“Não chegar ao fim é o que faz a tua grandeza.”
Goethe
Ao terminar de ler a ficção de Jorge Luís Borges, O Milagre Secreto, não pude deixar de comparar a situação vivida pelo personagem tcheco Jaromir Hladik e o escritor russo, Fiódor Dostoievski. Onde ambos vivenciam a divina experiência de prolongar a vida, entabulando uma cruzada contra a morte, distendendo o tempo, agostinianamente, em seus últimos segundos. Na obra de Borges é uma ficção. Mas, na vida de Dostoievski, o fato foi real e a idéia de momento fatal, onde a morte tem cronometrada sua chegada, perdurará, inclusive, em várias de suas obras.
O personagem Jaromir Hladik é um escritor perseguido pelos nazistas na cidade de Praga que após ser capturado pela Gestapo, passa, aflito, seus últimos dias de vida na cela, a conjecturar um milagre que viesse a salvá-lo da morte e onde pudesse realizar seu drama em verso Os Inimigos. Deixarei que Borges o faça pedir: “Um ano inteiro solicitara a Deus para terminar seu trabalho: um ano lhe outorgava sua onipotência. Deus laborava para ele um milagre secreto: matá-lo-ia o chumbo alemão, na hora determinada, mas em sua mente um ano transcorria entre a ordem e a execução da ordem.”
O tempo parara para Hladik. Tendo à sua disposição apenas a memória, passou a talhar, entre a ordem do interlocutor militar, a gota de chuva que molhara seu rosto e o disparo do chumbo, sua obra, assim como pedira na noite anterior à execução: “Não trabalhou para a posteridade, nem ainda para Deus, de cujas preferências literárias pouco sabia. Minucioso, imóvel, secreto, urdiu no tempo seu labirinto invisível. Refez o terceiro ato duas vezes. Eliminou algum símbolo demasiado evidente: as repetidas badaladas, a música. Nenhuma circunstância o importunava. Omitiu, abreviou, amplificou; em certos casos, optou pela versão primitiva. Chegou a querer o pátio, o quartel; um dos rostos diante dele modificou sua concepção do caráter de Roemerstadt. Descobriu que as árduas cacofonias que tanto alarmaram Flaubert são meras superstições visuais: debilidades e moléstias da palavra escrita, não da palavra sonora... Pôs fim a seu drama: não lhe faltava resolver senão um único epíteto. Encontrou-o; a gota d água resvalou em sua face. Iniciou um grito enlouquecido, moveu o rosto, o quádruplo disparo o derrubou.”
No dia 22 de Dezembro de 1849, na cidade de Petersburgo, Rússia, ocorreu um fato parecido com o que Borges relatou anteriormente. O escritor Dostoievski, está prestes a ser fuzilado por alta traição ao Estado russo, por ter se envolvido com o grupo socialista do ufanista Petrachevski. Nos dias em que antecederam seu fuzilamento, na cela Alexim de Alexandr, Dostoievski está crepitante com o cada vez mais próximo momento de sua execução. Essa tortura psicológica onde o mesmo, assim como Hladik, apoquentava-se sobre o segundo final antes da bala perfurar sua nuca, veio a ser tratada no livro O Idiota, quando o Príncipe Mischkin pede a Adelaída Epantchiná que pinte o quadro de um homem que estaria a segundos de ter sua cabeça decepada por uma lâmina guilhotinante. Ainda em seus relatos sobre a vertigem causada pela “sensação de torre” da epilepsia, iremos encontrar vestígios de seu drama momentos antes da execução. Os personagens Ivan Karamazov, Smerdiakov e o Príncipe Mischkin são relatos dessa “sensação de torre”, experimentada por Dostoievski.
A epilepsia em Dostoievski teria se agravado por esse período, atingindo novos ápices no período posterior, na Sibéria. Mas, o drama da morte cronometrada certamente afetou seus “frágeis” nervos. Costumeiramente, lemos grandes críticos examinarem os nervos de Dostoievski como sendo frágeis, mas manter a lucidez de um incomparável escritor até o último mês de vida (Dostoievski morreu com 60 anos), definitivamente, não é para escritores de nervos frágeis. A experiência do fuzilamento modificou a relação que Dostoievski tinha com a fé. Quase que apostando com Deus, ou a morte, em sua última carta, endereçada ao irmão mais velho e melhor amigo, Mikhail, Dostoievski espera por um milagre: “Ah! Se eles me deixassem não morrer! Que coisa vasta seria cada minuto a mais, Meu Deus.”
No dia do fuzilamento, no pátio da fortaleza Piotr-Pavlovsk, três dos condenados se encontram amarrados ao poste. Não me atreverei a conjecturar o que se passava pela cabeça do gênio russo, embora ele próprio tenha narrado essa experiência em alguns de seus personagens, mas acredito que algo em comum ele tenha tido com Hladik. A necessidade de tempo para deixar uma grande obra que residia em seu espírito e que seria de enorme importância para a humanidade. Um soldado corre com uma carta do Tsar Nikolai I na mão, mandando suspender o fuzilamento e enviando os condenados para trabalhos forçados na Sibéria. O condenado Grigoriev enlouquecera para sempre após essa traumática experiência. Mas, o milagre ocorrera! A partir desta data, Dostoievski oscilará entre sua descrença e seu débito para com a divindade. Esse era, sem dúvida, o peso maior que haveria de carregar, o peso que fizera enlouquecer Ivan Karamazov, o personagem que mais se parece com o criador.
O tempo que a gota da chuva demora para descer do rosto de Dostoievski durará quase 32 anos e enquanto Deus o esperava, assistiu um homem desesperado em convencer-se do milagre e em difundir as turbulências dos recônditos da alma. A grandeza de Borges em resgatar a alucinação de Hladik faz-nos sensibilizar com o drama de Dostoievski, onde as duas vidas se convergem, onde o fantástico adquire o aspecto de real, na imagem de um homem que se curva perante o infinito.
* Esse texto é meu, Odomiro Fonseca, vulgo Dodô. As imagens acima são do jovem Dostoievski então com 26 anos e nas vésperas de ser preso. A outra imagem é daquela que seria a última escrita de Dostoievski, a carata endereçada ao irmão Mikhail, dias antes da condenação.