quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

O Prédio

Como descrever com precisão a imagem de um lugar onde não se sabe ao certo se estive ou não dentro dele? Não é minha função buscar respostas, ao que parece, mas, ainda assim, é minha tarefa tentar explicar alguma coisa. Há uma estranha névoa aqui também donde escrevo. O certo era que o lugar era amplo, como uma infinita enfermaria de um hospital sucateado. Talvez o local se parecesse com uma imensa universidade. Talvez fosse mesmo uma grande cidade que vivia ali, dentro daquele vasto prédio. Um vulto passa perto de mim e inquire: “Não seria um desses moderníssimos prédios chineses ou tailandeses de cento e vinte andares? Uma cidade inteira caberia neles.” Mas não. Era um lugar bem decadente, quase uma repartição instalada num labirinto pré-digital: cheios de prontuários, receitas médicas, senhas e contas; que caiam em câmera lenta de um teto abobadado, cuja estranha claridade parecia impedir qualquer definição. Talvez o deus do prédio vivesse lá...

Olhando com mais atenção, observamos uma grande escada de ferro que range ao passar das subidas e descidas de seus transeuntes. Estou inclinado a afirmar que toda uma cidade vive dentro deste prédio que, em algumas paredes, possui um azulejo azul celeste parecido com os dos hospitais. Mas, pelo andar frenético dos passantes, assemelhasse mais a uma portentosa e antiga universidade. Ou talvez, seja mesmo uma cidade, por que não definimos assim de tal modo... Está difícil delimitar as coisas. Se tivesse mais janelas, poderíamos ver o exterior, mas não vejo nenhuma daqui, tampouco me recordo de ter passado perto de alguma janela. Há uma imensa escada no centro deste prédio, larga, onde não cessa a multidão de se movimentar. E range sua estrutura de ferro corroído. Nas periferias da grande escada central, curtos corredores conduzem a novas escadas, mais estreitas, onde a multidão se avoluma mais e quase se toca e se cumprimenta. Quanto mais próximos da escada central, mais denso se torna o nevoeiro. Que danado de lugar é este? À primeira impressão pensei se tratar de um imenso prédio dividido em vinte andares, talvez, Mas, subindo uma das escadas laterais da direita, cheguei à conclusão que todas as escadas laterais encontravam-se conectadas à grande escada central, de maneira que essa grande escada central era o próprio sustentáculo e caminho vital deste enorme prédio de um único andar, mas de altura incalculável aos nebulosos olhos. Eu próprio já não tinha certeza. E como pude afirmar que estava na escada da direita se o tal prédio não tinha referências exteriores?

Assim como quem acorda de um sonho, toda a multidão precipitou-se a andar ainda mais obstinada e uma grande ação coletiva estava prestes a irromper daquele ambiente. Uma voz de locutor de televisão principiou-se a narrar o itinerário de dois grupos de rebeldes rivais que começavam a se caçar dentro da estrutura labiríntica do imenso prédio. Eram centenas de jovens vestidos com as camisas pretas que indicavam um grupo e do outro lado, os de camisa vermelha, ambos se caçando dentro do prédio. Eles passavam em grandes grupos portando porretes, tacos de beisebol, serrotes, paus com pregos na ponta, marretas e muitos martelos de variados tamanhos. Quando se encontravam em algumas das escadas laterais, toda a multidão neutra corria e se atropelava. Alguns mesmos caíam no precipício. Assim como o céu era de uma claridade inexplicável, o fundo do prédio era escuro como um espelho sem luz. Até então, toda a multidão se locomovia em silêncio, mas quando a voz narrativa, locutora, passou a narrar o andamento da disputa entre os grupos rivais, um alvoroço e algazarra passaram a tomar conta de todas as escadarias.

Do fundo da escada central, mais e mais rebeldes com camisas alvinegras subiam as escadas e outros tantos na mesma proporção desciam do alto da escada central com as camisas coloradas. De repente, pareceu-me que toda a multidão tomava partido para um dos lados e me preocupava a neutralidade de minha posição, que parecia encontrar coro apenas na voz locutora que surgia sabe-se lá de onde! A voz narrava em tom de desespero, gritava e quase chorava de tanta comoção: “Minha Nossa Senhora, que absurdo! Alguém tome uma providência, o rapaz está abrindo a cabeça do outro com o martelo! Que cena lamentável!” Eu corria atrás de uma pequena multidão que se espremia numa apertada escada lateral onde as pessoas subiam e tentavam alcançar outra escada que daria em algum lugar-nenhum. Enquanto eu empurrava e era empurrado, o locutor conclamava alguém que fizesse parar a guerra entre os vândalos ensandecidos que arremessavam seus martelos uns contra os outros. A escada central e as laterais começavam a se encher de corpos mutilados e o sangue descia pelos cantos enferrujados delas. “Estão batendo nesse rapaz, na cabeça dele com um martelo. Façam alguma coisa, pelo amor de Deus!” Pranteava a voz narrativa. Uma moça chorava em desespero numa escada que passava perto. Eu quase alcancei sua mão clemente da escada onde estava. Eu temia perguntar algo, apenas fugia da multidão de rebeldes que se enfrentava bravamente e se buscavam obstinadamente nas escadas laterais. Todas as mortes se davam por espancamento incessante e persistente. E se alguém achasse que eu pertencia a algum grupo? Empurrava as pessoas que subiam as escadas enquanto a narração dos espancamentos tornava-se ainda mais comovente. Estava prestes a acreditar que quanto mais reprovativa era a locução, mais obstinada era a batalha selvagem. Não havia quem impedisse tamanha barbaridade e brutalidade? Deixei-me acocorar numa escada à procura de sair de interminável tormento. Onde estariam as portas e janelas? Eu apenas quero sair daqui!

O cachorro está latindo. Busco o relógio ao lado da cama. Ainda vai demorar umas duas horas para amanhecer.