sexta-feira, 29 de maio de 2009

Armênia e Azerbaijão

"Todas as culturas ensinam sobre elas mesmas e todas afirmam naturalmente sua supremacia sobre as demais."
Edward Said



Essa frase está no livro Reflexões sobre o Exílio do pensador social (não consigo definir se ele é cientista social ou historiador) Edward Said. Neste livro, Said tenta fazer uma análise do discurso dos países ocidentais e árabes, onde cada cultura tende a mitificar negativamente a outra, acentuando as diferenças e preconceitos, que por sua vez favorecem à animosidade entre os povos. Hoje, gostaria de falar sobre dois países vizinhos, espremidos pela geografia. Imagine você fazer uma viagem num trem superlotado tendo seu pior inimigo ao seu lado e no sacolejar constante, estabanar-se no rival. Assim, a natureza quis que esse dois povos estivessem lado a lado, com suas diferenças religiosas, resquícios da guerra, manuseio de grandes nações para fomentar o ódio entre eles. Entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, numa região chamada Cáucaso, local habitado desde os mais remotos tempos, onde a Bíblia pressagia suas experiências mais antigas, ponto de passagem dos conquistadores vindos do oriente e do ocidente, o Cáucaso foi palco de povos triunfantes, de destruições de impérios, extermínio de povos, diáspora de tribos.

Entre esses povos que foram expulsos de seu lugar "autóctone" está o povo armeno, que durante o fim da idade média teve que se alojar na costa da atual Turquia, mais ou menos ao norte da ilha de Chipre, para só na era moderna retornarem ao Cáucaso. O povo armeno é um exemplo de dedicação à identidade religiosa. Muito se falam dos judeus, quando dizem que sua religião é sua pátria (choraram tanto que deram uma terra, que se não escorre leite, escorre sangue com mel), mas os armenos permaneceram unidos em torno de sua unidade religiosa. Acredita-se que, atualmente, o rito armeno seja o mais próximo do que se concebia da igreja cristã antiga. Eles permanecem fiéis à tradição deixada pelos discípulos de Jesus ainda no século I d.C. A Armênia foi o primeiro Estado a reconhecer o cristianismo como religião oficial. Enquanto o Império Bizantino esteve de pé, a cultura armena floresceu, sua religião teve respaldo de uma grande nação e com isso, proteção. Mas, quando os turcos derrubam Constantinopla, esse povo vai passar a travar uma verdadeira luta pela sobrevivência de sua identidade cultural.

Os otomanos vão passar a expandir sua influência por toda a eurásia. Quem gosta de ler os romances russos, já deve ter ouvido falar nos povos tártaros. Esses povos eram de origem turca, miscigenados com outras tribos e pequenos reinos, que foram dar origem aos países de nomes estranhos para nós, como Azerbaijão, Tadjiquistão, Turcomenistão. Não vamos demonizar a história desses povos, pois estes eram povos pacíficos (até que sua autonomia estivesse em xeque), comerciantes e propagador de uma cultura riquíssima, tanto nos arabescos como na música e na literatura popular. É uma pena que saibamos tão pouco dos povos daquela região e, quando os imaginamos seguidores do Islã, aí é que nosso preconceito se encorpa mais ainda. Ah, meus amigos, um dia lendo um livro de Fernand Braudel, ele falava sobre a expansão russa no século XVI e da tomada da cidade tártara de Astrakhan. Essa cidade era um dos maiores "shopping centers" daquela época, ponto de intersecção cultural, cidade portuária do Mar Cáspio, o maior mar sem saída para o oceano do mundo. Todo preconceito provém da ignorância em não chegar perto do "monstro". O Azeri foge muito do nosso conceito de muçulmano, onde as mulheres se escondem atrás de uma burka e são "beatas" rigorosas. Deixem-me narrar um episódio que um aluno que assiste aula no mestrado de letras como ouvinte e que faz doutorado nos EUA narrou na sala. Não vou dizer o nome desse competente estudioso porque não sei se ele quer que seu nome saia abertamente sem consulta. Numa palestra ocorrida numa universidade americana, uma filósofa muçulamana estava presente de burka e uma pessoa da platéia não aceitava que uma mulher tão sábia aceitasse se esconder atrás de tanto pano. Prontamente, a filósofa que não me recordo o nome, disse que a mulher ocidental se esconde muito mais do que ela, atrás das maquiagens e cosméticos. Qual mulher saíria de casa pela manhã,do jeito que acordara, com a cara amassada, os cabelos desgrunhados e iria se apresentar em público? O esconderijo é outro e tudo isso é questão cultural que temos que entender. Como diz o mestre Lourival Holanda, não é questão de tolerar, mas de entender. Quem tolera o faz de mal grado, para obedecer à regras sociais. É necessário entender o outro, seja nosso vizinho de muro ou um povo que se encontra distante.



Tenho uma amiga virtual no Azerbaijão, chama-se Refiqe. Ela mora na capital, Baku. Uma moça moderna que não perde em nada para nossas donzelas de shopping, fala russo perfeitamente, além do Azeri (língua do Azerbaijão semelhante ao turco) e o inglês. Não usa burka, porque essa indumentária é usada, apenas, em alguns países cuja cultura adquiriu tal aspecto. Pensaria uma muçulmana radical sobre as mulheres brasileiras: "Allah, coitadas daquelas mulheres. Que condição triste os homens a submeteram! Terem que andar com minúsculas indumentárias, mostrando suas partes íntimas para qualquer um!" E elas podem se escandalizar tanto quanto nós nos escandalizamos com a burka.



Os azerís e os armenos, em geral, se odeiam tanto quanto os judeus e palestinos, por exemplo. A questão é que esse tipo de informação não chega até nós. O Genocídio Armeno provocado pelos turcos no início do século XX e o contra-ataque armeno, ajudado pelas armas russas, que roubaram à força bruta uma parte do território azeri, no sudoeste do país, são as principais causas desse ódio mútuo, sem contar a intolerância religiosa entre cristãos armenos e muçulmanos azerís. Essa minha amiga, Refiqe, por exemplo, tem ódio mortal dos armenos. Já conversei com ela sobre isso, até coisa muito piegas do tipo, violência gera mais violência e etc. Mas, para quem está envolvido é muito difícil entender a realidade de outro ponto de vista. Imaginem se uma pessoa matasse sua mãe e você o visse passando na rua, tranquilamente, todos os dias? É difícil não pensar em vingança.






Como não posso ser juiz desse tipo de imbróglio, dedicar-me-ei a mostrar o quão são ricos os dois povos, para quem sabe pela vitude, encontrem algo de belo no outro. Continuando meu projeto de viagem ao mundo através da música que já passou por Smolensk e São João del Rei, hoje vou promover a paz musical entre Armênia e Azerbaijão, através de dois dos seus maiores compositores. O primeiro, na verdade, não é armeno de nascimento, mas é filhos de armenos, Mikael Tariverdiev. Uma dádiva, a música deste compositor, que trabalhou desde a música erudita até a música popular, passando por trilhas sonoras de cinema. Eu sou suspeito para falar de Tariverdiev, porque sou fã desse álbum que vou deixar pra vocês, traduzindo chama-se "17 momentos". O piano em сумерке в Берлине (сrepúsculo em Berlim) é emocionante! O outro artista, dessa vez, um azeri, é Uzeyir Hacibeyov e esse disco é da década de 1920, uma verdadeira relíquia, com um instrumental formidável, mesclando a cultura tradicional do Azerbaijão com a técnica composicional de Hacibeyov. As partes cantadas são na língua original, azeri. Repito que nosso preconceito provém de nossa ignorância. Espero que vocês se deixem tentar ouvir a música desses grandes compositores. Como seria bom se os dois países rivais conhececem o que de belo e delicado eles são capazes de produzir quando não estão envolvidos na estupidez da guerra. Deixo um forte abraço para todos e desejo um bom fim de semana.
















Ah, para terminar, hoje fiquei muito feliz ao visitar o Google Analytics e pude ver que meu blog foi visitado por gente de países muito distantes e, fiquei pensando, que eles não devem conseguir ler o que está escrito por ser em português. Tinha visita dos seguintes países: Brasil (lógico), Argentina, EUA, Canadá, Inglaterra, Escócia, Polônia, Alemanha, Holanda, Espanha, Portugal, Turquia, Grécia, Áustria, Romênia e Japão. Obrigado a todos os visitantes!




p.s.: as fotos depois do mapa são dos discos de Mikael Tariverdiev e de Uzeyir Hacibeyov, respectivamente.

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