Só para concluir, vocês devem se perguntar o por quê desse nome, Sítio dos Macacos? Após sair da barraca de Biu Tempero, reconheci uma casa abandonada no meio da mata e uma linha férrea. Alí, há algumas décadas, ficava a estação Macacos do trem que saia de Recife e ia pro interior. Talvez aquele lugar já tivesse vivido momentos mais dignos, mas isso pode ser assunto pra uma outra história, uma pesquisa histórica, quem sabe.

p.s.: nenhuma das fotos foram tiradas em Sítio dos Macacos, mas em outras regiões, enquanto trabalhei na Defesa Civil. A primeira foi no Alto do Refúgio e a segunda no Córrego da Areia.

4 comentários:

Miranda disse...

Mas uma grande narrativa Dodô, ainda que muito triste... abçs

Marcos Windson disse...

Dodo, vi que vc trabalhou na CODECIR, no programa parcerias no morro e estou concluindo um trabalho de politicas publicas sobre esse projeto, porem possuo poucas informaçoes pq nao consegui falar diretamente com alguem q realmente participou ativamente do projeto. Se possivel, poderia me responder algumas perguntas? Infelizmente o trabalho jah eh amanha, se nao tiveres tempo hj, nao tem problema mas se puder me fornecer qualquer informaçaozinha sera mt bem vinda. Obrigada. Meu email eh lara_nanda@hotmail.com
Lara Santos

Unknown disse...

Irmãozinho...força viu....

Abração Paulo

Jamile. disse...

Olá!

Sou estudante de odontologia e acabei de terminar um "estágio" de dois meses na USF Sítio dos Macacos, onde pude acompanhar de perto a situação dessa comunidade.

Você está de parabéns. Apesar de triste, a sua narrativa é muito verdadeira. Crua e ao mesmo tempo romanceada. Só vendo pra crer mesmo.

É triste a situação em que as pessoas de lá vivem, completamente esquecidas. Acho que essas situações deviam ser mais divulgadas.

Atenciosamente, J.