Certas imagens que fazem parte do nosso passado se perdem na trivialidade da rotina, mas hoje, ao conduzir meu velho Volkswagen 78 para a biblioteca da universidade, observei naquela rua de barro, cheia de buracos, que o chefe da oficina que fica há dois quarteirões da minha casa e que funciona desde que me entendo por gente, estava velho, de cabelos brancos, e circundava uma Brasília antiga, meneando sua velha carcaça, buscando soluções. Hoje ele trabalhava sozinho, era manhã alta, umas 9 horas, os seus irmãos deveriam se juntar ao trabalho em breve, talvez estivessem dormindo ou não houvesse, simplesmente, trabalho. É uma oficina mecânica familiar, composta por três irmãos, negros fortes.
Durante muitos anos, aquela rua onde os irmãos da oficina trabalhavam, com seus carros velhos, a roupa suja de graxa, a casa escondida entre os pés de acerola e pitanga, com suas esposas e filhos a circundarem a garagem da oficina, a música de Roberto Carlos no começo de noite de domingo, representava pra mim um local de segurança em nosso bairro assombrado por bandidos espertos. Sempre que voltava da faculdade, tarde da noite, entrava naquela rua mal iluminada, apenas por confiar que naquela casa existiam homens fortes e valentes, que nenhum ladrão ou bandido consentiria em traquinar numa rua onde aqueles trabalhadores faziam a defesa do território. Eles eram os paladinos do bairro.
Minha visão sobre os negros da oficina tem uma explicação: quando eu era criança, meu pai tinha um pequeno comércio, que infelizmente, nunca deslanchava, mas estava sempre aberto no horário comercial. Passava as manhãs de férias com meu pai e, numa daquelas bem quentes de um dia qualquer, ouvimos um alarido na rua do lado. Uma gritaragem, um escarcéu provocado por uma voz feminina: ladrão, ladrão! O meliante tinha fugido com a bolsa e o relógio da mulher. Meu pai, sempre curioso com esses casos, precipitou-se pra rua e ordenou-me ficar tomando conta do pequeno comércio. Não tive dúvidas, desobedeci e fui atrás do velho. Quando dobrei a esquina, avistei o ladrão caído no chão a ser aporreado, como um cavalo atropelado na estrada é degustado pelos urubus, pelos negros da oficina. O ladrão ficou caído no chão, a polícia foi chamada. Os pertences da mulher foram restituídos. O bandido foi-se no camburão. A população agradecia aos irmãos mecânicos. Eles foram os heróis de uma manhã monótona no subúrbio do Recife.
Minha mãe, mesmo depois de crescido, sempre me orientava: “Vá pela rua da oficina que é mais segura.” Involuntariamente, faço este percurso, como o fiz hoje, embora os negros da oficina já estejam velhos, de cabelos brancos e não se acordem mais tão cedo pra trabalhar.
Um comentário:
Lindo texto.
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