domingo, 31 de maio de 2009

Os Homens Bicentenários

Hoje eu quero prestar homenagem a dois aniversariantes ilustres: o austríaco Franz Joseph Haydn e o ucraniano/russo Nikolai Vassilievitch Gógol, que estão completando 200 anos, Haydn comemora sua morte e Gógol seu nascimento, no ano de 2009. Para tal data, homenagens estão sendo prestadas em vários locais do mundo, com grande justiça.

Hoje, aqui na cidade do Recife, nesse domingo, aparentemente, de poucas opções, a Orquestra Sinfônica do Recife vai homenagear o compositor Haydn com um repertório exclusivamente seu. A apresentação se dará gratuitamente no belíssimo Teatro de Santa Isabel, à partir das 18h e a entrada é gratuita. Que maravilha! Quem conhece e entende de música erudita, coloca Haydn nos mesmo patamares que Beethoven, Mendelssohn e Mozart, seus contemporâneos.

A outra homenagem, também gratuita, acontecerá em São Paulo, desta vez para reverenciar o escritor do período romântico russo, Nikolai Gógol. Um dia inteiro de palestras, com um time de professores respeitabilíssimos, capitaneado pelo professor fundador do Departamento de Língua e Cultura russa da USP, o doutor Bóris Schnaiderman. As palestras ainda contarão com as presenças de Andrey Kofman, Denise Sales, Tatyana Belinky, Aurora Bernardini e Dmitri Gurievitch. Todos debatendo a importância do escritor e professor de História, Gógol. Logicamente, o escritor de Almas Mortas, não ficou mundialmente famoso pelas aulas de História na universidade de Petersburgo. Gógol era um homem excêntrico, complexado com sua compleição física, um tanto avolumado. Vez por outra, se metia a fazer jejuns prolongados, pois condenava a gula que tanto o atormentava. Era hipocondríaco. Chegou a queimar boa parte de suas obras inéditas, inclusive um dos possíveis finais de Almas Mortas. Por falar nesse livro, este é uma das maiores odes ao povo russo. A viagem de Tchitchikov pelas propriedades rurais, cheias de personagens típicos, com direito a devaneios sobre a nataureza do país, uma interminável viagem em busca de uma estabilidade inalcançada.

Gógol e Haydn, duas oportunidades para se contemplar e aprender um pouco mais sobre as obras desses homens. Nosso profundo respeito e lembrança à memória dos grandes homens, imortais. Deixarei de presente dois links, como sempre faço, para que vocês possam sempre que visitarem o blog, terem a oportunidade de acessar algo relacionado sobre quem se fala por aqui. Então, primeiro deixarei o link da USP para quem quiser se matricular nessa palestra que, repito, é de graça, com os maiores estudiosos na obra de Gógol. Se minha bolsa de mestrado tivesse saído, quem mais estaria lá, seria eu. Falando nisso, ai meu Deus! Que martírio essa espera! Tenho tido uma paciência de fazer inveja a Jó, pois há um ano não tenho renda quase nenhuma, com 28 anos e sonhando com um futuro que parece uma miragem no deserto. O outro link é sobre A Criação de Haydn, no site PQP Bach. Bom domingo e que a semana seja proveitosa. Deixei duas opções para a semana para os residentes em Recife e São Paulo.


Palestra na USP: http://www.fflch.usp.br/sce/cursos/2_sem_intern_gogol.htm

A Criação de Haydn: http://pqpbach.opensadorselvagem.org/franz-joseph-haydn-1732-1809-die-shopfung-hob-xxi-2/

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Armênia e Azerbaijão

"Todas as culturas ensinam sobre elas mesmas e todas afirmam naturalmente sua supremacia sobre as demais."
Edward Said



Essa frase está no livro Reflexões sobre o Exílio do pensador social (não consigo definir se ele é cientista social ou historiador) Edward Said. Neste livro, Said tenta fazer uma análise do discurso dos países ocidentais e árabes, onde cada cultura tende a mitificar negativamente a outra, acentuando as diferenças e preconceitos, que por sua vez favorecem à animosidade entre os povos. Hoje, gostaria de falar sobre dois países vizinhos, espremidos pela geografia. Imagine você fazer uma viagem num trem superlotado tendo seu pior inimigo ao seu lado e no sacolejar constante, estabanar-se no rival. Assim, a natureza quis que esse dois povos estivessem lado a lado, com suas diferenças religiosas, resquícios da guerra, manuseio de grandes nações para fomentar o ódio entre eles. Entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, numa região chamada Cáucaso, local habitado desde os mais remotos tempos, onde a Bíblia pressagia suas experiências mais antigas, ponto de passagem dos conquistadores vindos do oriente e do ocidente, o Cáucaso foi palco de povos triunfantes, de destruições de impérios, extermínio de povos, diáspora de tribos.

Entre esses povos que foram expulsos de seu lugar "autóctone" está o povo armeno, que durante o fim da idade média teve que se alojar na costa da atual Turquia, mais ou menos ao norte da ilha de Chipre, para só na era moderna retornarem ao Cáucaso. O povo armeno é um exemplo de dedicação à identidade religiosa. Muito se falam dos judeus, quando dizem que sua religião é sua pátria (choraram tanto que deram uma terra, que se não escorre leite, escorre sangue com mel), mas os armenos permaneceram unidos em torno de sua unidade religiosa. Acredita-se que, atualmente, o rito armeno seja o mais próximo do que se concebia da igreja cristã antiga. Eles permanecem fiéis à tradição deixada pelos discípulos de Jesus ainda no século I d.C. A Armênia foi o primeiro Estado a reconhecer o cristianismo como religião oficial. Enquanto o Império Bizantino esteve de pé, a cultura armena floresceu, sua religião teve respaldo de uma grande nação e com isso, proteção. Mas, quando os turcos derrubam Constantinopla, esse povo vai passar a travar uma verdadeira luta pela sobrevivência de sua identidade cultural.

Os otomanos vão passar a expandir sua influência por toda a eurásia. Quem gosta de ler os romances russos, já deve ter ouvido falar nos povos tártaros. Esses povos eram de origem turca, miscigenados com outras tribos e pequenos reinos, que foram dar origem aos países de nomes estranhos para nós, como Azerbaijão, Tadjiquistão, Turcomenistão. Não vamos demonizar a história desses povos, pois estes eram povos pacíficos (até que sua autonomia estivesse em xeque), comerciantes e propagador de uma cultura riquíssima, tanto nos arabescos como na música e na literatura popular. É uma pena que saibamos tão pouco dos povos daquela região e, quando os imaginamos seguidores do Islã, aí é que nosso preconceito se encorpa mais ainda. Ah, meus amigos, um dia lendo um livro de Fernand Braudel, ele falava sobre a expansão russa no século XVI e da tomada da cidade tártara de Astrakhan. Essa cidade era um dos maiores "shopping centers" daquela época, ponto de intersecção cultural, cidade portuária do Mar Cáspio, o maior mar sem saída para o oceano do mundo. Todo preconceito provém da ignorância em não chegar perto do "monstro". O Azeri foge muito do nosso conceito de muçulmano, onde as mulheres se escondem atrás de uma burka e são "beatas" rigorosas. Deixem-me narrar um episódio que um aluno que assiste aula no mestrado de letras como ouvinte e que faz doutorado nos EUA narrou na sala. Não vou dizer o nome desse competente estudioso porque não sei se ele quer que seu nome saia abertamente sem consulta. Numa palestra ocorrida numa universidade americana, uma filósofa muçulamana estava presente de burka e uma pessoa da platéia não aceitava que uma mulher tão sábia aceitasse se esconder atrás de tanto pano. Prontamente, a filósofa que não me recordo o nome, disse que a mulher ocidental se esconde muito mais do que ela, atrás das maquiagens e cosméticos. Qual mulher saíria de casa pela manhã,do jeito que acordara, com a cara amassada, os cabelos desgrunhados e iria se apresentar em público? O esconderijo é outro e tudo isso é questão cultural que temos que entender. Como diz o mestre Lourival Holanda, não é questão de tolerar, mas de entender. Quem tolera o faz de mal grado, para obedecer à regras sociais. É necessário entender o outro, seja nosso vizinho de muro ou um povo que se encontra distante.



Tenho uma amiga virtual no Azerbaijão, chama-se Refiqe. Ela mora na capital, Baku. Uma moça moderna que não perde em nada para nossas donzelas de shopping, fala russo perfeitamente, além do Azeri (língua do Azerbaijão semelhante ao turco) e o inglês. Não usa burka, porque essa indumentária é usada, apenas, em alguns países cuja cultura adquiriu tal aspecto. Pensaria uma muçulmana radical sobre as mulheres brasileiras: "Allah, coitadas daquelas mulheres. Que condição triste os homens a submeteram! Terem que andar com minúsculas indumentárias, mostrando suas partes íntimas para qualquer um!" E elas podem se escandalizar tanto quanto nós nos escandalizamos com a burka.



Os azerís e os armenos, em geral, se odeiam tanto quanto os judeus e palestinos, por exemplo. A questão é que esse tipo de informação não chega até nós. O Genocídio Armeno provocado pelos turcos no início do século XX e o contra-ataque armeno, ajudado pelas armas russas, que roubaram à força bruta uma parte do território azeri, no sudoeste do país, são as principais causas desse ódio mútuo, sem contar a intolerância religiosa entre cristãos armenos e muçulmanos azerís. Essa minha amiga, Refiqe, por exemplo, tem ódio mortal dos armenos. Já conversei com ela sobre isso, até coisa muito piegas do tipo, violência gera mais violência e etc. Mas, para quem está envolvido é muito difícil entender a realidade de outro ponto de vista. Imaginem se uma pessoa matasse sua mãe e você o visse passando na rua, tranquilamente, todos os dias? É difícil não pensar em vingança.






Como não posso ser juiz desse tipo de imbróglio, dedicar-me-ei a mostrar o quão são ricos os dois povos, para quem sabe pela vitude, encontrem algo de belo no outro. Continuando meu projeto de viagem ao mundo através da música que já passou por Smolensk e São João del Rei, hoje vou promover a paz musical entre Armênia e Azerbaijão, através de dois dos seus maiores compositores. O primeiro, na verdade, não é armeno de nascimento, mas é filhos de armenos, Mikael Tariverdiev. Uma dádiva, a música deste compositor, que trabalhou desde a música erudita até a música popular, passando por trilhas sonoras de cinema. Eu sou suspeito para falar de Tariverdiev, porque sou fã desse álbum que vou deixar pra vocês, traduzindo chama-se "17 momentos". O piano em сумерке в Берлине (сrepúsculo em Berlim) é emocionante! O outro artista, dessa vez, um azeri, é Uzeyir Hacibeyov e esse disco é da década de 1920, uma verdadeira relíquia, com um instrumental formidável, mesclando a cultura tradicional do Azerbaijão com a técnica composicional de Hacibeyov. As partes cantadas são na língua original, azeri. Repito que nosso preconceito provém de nossa ignorância. Espero que vocês se deixem tentar ouvir a música desses grandes compositores. Como seria bom se os dois países rivais conhececem o que de belo e delicado eles são capazes de produzir quando não estão envolvidos na estupidez da guerra. Deixo um forte abraço para todos e desejo um bom fim de semana.
















Ah, para terminar, hoje fiquei muito feliz ao visitar o Google Analytics e pude ver que meu blog foi visitado por gente de países muito distantes e, fiquei pensando, que eles não devem conseguir ler o que está escrito por ser em português. Tinha visita dos seguintes países: Brasil (lógico), Argentina, EUA, Canadá, Inglaterra, Escócia, Polônia, Alemanha, Holanda, Espanha, Portugal, Turquia, Grécia, Áustria, Romênia e Japão. Obrigado a todos os visitantes!




p.s.: as fotos depois do mapa são dos discos de Mikael Tariverdiev e de Uzeyir Hacibeyov, respectivamente.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

O Galho Morto

Vou começar uma postagem sobre não sei bem o quê. Estou munido de pensamentos desarticulados que clamam por algum sentido e, talvez, nesse espaço de palavras minhas, possam desacorrentarem-se da solidão da minha convivência. Mas, as amarras do meu ego talvez não permitam que esse pássaro lance vôos por sobre distantes vales de entendimento. No silêncio da madrugada, essa quando não chove, tenho tido encontros memoráveis com forças superiores que se apresentam ao chamado da palavra correta. Assim, mefistofélico, na solidão do meu quarto, tendo como companhia algumas teias de aranha, paredes riscadas, manchas de chuva pelo chão, tenho encontrado a buscada harmonia nos, nem sempre, silenciosos diálogos com os textos. Mas, o que faz irromper do âmago do ser, a necessidade de escrever? Que tal angustia, que sei que não é só minha, faz irromper dos recônditos da essência a vontade de gritar ao mundo que algo está em desacordo entre o eu universal e a sonhada comunidade? Podemos nos alimentar de nossa solidão?

Nos últimos dias, a solidão tem sido a companheira mais respeitável com quem tenho convivido, porque nela posso organizar meus planos, dialogar com os mortos. O homem solitário se assemelha ao bruxo, pois enquanto todos dormem seu sono operário, a janela do solitário emite uma luz escondida por entre os feixes da madeira. Pensará o sonâmbulo sobre aquela luz: o que danado aquele cidadão faz acordado às três da manhã? Deve planejar alguma coisa proibida, concatenar idéias extraordinárias. É, certamente, um ser estranho. Assim, como diz Octavio Paz na Dialética da Solidão, o solitário é um perigo para a nação, para a sociedade. É um galho morto que precisa ser retirado, pois pensa, no sentido de pesar, também, toda a estrutura.

Distanciar-se do cotidiano, do trivial, é uma necessidade para quem quer entender a sociedade ou simplesmente se afastar dessa. Não proponho uma ruptura total, pois sei que é impossível viver sem buscar o outro, o comparativo quando não há comunhão. Há um dia na semana em que o corpo irrompe contra toda a razão construída e persegue algum espírito assemelhável. Mas todo o ato é falho e quando muito arranha ainda mais a carne viva. Afastar-se é uma maneira de compreender o que está em desacordo, distanciado o foco dos problemas, abrange-se. Assim, Zaratustra se afastou dos homens, Jesus Cristo tem um hiato entre os 12 e os 30 anos, o Buda mergulhou no silêncio para compreender o mundo. Dizia o poeta alemão Goethe: "O que não entendes, também não possuis." Assim, a própria condição humana estará em xeque se não houver uma explicação plausível para levantar pela manhã.

Comecei sem saber o que dizer e talvez não tenha dito nada. Apenas quero deixar o pensamento voar, distante, vagarosamente, ao sabor das correntes adornianas. Assim, o solitário caminha pelo quarto, em seu vaguear neurótico, analisa poeticamente seu devaneio, esquece-se do que articulou há pouco. Não quer carimbar documentos, vestir a farda ou bater o ponto no escritório. Percorrendo as paredes do quarto, observa uma frase escrita há muito tempo, quase apagada, um borrão na parede, um salmo: Rompeu-se a corda e o pássaro vôou, livre.

sábado, 16 de maio de 2009

Sítio dos Macacos



Durante dois anos da minha vida de jovem adulto, pude dedicar-me ao trabalho nas áreas de morro da cidade do Recife. Era Técnico Social do Parceria nos Morros, um programa ligado à Defesa Civil, onde servíamos de elo entre a Prefeitura e os moradores na tentativa de solucionar os problemas de deslizamentos de barreiras e de acessibilidade nas áreas de morro. Nesse período em que trabalhei lá, muitas experiências adquiri, trabalhando oito horas por dia dentro dos morros da Zona Norte, e nas épocas de inverno, até nos fins de semana. Nessa manhã de sábado nublada, estando todo o Nordeste assombrado com a intensidade das chuvas, lembrei-me de um dia de Maio de 2006, quando tive que prestar auxílio à equipe da CODECIR e fazer o mapeamento das necessidades dos moradores naquele dia de tempestade na localidade de Sítio dos Macacos.


Com absoluta certeza, a grande maioria dos leitores do blog não faz a menor idéia de onde fica Sítio dos Macacos, portanto, tentarei ajudá-los nessa missão de localizar essa comunidade carente. Trabalhei por dois anos no Parceria nos Morros e sua estação situava-se no bairro da Guabiraba, zona norte do Recife. Esse bairro, cheio de morros e córregos, se espreme entre a BR-101, no sentido Recife-João Pessoa e o denso bairro de Nova Descoberta. Sítio dos Macacos fica na outra margem da BR-101, quem vem de João Pessoa para o Recife, logo após passar pelo CT do Náutico e a indústria São Mateus, verá do seu lado direito uma placa de motel amarela, seguindo esta estrada por mais quatro quilômetros, aproximadamente, estaremos no Sítio dos Macacos. A estrada é péssima, de barro, não existe iluminação elétrica, apenas o resquício de mata atlântica e os sons da floresta.



Um certo dia, uma quinta-feira, me lembro bem. Estava caindo um verdadeiro dilúvio no Recife e a CODECIR (Defesa Civil do Recife) escalou uma equipe para analisar os casos mais graves, onde a prefeitura deveria ser chamada para intervir colocando lonas plásticas, rampando os barrancos, transferindo as famílias para os abrigos e outras atitudes emergenciais do tipo. A kombi em que estávamos, guiada pelo Sr. Mizael, seguia lentamente, ziguezagueando pela péssima estrada em direção ao Sítio dos Macacos. Eu, muito cansado, pois já estávamos há dez dias nesse trabalho incessante nos morros, até nos fins de semana, fui advertido pelo Sr. Mizael, dizendo que lá eu iria encontrar uma das comunidades mais pobres que já tinha visto em vida. A chuva caia furiosamente, formava pequenas correntezas pelo caminho e aquele aspecto de floresta, dava um certo ar de que estávamos a mergulhar numa verdadeira guerrilha tropical.



Aos trancos e barrancos, chegamos em Sítio dos Macacos, uma comunidade formada, basicamente, por uma única rua, que apesar de tê-la escrito no relatório tantas vezes, não me recordo nesse momento. Saí com a capa de chuva amarela, prancheta molhada nas mãos, óculos embassado, a água com mais de um palmo de altura dificultava nossa caminhada, apesar das botas apropriadas. Saí visitando as casas, era nove horas da manhã quando entrei na primeira residência onde um homem ainda embriagado, magro, sem camisa, me atendeu. O homem se queixou que naquela comunidade tudo faltava. Levou-me no quintal de sua casa e percebi que todos os dejetos da casa eram lançados num pequeno córrego fétido que passava atrás da rua. Com aquela cheia, certamente, haveria de trazer as sujeiras para as casas. Enojei-me da situação. Mas, não havia o que fazer, a kombi só voltaria para estação no fim da tarde e teríamos que encarar aquela realidade constrangedora. Nossa sorte era que passaríamos pouco tempo por lá, imaginem quem vive naquela localidade e tem que conviver com toda a sorte de dissabores, desde a nuvem de mosquitos até ausência quase completa de civilidade. Visitei várias casas durante o dia todo, sempre acompanhado de uma técnica em engenharia, que avaliava o risco de acidente naquelas barreiras.


Entre as residências visitadas, duas me chamaram a atenção: uma casa gerenciada por uma menina de 10 anos e a Barraca de Biu Tempero. A casa da menina de 10 anos foi a situação mais dramática que já encontrei em toda a minha vida. O caso mais traumático de pobreza. Gostaria que minhas palavras aqui descritas fossem apenas ficção e que eu pudesse inventar o nome dos participantes apenas para entreter vocês, leitores do blog, mas trata-se de um caso verdadeiro. Pedi licença para entrar numa casa de taipa (barro e madeira) e quem me recebeu foi essa menina de 10 anos, cujo nome não me recordo. Ela tinha o cabelo todo assanhado, era branca, assim como seus cinco irmãos. Perguntei pela mãe e a menina disse que a mesma tinha saído e não tinha hora pra voltar. Não me atrevi a perguntar a profissão da mãe. A menina disse no relatório apenas que a mãe era desempregada e que não tinha pai. A casa não tinha muitos móveis, recordo-me de um sofá rasgado, com cheiro de mofo acentuado, por causa da chuva. Fiz a entrevista em pé. Algumas panelas velhas. As crianças olhavam para mim curiosas. A mais velha assumia o papel de chefe, falava seriamente, carregando aquele olhar triste e forte das crianças que passam por grandes tribulações na vida. Algumas pessoas conservam a ingenuidade da infância até a fase adulta, mas outras, ainda crianças, tornam-se maduras precocemente. A menina de 10 anos colocou a irmã caçula sentada no chão, era uma criança de braço, devia ter uns 10 meses, estava com o corpo todo ferido e marcado por perfurações de mosquito. Sua bundinha branca sentada naquele chão frio e molhado. Pedi à menina que tirasse a bebê do chão, pois assim ela pegaria uma gripe e que colocasse alguma roupinha nela. Depois da entrevista feita, escrevi embaixo do relatório que aquela família precisava de algum amparo institucional, pois aquelas seis crianças estavam em estado de miséria profunda. Sobreviviam de 65 reais mensais advindos do Bolsa Família. Ao me despedir da menina de 10 anos, dei dez reais pra ela e mais dois tickets no valor de quatro reais, cada. Era tudo o que carregava na carteira. Fiquei sem o dinheiro do almoço. Depois que me despedi da menina e alcancei a rua, chorei sozinho. Nesse dia, Seu Mizael dividiu o almoço dele comigo. Ainda hoje, tenho contato com ele e o tenho como amigo. Discutíamos assuntos referentes à Biblia quase todos os dias, pois o mesmo é evangélico.



No período da tarde, uma outra residência despertou minha atenção. Na verdade, um estabelecimento comercial: a barraca de Biu Tempero. O nome da barraca era escrito numa plaquinha de madeira muito pequena pintada com tinta vermelha. No local, na parte da frente, fica uma barraquinha comum que vende: cigarro, picolé, bombons, fuba e etc. Tudo muito humilde, nada muito sortido, com espaços vazios nas prateleiras. Do lado da barraquinha, tinha um pequeno portão de grade que levava ao bar, com umas três ou quatro mesas de ferro, uma mesinha pequena de sinuca, uma caixa de som velha que estava desligada e atrás do recinto um chiqueiro com uns quatro porcos bem gordos e rosados. Os escrementos dos porcos eram levados pela chuva e trazidos para o salão do bar. Apenas um consumidor se encontrava no local. Um sujeito magro, sem camisa, talvez fosse o mesmo do começo da narrativa. Alí, os homens se parecem muito entre si, fisicamente, assim como os macacos. Ainda no recinto, a todo momento, uma mulher semi-nua transitava, com um shortinho preto colado e lançando olhares insinuantes que me fizeram concluir que aquele local tinha três ambientes: barraca, bar e prostíbulo.


O relógio marcava 16:30 e todos os técnicos da prefeitura, cansados, se aglomeravam ao redor da kombi, que ainda atolou no caminho de volta. Nesse dia só voltei pra casa à noite, entristecido, o corpo fatigado. No outro dia, pela manhã, estaríamos em outra comunidade enfrentando variadas realidades. Quando olho pra trás e vejo que trabalhei dois anos na Guabiraba, lecionei dois anos para alunos dos Coelhos e do Coque, lecionei em Santo Amaro... fico pensando que talvez minha quota de contribuição social esteja realizada e que posso, inclusive, vender minha mão de obra para alguma empresa que me pague bem. Porém, quando escolhi ser professor, já deveria saber o quão espinhoso seria o caminho e espero ter saúde física e mental para prosseguir nessa jornada. Mas, amigos meus, nesse final de postagem, muito pouco importa falar de minhas aspirações sociais, o que interessa é saber se os governos que gastam rios de dinheiro em publicidade fizeram alguma coisa pelos moradores do Sítio dos Macacos e de outras localidades perdidas nesse cesto de caranguejos que é a cidade do Recife. Só para concluir, vocês devem se perguntar o por quê desse nome, Sítio dos Macacos? Após sair da barraca de Biu Tempero, reconheci uma casa abandonada no meio da mata e uma linha férrea. Alí, há algumas décadas, ficava a estação Macacos do trem que saia de Recife e ia pro interior. Talvez aquele lugar já tivesse vivido momentos mais dignos, mas isso pode ser assunto pra uma outra história, uma pesquisa histórica, quem sabe.

p.s.: nenhuma das fotos foram tiradas em Sítio dos Macacos, mas em outras regiões, enquanto trabalhei na Defesa Civil. A primeira foi no Alto do Refúgio e a segunda no Córrego da Areia.

terça-feira, 5 de maio de 2009

São João del Rey

Há menos de um ano estive na cidade mineira de São João del Rey. Um local que combina a pacatez das serras com a modernidade proporcionada pelo agronegócio. Uma cidade que conserva hábitos do século XIX, mas que também possui todas as características do capitalismo urbano. Durante o encontro de historiadores que ocorreu em julho de 2008, a cidade de 80.000 pessoas, recebeu mais dois mil visitantes. Estudantes que não se intimidavam perante o ritmo mineiro da cidade: andavam sem camisa, se embebedavam nas praças, faziam algazarra. Não vou dizer que os moradores não estavam acostumados com tal pândega, pois na cidade existe uma universidade federal e, vez por outra, uma horda de estudantes desembarca naquelas serras de ar fresco.

Certa manhã, resolvi passear pela cidade e um ônibus velho me chamou a atenção. Era azul, estava bem desgastado, parecia aqueles ônibus escolares dos Estados Unidos, só que o veículo em questão aparentava uns quarenta anos de uso. Resolvi trocar uma conversa com o motorista, um senhor de cabelos brancos, com sotaque mineiro bem carregado e que fazia o percurso Cananéia-São João del Rey há mais de trinta e cinco anos. Perguntei o que poderia encontrar de bom na cidade de Cananéia. Muito sinceramente, o motorista disse que nada, que lá não tinha cachoeira, nem igreja histórica, nem rua asfaltada, que era um vilarejo muito pequeno e que não tinha nada a oferecer ao turista. Pois bem, era exatamente o que eu queria para aquele ressacado dia. O motorista tentou protelar minha decisão dizendo mais uma vez que nada ia encontrar lá. Depois de quase implorar, ele aceitou me levar no ônibus até Cananéia, com mais cinco moradores que vieram entregar produtos da roça na cidade.

O caminho era por estrada de barro, com uma paisagem que só quem teve a oportunidade de visitar Minas Gerais sabe como é. Aquele mato, gente andando a cavalo, o ar frio dentro dos pulmões, um riacho aqui e acolá, gado gordo no roçado. Ao chegar em Cananéia, encontrei aquilo mesmo que o motorista advertiu. Passeei por suas poucas ruas de barro. Tomei acento numa mesa de bar e comecei a conversar com os velhinhos da vila, que sorviam rapidamente os copos amarelos de cachaça mineira. Contei que era de Recife e trocamos muitas idéias sobre as histórias antigas da região e eu a contar como era a vida na histórica cidade maurícia. Me interessou o fato dos moradores simples saberem de cor as histórias do tempo do Brasil Império. Os mais simples, que falavam aquele português matuto, dos livros de Guimarães Rosa, sabiam a história de Tiradentes e os outros inconfidentes. Contavam das visitas do imperador à Minas. E assim, entre uma lapada de caninha da roça e outra, uma galinha guizada, a prosa se estendeu pela tarde com direito a muitos minutos de silêncio onde todos olhavam ao longe para as serras e os vales distantes.

No fim da tarde, o ônibus velho que faz o percurso Cananéia-São João del Rey duas vezes por dia, voltou pra São João e, a cidade se tornou mais bonita aos meus olhos ébrios. Eram sete horas da noite e o frio começava a descer sobre os moradores. A cidade com seus muitos museus, igrejas, praças, pontes, a maria fumaça, tudo remetia a um tempo que passara, mas que de alguma forma permanecia vivo. Durante o século XIX, São João del Rey era a capital da música erudita no Brasil. Aliás, sejamos justos, Minas Gerais e sua tradição barroca era palco do que se melhor produzia em matéria de música no Brasil.

Continuando meu trabalho que pretende unir os estudos sobre a cidade e seus moradores ilustres, vou deixar de presente para vocês (retirados do pqp bach) uma obra de um morador da cidade de São João del Rey, o Padre José Maria Xavier. O nome da obra é Ofício de Trevas e foi executado pela primeira vez na semana santa de 1871. Acho uma experiência importante, até para quem não tem fé, estar em contacto com uma música de excelente qualidade produzida no Brasil Império. Particularmente, essa obra caiu bastante no meu gosto, escuto-a até para estudar. Através desta postagem, dedico meu apreço à cidade de São João del Rey e faço minha homenagem ao Padre José Maria Xavier, ajudando a prolongar sua existência entre nós divulgando seu trabalho. Também dedico essa postagem aos moradores de Cananéia, onde espero voltar algum dia e tomar uma caninha gostosa entre uma prosa matuta. Até a próxima, sô!

Ofício de Trevas:

parte 1: http://rapidshare.com/files/204441796/CVL_-_Pe._J._M._Xavier_-_Of_cio_de_Trevas_-_Vol._1.rar

parte 2: http://rapidshare.com/files/224470042/CVL_-_Pe._J._M._Xavier_-_Of_cio_de_Trevas_-_Vol._2.zip

O Medo de Arriscar

No último sábado vivi, entre pessoas queridas, momentos especiais. Raros momentos onde podemos dançar, falar bobagens despretenciosas, não se preocupar com as enfadonhas obrigações da vida. Durante a noite que transcorria entusiasmada, um olhar feminino se entrepôs entre mim e a festa. Contemplei-o naquela penumbra. Desejei fazer um comentário, mas tive medo. No primeiro enlace, ela pareceu responder ao meu olhar admirado, delicadamente. Mas, ante à possibilidade de sofrer algum maltrato verbal, retrocedi em minhas esperanças. Onde antes havia magia, habitou a melancolia.

Nessa última noite que passou, aquele olhar feminino visitou meus sonhos. Por isso, essa necessidade de relatar. Sua saia violeta transformara-se em flor. Um vale extramamente colorido se configurava ao redor. Doces formas, beijava.

Mas, ao acordar, com holofotes a atingir meu olhar, percebi que o sonho é uma formosa mentira. Essência perdida. Não captaria mais o que se deixou de viver. Deixei-me cair num deserto vivo. Eclipsei-me na aurora da vida.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Smolensk e Mikhail Glinka




Olá amigos visitantes do blog. Espero que estejam todos em paz. A partir de hoje vou fazer algumas postagens em que pretendo envolver dois temas que sempre gosto de analisar ou resgatar: as cidades e seus ilustres cidadãos. Hoje, gostaria de postar sobre o compositor russo Mikhail Glinka, um artista que pode ser considerado um dos pilares que sustentam a cultura russa no século XIX em seu período romântico. Glinka foi o primeiro a escrever óperas em língua russa. Também é considerado o pai da música erudita naquele país que, posteriormente daria ao mundo, artistas conceituados como Piotr Ilitch Tchaikhovski, Modest Mussorgskii, Rimski-Korsakov, Sergei Prokofiev, Sergei Rachmaninov, entre tantos outros. Assim como a literatura russa não poderia se desenvolver sem a competência de Pushkin, a música talvez não tivesse o mesmo impulso se não houvesse a presença histórica de Glinka.

Glinka nasceu em Smolensk, uma cidade muito antiga que já no século IX d.C. gozava de importante prestígio para o comércio do leste, pela rota do Rio Dnieper. A mãe das cidades russas, Kiev, era capital de um reino importante que servia de ligação entre o comércio realizado entre Vikings suecos, Bizantinos e até Árabes. Quando se imagina que a Idade Média é um período de estagnação e atraso, é porque os historiadores ficam muito presos ao que acontece na França, Inglaterra e Alemanha (aliás, esses nomes nem existiam como nação), porque no leste europeu era constante a troca de conhecimentos e comércio, desde o Báltico até o Mediterrâneo Bizantino.

A cidade de Smolensk é de uma importância transcedental para o povo russo. Ela é um símbolo de luta do povo e do amor que os mesmos tem em relação à fria terra. Smolensk foi destruída pelo menos três vezes, sendo reconstruída posteriormente. A primeira derrocada vem com a invasão dos mongóis no século XIII, sem falar nos assaltos feitos pelos Petchenegues, povos da estepe que causaram tormentos constantes ao Principado de Kiev. Smolensk padece para ser reconstruída no resplandecer do Império Russo. A cidade já esteve sob domínio da coligação Polônia-Lituânia, quando estes foram os maiorais do leste, após a retirada dos mongóis. Smolensk foi novamente arrasada quando da invasão napoleônica, na primeira década do século XIX. Queimada e reconstruída. A terceira importante devastação virá na invasão nazista em 1941-42, que possui no filme Vá e Veja (Иди и Смотри) um belíssimo, embora triste, relato da crueldade com que os germânicos invadiram a Belarus e a Rússia. Por essa capacidade de ressuscitar, Smolensk é uma das cidades mais importantes da Rússia, ainda hoje.

Essa ópera de Glinka que deixarei para vocês no final da postagem é interessante, além de ser belíssima (se os estruturalistas lessem isso...), porque narra a história de um camponês chamado Ivan Susanin, um homem simples, detentor de terras, que em lealdade ao Tsar russo Mikhail I Romanov encontrará a morte para defender essa região de fronteira das mãos do império polonês. Não duvidem amigos, aqueles povos do leste possuem diversas razões para rivalizarem entre si, pois toda aquela faixa de terra entre Varsóvia e Moscou foi disputada palmo a palmo com muito derramamento de sangue. Como essa ópera é nacionalista, vai exaltar as qualidades desse detentor de terras que conseguiu ser fiel ao Tsar, mesmo pagando com a morte. Espero que vocês gostem, tenho me deleitado bastante nas última semanas ouvindo Glinka. Ah, prometo para muito breve uma surpresa tupiniquim. Gostaria de dizer sobre a ópera Ivan Susanin: Uma Vida pelo Tsar, que os tenores são maravilhosos ou que no terceiro ato há uma mudança de notas altas para baixas. Mas não, não sou capaz de analisar a melodia como um músico. Não sou digno de fazer qualquer crítica, admito antes de tudo. Porém, nem Mallarmé, nem Ortega y Gasset, nem Barthes, poderão diminuir minha capacidade de me emocionar ao ouvir uma música de Beethoven ou de Glinka, simplesmente por não conhecer as notas ou não poder ler o som. Por hoje é só, segue abaixo os links para baixar a ópera completa, além dos arquivos em pdf. Após baixar as três partes que contabilizam duzentos e trinta e poucos megabytes, vai aparecer um pedido para digitar uma senha, esta se chama: "parol", que significa senha em russo, não se esqueçam. Saudações!

1ª parte: http://rapidshare.com/files/158886757/Glinka_Ivan_Susanin_MP3.part1.rar

2ª parte: http://rapidshare.com/files/158892891/Glinka_Ivan_Susanin_MP3.part2.rar

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senha: parol